Falar sem dizer nada

Agora, retomemos o fio da meada, para continuarmos no cumprimento da promessa. Vou esforçar-me por ser mais conciso, procurando, se possível, fazer orelhas moucas, para não ouvir as conversas que imediatamente me surgem quando evoco os episódios e não cair na tentação de as reproduzir. A menos que elas se revelem muito interessantes, para que aí possam mais facilmente visualizar e também viver pela imaginação as peripécias por que vou passando. Escusado será também dizer que vai ser um esforço um tanto inglório, porque a caneta costuma ganhar asas e acaba por registar tudo quanto começo a rever. E se lhe meto travões, arrisco-me a que emperre; e a escrita, em vez de se processar quase automaticamente, pode começar aos soluços e baldões, tal como as viaturas, quando encontram valas imprevistas a vencer ou a picada empapada e escorregadia, em que as rodas patinam e não saem do mesmo lugar.

É interessante notar como, às vezes, as palavras que nos saem da caneta estão de acordo com o nosso estado de espírito. No parágrafo anterior, evoquei uma situação frequente no nosso dia a dia: as viaturas aos soluços e baldões, quando encontram obstáculos difíceis de vencer nas picadas angolanas. Estou neste momento a sentir-me parecido com elas. Acabo de encher dois aerogramas e ainda não consegui agarrar o fio da meada. Até estou parecido com os nossos oficiais superiores, segundo a óptica dos nativos. Por sinal, uma óptica de lentes frias e cristalinamente objectivas. E, já agora, explico-me melhor onde pretendo chegar.

Há tempos, um grupo de combate teve a visita de altas patentes militares. Reuniu toda a gente na área própria do aquartelamento. Toda a gente. Não apenas as nossas tropas, mas também os milícias, os Ges, e outros nativos das sanzalas próximas. De acordo com as normas, prestadas as honras militares, a patente mais alta de visita ao local tomou a palavra e massacrou os ouvidos de toda a gente durante uma meia hora bem puxada.

Findas as cerimónias, no momento de convívio entre todos os presentes, o alferes à frente do destacamento procurou saber, junto dos nativos, quais as impressões causadas pelo comandante. Ao lado dele, estava naquele momento o chefe milícia.

— Então, chefe Manuel, o que achou da intervenção do nosso tenente-coronel?

O chefe milícia fez de conta que estava distraído e nada tinha ouvido, furtando-se à resposta.

O alferes voltou a insistir:

— Então, chefe Manuel, não diz nada? Não gostou da intervenção do nosso comandante?

Apertado pelo alferes e após algumas hesitações, o homem desabafou:

— Ora, meu alferes, o que quer que lhe diga? Ele só falou!

 

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