Na correspondência recebida, se bem
me lembro, perguntam-me como passámos o Ano Novo. Prometi, lá mais para trás, que
falaria disto quando chegasse a altura. E ei-la que chegou!
O que é que vos hei de dizer acerca disto? Se estivéssemos na Metrópole, teríamos
certamente algum bailarico para passagem de ano, para não dizer um réveillon,
que é mais chique, mas não é português. Teríamos o barulho de foguetes, à
meia-noite. Teríamos, na pior das hipóteses, algum programa televisivo, para aqueles que
decidissem ficar tranquilamente em casa. Teríamos também alguns cacos velhos, lançados
para a rua, onde iriam escaqueirar-se estrondosamente. Aqui, no meio do mato, não tivemos
nada disto. Felizmente, nem tiroteio durante a noite, porque os turras devem ter tido a
feliz lembrança de irem a alguma batucada em alguma sanzala, não nos causando problemas.
Mas tivemos a companhia da Rosa, para nos alegrar o serão. E tivemos também uma mesa
recheada de gulodices. Não houve bolo-rei, porque os furriéis fizeram o favor de o
despachar indevidamente antes do tempo. Mas cada um colocou na mesa as guloseimas que os
familiares tiveram a excelente ideia de nos mandar da Metrópole. E o tempo passou-se
depressa. Até ouvimos o Big Ben a dar a meia-noite, para assinalar a passagem do ano.
Na manhã do dia de Ano Novo, mais ou menos a meio da manhã, tive um pequeno contratempo
com a Rosa. Parece ter engraçado comigo. E, como não lhe dou a mesma confiança que
conseguiu por parte dos furriéis, resolveu pregar-me uma partida.
Depois do pequeno almoço, peguei nos meus apetrechos de toilette e fui para a minha
barbearia particular fazer a barba. Claro está que a minha barbearia particular não é
nenhuma barbearia. No meio do mato e muito menos no destacamento não há barbearias. A
minha barbearia não é mais do que o monumento deixado por uma Companhia do Batalhão de
Caçadores 3839. É uma pequena construção de tijolo e cimento, cuja altura me dá
aproximadamente pelo peito. Ao centro, apresenta um escudo com quatro quadrantes e uma
cruz ao meio. Na base, outro grupo de combate acrescentou-lhe uma placa de cimento, onde
se lê, em letras maiúsculas: «OS PIONEIROS C. CAÇ. 3343» e mais três
inscrições, com a identificação de dois soldados e a referência «2º GRUPO
COMBATE».
É no topo horizontal deste monumento, que constitui uma pequena mesa rectangular, que
disponho os meus objectos: um espelho circular duplo, com uma face normal, plana, e uma
convexa, que amplia os poros da cara e os pelos da barba; o pincel para ensaboar a cara; o
stick de sabão; a gilete e uma lata circular para a água. A lata circular
trouxe-a eu da enfermaria. Têm como destino habitual o caixote do lixo. Achei que esta
lata, onde vem a gaze esterilizada e o algodão, pelas suas dimensões e formato
cilíndrico, constitui um excelente recipiente para a água e para, no final, guardar
todos os objectos da barba.
Coloco o espelho e restantes objectos nesta mesa improvisada e dou início ao desbaste da
barba, depois de a ter ensaboado abundantemente. O desbaste da barba faz parte da rotina
diária, só quebrada quando a manhã é de aguaceiros ou há a saída de algum grupo.
Feita a barba e tomado um duche no chuveiro improvisado com bidões, regresso ao meu
gabinete. E tenho uma surpresa. Na minha cama, já feita, encontro a Rosa deitada, numa
posição provocante.
Fiquei momentaneamente paralisado pelo imprevisto da situação. Nunca me tinha passado
pela mente que a rapariga fosse capaz de desobedecer às minhas ordens e, muito menos, que
entrasse no meu gabinete para se vir esticar na minha cama.
Não faço ideia de quanto tempo terá decorrido. Sei que pela minha mente passaram
várias ideias desencontradas, que me impediram de reagir imediatamente. Terão sido os
furriéis que lhe deram a ideia, para verem como eu reagia? Mas, naquele momento, os
furriéis andavam pelo destacamento. No edifício não estava mais ninguém, a não ser eu
e a Rosa, esticada na minha cama. Teria mexido nas minhas coisas e na documentação
militar em cima da minha secretária? Parecia tudo na mesma, tal como eu tinha arrumado
antes de sair. Não havia o mínimo indício de me terem mexido na secretária. Tudo
parecia de acordo com o meu sistema de arrumação. O único problema, que fugia a toda a
normalidade, era o de uma rosa negra deitada na minha cama, que me mostrava uns dentes
perfeitamente brancos, alinhados num sorriso inocente e tentador.
Consegui manter uma calma perfeita e, sem me exaltar nem revelar qualquer animosidade,
convidei a Rosa a sair do meu gabinete.
O meu alféris não gosta da Rosa?
Não gosto nem deixo de gostar. Apesar da tua companhia ser agradável, não deves
entrar no meu gabinete. Apenas autorizei a tua permanência na sala comum. Não deverias
ter desobedecido às minhas ordens.
Não foi por mal, alféris, era pra dar amor ao meu alféris.
Tens os furriéis, que gostam de ti. Não te devem faltar convites para lhes dares
amor.
Eles não são o meu alféris! A rosa gosta do meu alféris.
Não adianta perder mais tempo. Ocupa-te do trabalho de manter um ambiente
agradável na messe e já fazes um grande favor. Enquanto a tua presença me não trouxer
problemas, poderás aqui continuar. Mas nunca mais voltes a entrar-me no gabinete.
Percebeste?
Sim, meu alféris!
A conversa foi curta e a Rosa voltou para o seu devido lugar. Em breve, esquecia o pequeno
incidente com que a manhã do primeiro dia do ano me brindara. Dei uma volta pelo
destacamento. Resolvi as questões rotineiras e, pelas onze horas, estava no meu
gabinete a dar início a esta colecção de aerogramas e a rever os telegramas e
correspondência recebida. Interrompi as respostas à correspondência, porque uma
tempestade se abateu sobre o destacamento. Não sei se a Rosa terá chorado com a recusa
inesperada que lhe dei. Não creio mesmo que o tenha feito. Em contrapartida, o tempo
brindou-nos não com lágrimas, mas com uma violenta e ruidosa carga de água, a que
correspondi com uma bebida gostosa e refrescante, na companhia dos furriéis, a quem o mau
tempo obrigou a recolher ao abrigo do nosso edifício.
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