Gostos do Joaquim |
— Que mais, além das gulodices? — Há uma coisa que ele aprecia tanto ou mais que os chocolates. — O quê, Ulisses? — O Joaquim já não é propriamente uma criança pequena. É já um rapaz de quinze anos, bem constituído, inteligente, filho do soba, um elemento que deve ser a cobiça das miúdas das sanzalas. Até porque é extremamente simpático e uma boa figura. — Estás a empatar-nos, Ulisses. De que é que ele gosta mais do que chocolates? — Pense bem, capitão. Meta-se na pele do Joaquim. — Não me posso meter. Ele é preto. Eu sou branco. Não mudamos de cor ao nosso gosto, como o camaleão. — Ó capitão, a cor não interessa. Brancos, pretos, vermelhos, azuis, cor de rosa ou amarelos, somos todos feitos da mesma massa. Use a inteligência, a imaginação. Do que é que gostava mais quando tinha a idade do Joaquim? — De miúdas. — E já não gosta? — Claro que sim, carago. Quem é que não gosta de miúdas? Não há aqui larilas, que eu saiba! — Ouve lá, Ulisses, agora sou eu que também não te estou a entender. Então do que é que o Joaquim gosta mais, além do chocolate? Será de miúdas? — Também tu, Graça Marques? E tu, Valério? E aqui os nossos amigos civis? Todos continuam a gostar do elemento feminino, apesar de casados, não é verdade? — Estás a tramar-nos bem tramados, Ulisses! Se não é de chocolates, se também não é de miúdas, então do que é que ele gosta mais? — Não disse que ele não gosta de miúdas. Só que não se trata de miúdas. Nunca poderia ser isto, porque eu não lhe posso dar miúdas. Mas há coisas que lhe posso dar e até poderão ser úteis para alcançar as miúdas. — Estás a tramar-nos bem tramados. Já vimos que não podem ser as miúdas, porque isso não é coisa que se traga no bolso e se possa oferecer. Então do que é que o Joaquim gosta mais? — Vamos lá raciocinar um pouco. Eu vou dar-vos uma ajudinha. Todos nós gostamos de miúdas, não é verdade? E para que elas reparem melhor em nós, o que é que todos nós fazemos? — Arranjamo-nos. Barbeamo-nos. Procuramos melhorar a nossa apresentação física... — Estás a raciocinar bem, Valério. Estás quase a acertar na «mouche». O que é que todos nós enfiamos, para ficarmos com melhor aparência? — Roupas? — Exacto, Graça Marques. Acertaste em cheio. É isso mesmo. A melhor oferta que posso fazer ao Joaquim, além dos chocolates, é dar-lhe roupa. O moço gosta, como todos nós, de vestir bem. Já lhe tenho dado algumas e ele fica feliz. Agora, quando o levar para cima, para o Alto Zaza, antes de me despedir dele, tenciono ir com ele a uma loja para escolher uma camisa nova que lhe agrade. — Porque não lhe dás uma das tuas, daquelas que já não usas? — Não posso fazer isso, capitão. — Ora essa! Não podes porquê? Não tens camisas? — Tenho muitas, capitão. Mas o Joaquim merece muito mais do que uma camisa usada das minhas. Ele merece uma camisa nova, escolhida por ele. Não há dinheiro nem camisas que paguem a amizade dele e tudo quanto fez por nós. — Tudo como, Ulisses? — É simples, Graça Marques. O Joaquim foi um dos elementos mais úteis durante o período que passei na Quimabaca. Além da companhia e amizade dele, foi o meu tradutor permanente. Acompanhou-me sempre durante as deslocações aos vários povos para efectuarmos os recenseamentos. Sem a colaboração dele, não tínhamos feito nem metade do serviço! — Não queres propô-lo, já agora, para uma condecoração militar, Ulisses? — O capitão está a gozar comigo? Mesmo que isso fosse possível, uma medalha pendurada numa fita não serve para vestir ninguém. Se calhar, nem no prego dava dinheiro! — E então as tuas descobertas, Ulisses? As tuas descobertas sensacionais resumem-se apenas às amêndoas e ao chocolate?! — O capitão está para aí a ironizar, mas não tem razões para isso. O Ulisses está certo. A vida faz-se de permanentes descobertas. E o Ulisses tem razão para se surpreender com tudo quanto nos tem contado. — Passaste agora de médico a advogado de defesa? — O Ulisses não precisa de advogados de defesa. Sabe defender-se bem e resolver os problemas que lhe vão surgindo. Não é verdade, Ulisses? — Que remédio, Graça Marques! Se não formos nós a resolvermos os nossos próprios problemas, quem é que os há de resolver? — Não há mais nada? Acabaram-se as histórias? — Não podem ter acabado. Tem ainda a despedida da Quimabaca. Segundo disse o capelão, teve uma despedida que nem um primeiro ministro! — E é verdade, capitão. É verdade. Tive uma despedida que me há de ficar para sempre na memória. — Também não exageres, Ulisses. Daqui por uns tempos, nunca mais voltas a lembrar-te disso. — Não sei se será bem assim, Valério. Há coisas que não se esquecem facilmente. Boas ou más, há por vezes acontecimentos que nos ficam gravados para o resto da vida. Mas, quanto a histórias, ainda a procissão não passou do adro. Não vos disse que a sexta-feira foi cheia de peripécias e de surpresas? Não disse que as amêndoas foram o despoletar de uma série de descobertas? — Claro que sim. Mas ainda há mais histórias curiosas, Ulisses? — Sim, Valério. Se prestarmos um pouco de atenção ao que nos rodeia, acharemos sempre qualquer coisa com interesse. — Como por exemplo? E depois? — E depois, Valério, é que nessa mesma manhã em que as amêndoas foram a novidade do dia para a população da sanzala, nessa mesma manhã ainda tive uns momentos gozados, de pura diversão. Bem, não sei se deva dizer de diversão... E daí talvez seja isso mesmo. Foram uns momentos gozadíssimos, giríssimos. Foram uns momentos de diversão e mais uma confirmação daquilo que eu há muito descobri relativamente ao povo africano. — Afinal, o que é que aconteceu depois do episódio das amêndoas, Ulisses? Começas outra vez a deixar-nos curiosos e intrigados. Creio eu que não sou o único, não é verdade? — perguntou o Graça Marques, voltando-se para os camaradas e civis que formavam o círculo. |