Avarias na companhia do capelão |
— Capelão, temos que deixar os nossos camaradas. — Já te vais, Ulisses? — Já, capitão. Temos uma viagem a fazer e, antes disso, tenho de ir ver se a viatura já está operacional. Com as saudades de casa, esqueci-me, de manhã, de ir ver se já estava reparada. — Mas o que é que as saudades têm a ver com a viatura, Ulisses? — É fácil de ver, Valério. Uma das formas de matarmos as saudades é ocuparmos o tempo na escrita. Também não fazes o mesmo? — Claro que sim! Mas espero resolver o problema duma maneira mais fácil. — Mais fácil?! Como é isso? Estamos todos interessados em saber qual é essa maneira mais fácil, não é verdade? Toda a gente concordou e procurámos saber a solução que o Valério tinha na manga curta da camisa. — A minha solução creio que não serve a nenhum de vós. O único casado que aqui está sou eu. — Não és o único da Companhia que é casado. — Claro que sou. — Não és. O Raul também é casado. — O Raul não está agora aqui. Eu estou a referir-me aos que agora aqui estão. O único casado que aqui está sou eu. E como é da mulher que tenho mais saudades, estou a pensar mandar vi-la para cá. Alugo aqui uma casa, em Quimbele, e passo a ter a companhia da pessoa de quem mais gosto. Claro que espero que aqui o nosso capitão não me levante problemas. — Que problemas é que ele te vai levantar? — perguntou o capelão. Não há nada que impeça um oficial de ter a esposa mais perto dele. Na C.C.S., os nossos superiores já mandaram vir para cá as mulheres e os filhos. Além disso, Quimbele é uma povoação sossegada, bastante evoluída, com tudo o que se pode desejar de uma povoação evoluída. Existe cá tudo como na Metrópole. E agora até já tem cinema. Só não há televisão. Isso é coisa que ainda não chegou a Angola, nem deverá chegar nos anos mais próximos. Não é verdade, capitão Alberto? — Tem toda a razão, capelão. E se o Valério mandar vir a mulher para cá, não serei eu a causar-lhe problemas. Será até um prazer para nós termos mais uma companhia feminina. E tem também aqui as esposas dos civis, para conviver. — Se o capelão quiser, pode ficar aqui mais uns minutos. Eu é que não posso. Tenho que ir ver da viatura, para partirmos o mais cedo possível. Quero chegar com o pessoal ainda de dia. É mais seguro para todos. — Vou contigo, Ulisses. — Isso é consigo, capelão. No Briosa Bar estavam alguns dos meus soldados e o condutor da viatura em animada conversa. Geralmente, costumam ir para o outro café, a cinquenta metros deste. Mas como sabem que os oficiais quase só frequentam o Briosa Bar, vieram para aqui, na expectativa da partida, o que me facilitou a vida. — Pessoal, é preciso arrancar. Enquanto tu vais buscar a viatura, — disse para o condutor — eu e o nosso capelão vamos à messe de oficiais buscar as nossas coisas. Apanhas todo o pessoal e vais buscar-nos lá acima. — O nosso capelão também vai connosco, alferes? — Vai. Vai ele e o ajudante. — E onde é que os metemos, meu alferes? A viatura é pequena. — Se não há espaço, Ulisses, vou mais tarde, quando vierem buscar o reabastecimento a Quimbele. — Não é preciso, capelão. Vai hoje mesmo. Se for preciso, cedo-lhe o meu lugar. Nós apertamo-nos um pouco, no banco da viatura. Com boa vontade, cabe sempre mais um. Havemos de arranjar solução. Não se preocupe. — Vê lá, Ulisses, não quero arranjar-vos problemas. — Não vai haver problemas. Vai hoje mesmo connosco. Está decidido. E tu, — disse voltando-me novamente para o condutor — vais buscar a viatura e apanhas a malta. São agora duas da tarde. Às duas e meia, está lá em cima, na messe, com todo o pessoal, para arrancarmos para a Quimabaca. — Se calhar até antes, alferes. Está aqui quase toda a malta. E os outros é só passar ali pelo outro café. É só passarmos pela caserna, para pegarmos as armas e as cartucheiras. Antes das duas e meia já lá estamos. Se calhar até antes do meu alferes e do nosso capelão estarem prontos. — Está bem. Vai lá buscar a viatura e a malta. Nós vamos já para a messe. É verdade, para adiantar serviço, procurem também o soldado ajudante do nosso capelão. Tragam-no convosco, para não perdermos tempo. Ainda não eram duas e meia e já a viatura com o pessoal estava parada em frente à messe de oficiais. — Está a ver, meu alferes? Quem é que tinha razão? Já aqui estamos há mais de cinco minutos à espera do alferes e do nosso capelão. Fomos rápidos. — Sim senhor! Temos aqui um pessoal rápido e eficiente. Mas agora têm de se apertar um pouco, para eu me sentar atrás do condutor. No meu lugar vai o nosso capelão. — Não vou, não, Ulisses. O teu lugar é o teu lugar. Eu vou atrás, no banco, na companhia dos teus soldados. E não vale a pena insistires, porque é ali que eu quero ir. — Por mim está tudo bem. Não serei eu a contrariá-lo. Vamos lá então, pessoal. Arranca lá com a viatura. Do que é que estás à espera? Põe isto a trabalhar. — A viatura não arranca, meu alferes. Estou a dar à chave da ignição, alferes. Isto não pega. — É capaz de ser da bateria. Está sem carga. — A bateria está boa, alferes. — Então é melhor empurrarmos. Eh pessoal, vamos lá a saltar da viatura e a dar um empurrão. Ali à frente começa a descer, a viatura embala e pega num instante. Saltámos todos da viatura e começámos a empurrar. — Eh pá, engata a viatura. — É o que estou a fazer, alferes. — Mete a segunda em vez da primeira. — Não adianta, alferes. A viatura não quer pegar. O que é que fazemos, alferes? — A viatura não foi vista pelos mecânicos? O que é que eles lhe estiveram a fazer? — Foi, alferes. Pegou à primeira e veio muito bem até aqui. Não consigo perceber o que se passa. — Não vale a pena perder mais tempo na conversa. O melhor é ir chamar os mecânicos. — Ó nosso alferes, o melhor é pedirmos ajuda aqui ao nosso capelão. — disse um dos soldados. — Ouve lá, o que é que o nosso capelão tem a ver com a avaria da viatura? O que é que ele percebe de mecânica? — É fácil, alferes. O nosso capelão não é o padre do nosso Batalhão? — Claro que é. Mas o que é que isso tem a ver para aqui? — Então ele tem obrigação de nos ajudar. — De nos ajudar como? Ele não é mecânico nem percebe nada disto. Não é verdade, capelão? — Sem dúvida, Ulisses. Não vos posso ajudar, a não ser ajudar a empurrar a viatura. — Pode, sim senhor. Não é mecânico, mas é padre. Pode dar uma benzedela à viatura, para ver se ela começa a trabalhar e a avariar menos. Três quartos de hora depois, os mecânicos conseguiram pôr a viatura a trabalhar. — Está pronta, meu alferes. — Podemos seguir sem problemas? De certeza? — Sim, meu alferes. — Vá lá, pessoal, todos para cima. Parece que é desta que vamos embora. Arrancámos, finalmente, para a Quimabaca, apenas com um ligeiro atraso de quarenta e cinco minutos em relação à hora marcada. Íamos a boa velocidade, já na recta entre Quimbele e o hospital, quando a viatura começou aos solavancos. — O que é que vais a fazer? — perguntei ao condutor. — Não vou a fazer nada, alferes. É a viatura. É o motor que está a falhar. Uns metros depois, perto do hospital, ficámos completamente parados. — Como é agora, alferes? — Como é o quê? Não sou mecânico. A solução é descermos da viatura e ir alguém procurar ajuda. Precisamos de outra viatura para nos rebocar até ao parque auto. — Está a ver como eu tinha razão, alferes? — Olhámos para o soldado que, minutos antes, lançara a boca da benzedura do capelão. — Está a ver, alferes? Quem é que tinha razão? Não fizeram caso! Riram-se de mim! O capelão não fez a benzedura e lixámo-nos. Isto só com o apoio de todos os santos, alferes. Sem eles e com estas viaturas nunca mais vamos a lado nenhum. — Olha lá, já que estás tão inspirado, podes ser mesmo tu a dar uma ajuda. Vais com alguns dos teus camaradas pedir que nos venham cá buscar. — Será que ainda vamos hoje para cima, Ulisses? Será excesso de carga? — Não, Capelão. Se vamos ou não hoje para cima, não sei. Mas que não é do excesso de carga, disso tenho eu a certeza. É, isso sim, do excesso de velhice. As viaturas estão fartas de fazer comissões. Deviam também ter direito à reforma. Talvez a o soldado tenha razão, Capelão. Dê uma benzedela à viatura. Pode ser que lhe faça bem. O seu ajudante não lhe traz a caldeirinha da água benta? Se a divina providência não nos der uma ajudinha, estamos tramados. Meia hora depois, tínhamos os mecânicos junto de nós, a inspeccionar a viatura. — Ouçam lá, não era melhor rebocarmos a viatura até ao parque auto? Aqui, vocês não têm os meios necessários. A não ser que queiram ir ali ao lado, ao hospital de Quimbele, buscar umas mezinhas para dar à viatura. — O quê, alferes? — perguntou surpreendido um dos mecânicos. — Umas mezinhas, uns medicamentos, para dar à viatura. Gargalhada geral! — Tu hoje também estás com grande humor, Ulisses. — É natural, Capelão. Apanhei a deixa do soldado. Ele não sugeriu uma benzedela? Eu sugiro o recurso à Medicina. Talvez umas pílulas façam bem ao unimogue. Além do mais, ficarmos azedados por causa da viatura também não nos leva a lado nenhum. — O alferes tinha razão. Aqui não fazemos nada.— disse um dos mecânicos. — O melhor é rebocarmos a viatura. — E nós? Podemos ir também a reboque ou vamos a pé? — É subirem. É quase plano. Só na subida é que talvez tenham de ir a pé. Mas aí a distância é curta. Subimos todos para a viatura da frente e regressámos a Quimbele. Enquanto os mecânicos rodeavam o unimogue de atenções, aproveitei estar junto à messe de oficiais para ir tomar uma bebida fresca. — Capelão, venha daí. Vamos à sala de jantar tomar uma bebida. Temos no frigorífico “cocacolas” e “setupes” frescas. Passo pelo meu quarto e pego uma garrafa de uísque. Ajuda-nos a passar o tempo e refresca-nos um pouco. — Tens aqui garrafas de uísque? — Claro! Não ia levar para a Quimabaca a dotação completa. Tenho na mala as mais caras, que estou a coleccionar. — O que vais fazer com elas? — As mais caras são difíceis de obter. Guardo-as para a colecção. Hão-de ir comigo para a Metrópole, no final da comissão. — E as mais baratas? — As mais baratas são para o meu tratamento antipalúdico. Já se esqueceu de quando esteve comigo no Alto Zaza? Não tomávamos sempre uma tampa de White Horse logo a seguir às refeições? — Não. Não me esqueci. Mas se usas as mais baratas para tratamento, aqui não deves ter nenhuma. Vais abrir uma da tua colecção? — E qual é o problema, Capelão? É mais uma, menos uma. Até ao fim da comissão, arranjarei outras. Nós não somos mais importantes? No quarto, estava o Valério, esticado na cama, a ouvir as ondas curtas. Ficou surpreendido quando me viu entrar. — Tu ainda aqui estás? — Que remédio! A viatura voltou a avariar. É a segunda vez, num curtíssimo espaço de tempo. Íamos perto do hospital quando parámos definitivamente. Nem para trás, nem para a frente! Viemos para aqui a reboque. E agora vamos beber um uísque com «setupe», eu e o Capelão. Anda daí. Fazes-nos companhia. Às dezassete e trinta, entra um soldado na messe de oficiais: — O meu alferes dá licença? — Sim. Entra. O que é que se passa? — Os mecânicos mandam dizer que a viatura está operacional. — Ainda vamos hoje, Ulisses? — Sim, Capelão. É já um bocado tarde, mas não tem problema. A picada até à Quimabaca está boa. Faz-se bem à luz dos faróis. — E não há perigo? — Nenhum, Capelão. A região está totalmente pacificada. É muito povoada. Não há terroristas. E, se os há, estão muito bem disfarçados entre as populações. — E tu não tens receio? — Receio de quê? Dou-me bem com toda a gente e tenho sido muito bem tratado por todos. Até se preocupam comigo! Quando regressei à Quimabaca, após uns dias de prisão forçada no Cuango, por causa das avarias das viaturas, tive uma recepção de primeiro ministro. A população já andava toda preocupada com a falta do alferes. Só lhes faltou levarem-me ao colo, quando me viram chegar! Por isso, esteja sossegado, que anda em segurança na minha companhia. E eu também vou melhor, com a sua companhia e com a ajuda do seu superior. Ele de certeza que não ia deixar um subordinado, cá em baixo, sem apoio, completamente desprotegido. A viagem até à Quimabaca fez-se sem mais avarias. Chegámos tarde. Já todo o pessoal tinha jantado e procurava ocupar o tempo da melhor maneira. Também as sentinelas já estavam nos postos. Por isso, tive de dar ordem aos cozinheiros para improvisarem uma refeição rápida para o pessoal acabado de chegar. Instalado o capelão na minha tenda, com o colchão pneumático em cima de uma esteira ao lado da minha cama, que ele não aceitou por troca comigo, petiscámos qualquer coisa e demos uma volta, à luz das estrelas, pela «praça» central da Quimabaca, onde temos montadas as tendas. Já era tarde para umas visitas às cubatas dos indígenas. |