Futebol com notícia

Por volta das quinze horas, tínhamos o campo de futebol cheio de pessoal. Além dos jogadores e da tropa, a equipa de Quingange tinha trazido um grande número de Quingangenses para lhes dar apoio, especialmente homens e crianças. O jogo esteve animado e renhido. A mais de metade da segunda parte, já muito próximos do fim, estávamos empatados por quatro bolas. Oito frangos tinham entrado nas duas balizas. Estava satisfeito com o desenrolar do jogo. Daqui por uns minutos acabava a partida da melhor maneira: nem vencedores nem vencidos. O empate era o resultado ideal.

— Capelão, que lhe parece o jogo?

— Está animado. Até o árbitro está a fazer um bom trabalho.

— E já reparou que o resultado não podia ser melhor?

Estava eu já a atirar foguetes antes do tempo e a dar a minha opinião ao capelão quando, de repente, quase no final, finta aqui, finta acolá, os craques de Quingange se aproximam da nossa baliza. Um chuto bem mandado e a bola entra pelo canto. Mesmo no fim, os visitantes marcam um golo e vencem o Alto Zaza, não havendo mais tempo de virar o resultado. Foi uma euforia geral dos jogadores e da população que veio dar força à equipa; e uma grande decepção do meu pessoal. Aproximei-me de um furriel e disse-lhe:

— Com que então o jogo estava no papo! Afinal, viu-se quem foi o melhor.

— Ó alferes, foi apenas um golpe de sorte. A bola é redonda e vai para todos os lados.

— Estás desapontado? — perguntou-me o capelão.

— Não. De modo nenhum! O jogo até esteve bem e muito equilibrado. Saímos todos a ganhar. Só que o furriel, há dias, disse-me que nós éramos os melhores e que o jogo estava no papo. E esteve! Levámos com cinco frangos!

— Como é, alferes? O Ramalho não veio para cima.

— E o que é que nos interessa que o Ramalho continue em Quimbele?

— É ele o vagomestre.

— E eu sou o comandante. Quem é que manda aqui no destacamento: é o furriel vagomestre ou o alferes? Mas afinal onde é que quer chegar?

— É o alferes. Mas as grades que o alferes mandou pôr na arca frigorífica não chegam para tanta gente. E a assistência que veio da sanzala? E os miúdos?

— As grades que mandei guardar, pago-as eu. Mas quero que todos bebam uma cerveja, se quiserem. E para os miúdos, é dar-lhes Coca Cola ou “Setupe”, aquilo que eles quiserem. O resto da despesa não serei eu a pagá-la. Há-de ser paga com as verbas da acção psicológica. E não há melhor acção psicológica que este são convívio com as populações nativas. Depois disto, antes de anoitecer, é necessário ir levar os jogadores e a população na Berliet.

— É muita gente, alferes.

— Não é nada. A caixa da Berliet é muito grande. A viatura aguenta com várias toneladas de peso. O pessoal que vai não pesa toneladas. Além disso a viatura é nova e a distância é relativamente pequena. Em meia hora, na pior das hipóteses, estão na sanzala.

Depois do jantar, na companhia do capelão e dos furriéis, aproveitámos para redigir a primeira colaboração do Alto Zaza para a publicação do Batalhão:

 

FUTEBOL NO ALTO ZAZA

 

No dia 4 de Fevereiro do corrente ano, pelas quinze horas, realizou-se o primeiro jogo de futebol entre a equipa militar do Alto Zaza e a equipa civil de Peto Bangamba da sanzala de Quingange.

Depois de um renhido mas equilibrado jogo, nos últimos minutos, a equipa visitante marcou o golo da vitória, derrotando a equipa da casa por 5-4.

O desafio terminou com um momento de convívio entre jogadores e espectadores, durante o qual foram oferecidas diversas bebidas a todos os presentes.

 

 

— O que acham da notícia? — perguntei a todos, depois de a ter lido em voz alta.

— Está muito bem! — disse o capelão. Vais entregar-ma, que a levo amanhã para Sanza Pombo.

— Vocês repararam na maneira como o Joaquim jogou? — perguntou um furriel.

— Reparei e não gostei.— disse eu.

— Não gostou, alferes! — espantou-se o furriel.

— Gostei, mas não gostei.

— Não estamos a perceber, Afinal gostaste ou não? — perguntou admirado o capelão.

— Claro que gostei imenso da maneira como ele jogou. Até demais! E é bom que não falem disso. É um jogador profissional em potência que ali está. E é melhor calarmo-nos, quando muito ainda mo vêm cá buscar e fico sem ele.

— Não estamos a perceber literalmente nada do que queres dizer. — disse o capelão.

— É fácil de perceber. Em Quimbele estão a pensar formar uma equipa de futebol de salão e de futebol normal. Estão mesmo a pensar participar num torneio a realizar em Carmona. Se em Quimbele começa a constar que temos aqui no destacamento um civil que é bom jogador, ainda mo cá vêm buscar e fico sem o Joaquim.

— O alferes está assim tão interessado no Joaquim?

— Claro! É um jovem em quem tenho toda a confiança e por quem sinto amizade. É inteligente e bastante evoluído. Preciso dele aqui para me ensinar a falar o Quicongo. Está a ajudar-me a compilar material para um dicionário e gramática de Quicongo. Se mo levam daqui, deixo de ter a quem dar explicações de várias disciplinas e deixo de ter também quem me ensine. Sem falar no amigo que perco.

Estávamos a conversar acerca das qualidades do Joaquim, aproveitando o facto de ele já ter ido para a sanzala, quando fomos bruscamente interrompidos por uma detonação distante.

— Que foi aquilo? — perguntaram alguns furriéis, levantando-se bruscamente da mesa.

— Não sei! Um tiro não foi. Pareceu-me uma explosão. Um tiro não foi. Quando muito, foi uma detonação de morteiro ou granada.

Fomos buscar as armas e as cartucheiras e saímos do edifício. À volta do destacamento, tudo estava tranquilo. Conversei com as sentinelas. A detonação tinha sido muito distante. Não tinham notado nada de invulgar. Fui ao posto de rádio, para procurar saber alguma coisa. Saí de lá na mesma. Ninguém sabia de nada.

A verdade é que, até hoje, nunca conseguimos averiguar a causa daquela detonação. Acabei por me limitar a registar o facto na minha agenda e não voltei a pensar no assunto.

 

Página anterior Home Página seguinte