Elaborando o sumário |
Quimbele, 19 de Maio de 1973
Há nove dias que a minha caneta não tinha o prazer de debitar palavras destinadas à metrópole, para vos dar notícias do vosso filho. Ela até já me tinha perguntado se eu me tinha esquecido daqueles de quem mais gosto. Respondi-lhe que era uma tola, se pensasse tal coisa a meu respeito. E para a ajudar a reflectir, perguntei-lhe se estava com saudades de escrever, se estava cansada de estar esquecida sobre a secretária do Comandante de Companhia, no gabinete onde, ultimamente, tenho estado com mais frequência. Respondeu-me que não, que até estava farta de escrever, mas que não era a mesma coisa. Chegou mesmo a confessar-me que preferia escrever palavras para vos dar notícias do que passar o tempo a utilizar outros registos escritos, com terminologia relacionada com a justiça militar e com as charadas das mensagens a cifrar e a decifrar. Acabei por lhe dar razão. Disse-lhe precisamente aquilo que ela gostava de ouvir: que também eu prefiro passar o tempo a escrever-vos do que andar envolvido em problemas diversos, sobretudo em guerras de papeis. Nove dias sem receberem notícias minhas não é um grande espaço de tempo. Creio até que já houve hiatos temporais bem mais dilatados. Creio mesmo que estes nove dias de intervalo nem terão sido notados. Como passei três noites seguidas a relatar-vos a minha última operação na mata, donde resultaram três enormes colecções de aerogramas, este intervalo terá até sido providencial, para vos dar tempo para a leitura de tamanha quantidade de folhas amarelas, ainda que carregadas com a verdura das densas matas africanas por onde andei. Nestes nove dias passados, haverá alguma coisa significativa para vos dar a conhecer? Além dos vossos aerogramas, num total de quatro, com datas de dez, onze, catorze e dezasseis de Maio, que chegaram com pequenos intervalos, e também de mais uma revista que vinha acompanhada com um delicioso queijo, o que é que me sucedeu de importante e digno de menção? Ainda mal tinha acabado de fixar no papel a minha pergunta, quando senti uma ligeira vibração no bolso da camisa. Pousei a caneta e procurei averiguar o que se passava. Era a minha companheira permanente, onde diariamente anoto os factos mais importantes. Tenho-a em cima da mesa. Já está aberta a agenda no dia de hoje, à espera que a folheie, para saber o que fiz. Vejamos, então, com a ajuda dela, qual vai ser o sumário para os próximos momentos. Por falar em sumário, acabo de me lembrar das minhas aulas na Lousã. Acabo de me lembrar dos alunos e colegas que tive o prazer de conhecer no meu primeiro ano de ensino. Foi um ano que me ficará para sempre na memória. Como passou depressa! Foram trezentos e sessenta e seis dias que se eclipsaram com a mesma rapidez com que arde um fósforo! Ora bolas! Não é disto que agora tenho de me ocupar. Foi a malandreca da palavra que utilizei no parágrafo anterior. Escarrapachei a palavra sumário logo no começo do parágrafo e zás! Vieram imediatamente à memória os sumários das aulas e aquele magnífico ano de trabalho, que antecedeu toda a série de trabalhos a que me vi obrigado por causa da porcaria da tropa! Porcaria não será a palavra correcta, embora já tenha tinha algumas cenas cómicas por causa da porcaria que costuma grunhir e deambular pelas sanzalas. Se não fosse a dita «porcaria» da tropa, não teria tido a oportunidade de conhecer novos horizontes e novas gentes. E não estaria agora a ter o prazer da vossa companhia através das palavras escritas. Vamos ao sumário antes que me deixe arrastar pelas lembranças e caia em alguma das minhas digressões, afastando-me do que interessa e pregando-vos um frete. De mais a mais, a agenda começa a ficar nervosa, impaciente, à espera que eu a acaricie, folheando-a e procurando os registos que ela faz o favor de me guardar para a posteridade. O que é que tenho registado com interesse entre os dias dez e dezanove de Maio? Tenho uma caçada imprevista às rolas, na companhia do Capitão Glória Dias; uma ida súbita a Sanza Pombo; uma almoçarada na missão de Quimbele, na companhia do médico; a chegada, finalmente, da máquina fotográfica; um filme intitulado «Caminho para a aventura»; uma reportagem fotográfica sobre Quimbele e arredores. E tudo isto sem falar dos problemas rotineiros, dos problemas com o estômago, dos autos de averiguações e dos treinos da nossa equipa para o campeonato de futebol de salão em Carmona. |