Na madrugada do dia quatro, ainda o
sol não tinha acabado de se levantar, já andava uma balbúrdia no destacamento. Era o
barulho dos unimogues e as conversas excitadas do pessoal, que se preparava para a
partida. Levantei-me mais cedo do que previra e fui para a parada, assistir à saída e
dar mais algumas recomendações.
O ver partir o meu pessoal, ainda que por algumas horas, produziu-me uma sensação
estranha. Não sei bem se era o contágio da alegria deles, se o sentimento de tristeza de
me ver ali sozinho, apenas com vinte homens, e, sobretudo, sem a companhia dos furriéis,
que me causam frequentemente problemas e preocupações, mas cuja companhia se tornou já
indispensável.
A Rosa, que assistiu também à partida e se despediu dos furriéis, regressou ao
edifício onde estamos instalados. Olhou para mim, antes de se voltar a deitar, talvez na
esperança que eu lhe dissesse alguma coisa.
Entrei no meu gabinete, descalcei-me e estiquei-me sobre a cama, para dormir mais um
pouco. Foi uma péssima ideia, que me deixou mais cansado e enervado. Adormeci
rapidamente. Mas surgiram-me os meus soldados na picada, em direcção a Quimbele. Também
ia com eles. E tanto estava sentado na viatura da frente como, de repente, me encontrava
na viatura de trás. O sol começava a iluminar-nos de costas. Provocava uma sombra
alongada da viatura. Na poeira da picada, via-se-lhe a silhueta esticada, que corria na
nossa frente. Estávamos numa zona de recta e avançávamos a uma velocidade prodigiosa.
As rodas nem tocavam no solo. Os unimogues tinham-se transformado em viaturas velozes, que
avançavam sobre uma almofada de ar. Atravessámos num instante a zona planáltica, tendo,
de um lado, uma encosta quase plana e, do outro, a inclinação da encosta sem árvores
para um vale profundo.
Aproximámo-nos da orla da floresta, uns quilómetros mais à frente. Por causa de uma
curva para a esquerda, os condutores afrouxaram abruptamente, para não sairmos da picada.
Alguns metros depois, do lado da mata, ouve-se um barulho atroador de disparos. Estávamos
debaixo de fogo. Tínhamos caído numa emboscada. Éramos alvejados, mas não se via
ninguém. Cada um, atirou-se como pôde das viaturas. Alguns camaradas caíam para não
mais se levantarem. Bruscamente, estava fora da viatura. Vi-me colocado entre os dois
unimogues, esticado no chão, com alguns homens a disparar às cegas para o sítio donde
pareciam vir os disparos. Procuro aflitivamente a espingarda, mas estava sem ela, sem
cartucheiras e despido. Não tinha com que me defender. Estava coberto de suor, sob um sol
escaldante. Estava paralisado. Queria mexer-me, mas não conseguia fazer qualquer
movimento. Não podia sair do sítio. O sol começou a escaldar-me e a atingir-me também
com raios de calor. Começava a ficar sufocado... mas, felizmente, abri de repente os
olhos. Estava acordado, banhado em suores frios. Estava no meu gabinete, com um raio de
sol a bater-me na cara. Um raio de sol entrava pela porta, que deixáramos aberta, e
tirava-me da aflição do ataque.
Levantei-me, calcei as botas e saí maldisposto do gabinete. Fui directo à sala das
transmissões ligar para Quimbele, para saber do meu pessoal. Saí de lá alguns minutos
depois, completamente tranquilizado. Estavam todos em Quimbele, de perfeita saúde.
Depois do pequeno almoço, inteirei-me das actividades rotineiras e fui verificar se as
minhas ordens estavam a ser cumpridas. Conversei uns minutos com o pessoal, que iniciara o
trabalho de capinar o destacamento, nas zonas que eu tinha indicado. Saí do destacamento,
em direcção ao futuro posto administrativo. O edifício provisório de pau a pique
estava quase terminado. Em breve, começariam os trabalhos de limpeza do terreno, para
traçado e abertura dos alicerces do novo posto administrativo. Para ocupar um pouco da
manhã, procurei notícias de Quimbele e relatei o sonho estranho.
Regressei ao destacamento. Em frente ao comando, não estava ninguém. Nenhum nativo fazia
bicha à porta da enfermaria. Estranhei tanto sossego. Olhei para o relógio e verifiquei
que a manhã ia avançada. Passava já das onze horas. Tinha havido poucos doentes e o
enfermeiro despachara-se mais cedo. Não! Lembrei-me que não devia estar nenhum
enfermeiro no destacamento. Deviam ter ido todos para Quimbele. Por isso não havia
doentes.
Entrei no edifício do comando e estranhei o sossego. Nenhum dos rapazes que ajuda na
limpeza. A Rosa também não estava. Mas estava tudo impecavelmente arrumado. As camas
feitas. A mesa limpa. O chão varrido. O trabalho de capinar também devia estar a correr
sem problemas. E também não havia mensagens para decifrar. Era óptimo para aproveitar o
tempo, retomando a minha escrita habitual. Fui para o meu gabinete, e ...
A minha cama estava ocupada. Estava feita, mas ocupada. Em cima dela, estava outra vez uma
rosa negra, toda negra e luzidia, sem qualquer vestígio de corres garridas. A Rosa
decidira aproveitar a ausência dos furriéis e da maioria do pessoal para nova investida.
E agora, como da primeira vez falhara, decidira patentear aos olhos do alferes toda a
pujança daquele corpo jovem e ondulado, de pele brilhante e seios injectados, capazes de
penetrar o espírito mais resistente.
Se da primeira vez tinha ficado momentaneamente indeciso, agora fiquei ainda pior. Estava
farto de ver raparigas nativas, na zona da água, a tomar banho connosco e com o maior à
vontade possível. Essa situação era já normalíssima e encarada por todos como a coisa
mais natural deste mundo. Olhávamos. Mas, satisfeita a primeira curiosidade, ficávamos
indiferentes. Agora, a situação era totalmente diferente. Não estávamos no rio.
Estávamos no meu gabinete, numa situação totalmente nova e nunca imaginada.
A Rosa deve ter-se apercebido da indecisão do alferes. Deve ter pensado: «O alféris
não contar com Rosa assim nua. Se Rosa não aproveitar agora, não ganhar o alféris!»
Avancei para ela, ainda sem saber como fazê-la sair. Não tive tempo de falar. A Rosa
levantou-se bruscamente. Encostou o corpo ondulado ao alferes e, meigamente, acariciou-o,
deixando-o incapaz de proferir palavra. Começou lentamente a desabotoar-lhe a camisa. Sem
qualquer resistência, o alferes não sabia como reagir. Em breve, a Rosa estava a
tirar-lhe os calções, com que habitualmente o alferes anda no destacamento. Sem qualquer
desperdício de palavras, a Rosa estava gradualmente a vencer todas as resistências do
alferes. Em breve, tinha-o subjugado. Não totalmente subjugado, mas quase!
Na mente do alferes, passava um turbilhão de ideias. Surgiam-lhe imagens de outras
raparigas que conhecera. Surgiam-lhe as instruções que aprendera em Mafra, sobre as
doenças tropicais e os perigos das doenças venéreas. Surgiam-lhe também as imagens de
uma rosa negra, já colhida e utilizada, mexida por várias mãos. A rosa parecia começar
a mostrar-lhe um aspecto já murcho e apodrecido! Surgiam-lhe as instruções que tantas
vezes repetira aos soldados, durante a recruta na metrópole e, mais tarde, já em
território angolano. Era uma confusão de ideias, que o deixavam completamente indeciso.
Mas como aceder ao desejo e, simultaneamente, não fugir às normas de segurança tão
proclamadas por ele? Interrompeu bruscamente todo o ritual amoroso que a Rosa lhe estava a
proporcionar, deixando-a, desta vez a ela, completamente desconcertada. Procurou
apressadamente na pasta uma pequena embalagem, que utilizou, e entregou-se de corpo e alma
às seduções daquela rosa africana, sem mais preocupações pelos espinhos imprevistos.
Tudo decorreu em fracções de segundo. Ao momento fugaz do clímax, seguiu-se o reverso
da medalha. O alferes sentia-se coberto de suor e completamente conspurcado. A Rosa, que
tinha acabado de se limpar com uma toalha que trouxera, quis ajudar o alferes.
Não. Não me toques com a tua toalha! gritou o alferes, repelindo-a.
Era demasiado tarde. Mal o alferes acabara de retirar a protecção, já a Rosa estava
preocupada com ele, limpando-o cuidadosamente com a mesma toalha que tinha utilizado para
se limpar.
Não me devias ter limpo, Rosa. Anulaste todas as minhas precauções. Queira Deus
que não me tenhas feito mal, ao quereres ajudar-me.
A Rosa não entendeu nada do que se passava na mente do alferes. Não entendia nada do que
ele lhe estava ali a dizer. Nunca antes ninguém a censurara por ter querido ajudar.
Também não valia a pena explicar-lhe, porque certamente não entenderia as
preocupações do alferes.
Saí do gabinete com um sentimento de repugnância. Peguei nos meus objectos de toilette
e fui, apreensivo, enfiar-me debaixo do chuveiro. Felizmente que a pele não larga o
corpo! Gastei várias doses de champô e lavei-me não sei quantas vezes, com uma minúcia
pouco habitual. Acabava de me lavar e já estava outra vez a ensaboar-me, com a sensação
de continuar sujo.
Uma relação que, para os furriéis, deveria ser motivo de satisfação e tema para
conversas entusiasmadas entre eles, tornou-se para mim um motivo de preocupação para o
resto do dia. Em vez de captar as minhas simpatias, a Rosa acabou por obter um resultado
inverso. Não lhe mostrei qualquer sentimento de antipatia ou hostilidade, mas também
não toquei uma única vez no sucedido. Foi como se, durante o chuveiro prolongado,
tivesse passado uma esponja sobre tudo e nada se tivesse passado.
Durante o almoço, na companhia da Rosa, quase não trocámos palavras. O resto da tarde,
passei-a em parte na companhia dos soldados, que acabaram o trabalho de capinar o quartel.
Encontrei o velho Manel, que não quis ir com a tropa à civilização, e convidei-o a
fazer-me companhia. Fui com ele até à orla da mata, ver o andamento do trabalho do
administrador. Pelo caminho, falei ao velhote na ideia de construir um novo forno para o
pão, mais amplo que o existente, aproveitando parte do material do existente.
O velho Manel não se opôs ao projecto e expôs-me as suas ideias:
Meu alferes, para um forno mais grande que o que temos, temos de ir arranjar mais
tijolo burro. Ao desfazer o que temos, há tijolos que se partem e não se aproveitam.
Não se podem aproveitar para a base?
Aproveitam-se para a base, mas precisamos de mais tijolos para alevantar a cúpula
do forno.
Não serão precisos muitos mais dos que utilizámos para o forno existente, velho
Manel. De qualquer modo, vai-se a Quimbele buscar tudo o que for preciso. Para não
ficarmos sem pão, velho Manel, faz-se uma fornada maior que o habitual. Espera-se que o
forno arrefeça, desmancha-se e constrói-se um novo, maior. Em dois dias, no máximo,
temos forno novo a funcionar. O que lhe parece?
Acho bem! Quando o meu alferes querer, é só dizer. Pode contar sempre com o velho
Manel.
Estivemos um grande bocado na conversa com o administrador. Regressámos ao fim da tarde
ao destacamento. Convidei o velho Manel a tomar uma bebida paga pelo alferes.
Tinha já escurecido e estava o pessoal no refeitório, a preparar-se para comer, quando
chegaram as viaturas de Quimbele. Os furriéis cumpriram rigorosamente o estabelecido e
chegavam mesmo à justa para a refeição.
Durante o jantar na messe, a conversa com os furriéis esteve animada. Para a Rosa, tinham
tido a lembrança de lhe comprar um perfume, que deixou a rapariga satisfeita. Era mulher
e os furriéis tinham-lhe tocado num ponto fraco.
O presente foi rapidamente desembrulhado. A Rosa não
parava de abrir o frasco e aspirar o perfume, que seguramente lhe tinha agradado. Com o
dedo na abertura do frasco, humedecia a extremidade do indicador e passava-o em vários
pontos do pescoço. Estava felicíssima com a lembrança. Foi certamente uma pena não ter
recebido o presente mais cedo, para utilizar aquela nova arma de sedução. Teria cativado
mais facilmente o alferes!
Por sua vez, os furriéis estavam satisfeitos com as
compras feitas. Como não queriam ficar atrás do alferes, adquiriram rolos e máquinas
fotográficas.
Então o Rodrigues não queria uma máquina igual à minha?
Queria e quero, alferes.
Mas as máquinas que vocês compraram têm poucas possibilidades.
Nós não percebemos de fotografia, como o alferes. Esta é fácil de utilizar. É
só meter as cassetes com a película, espreitar pelo visor e disparar.
Mas o Rodrigues não me tinha dito que ia encomendar uma máquina igual à minha?
E encomendei uma. Mas se ficasse à espera dela, nunca mais tirava fotografias.
Esta é só enquanto não chega a outra. Depois vendo-a a algum soldado. É um modelo
barato. Dá para, entretanto, ir tirando umas fotografias.
Depois da bica, passámos uns momentos divertidos. Ensinei aos furriéis várias
modalidades de jogos com os dados. Fiz uma ronda pelo destacamento e recolhi-me ao
gabinete. Tinha tido um dia ocupado e cheio de surpresas imprevistas. Os furriéis não
tinham trazido correio e também não me apetecia escrever. Deitei-me e adormeci
rapidamente.
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