Tratamento sem esforço

Três aspectos de Sanza Pombo:

 

uma rua principal

 

posto de abastecimento de gasolina

 

Clube de Sanza Pombo.

 

Angola, 30 de Janeiro de 1973

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Eram dezassete horas quando chegou um helicóptero. Às dezoito estava já em Sanza Pombo, no gabinete do médico da CCS:

— Vamos lá ver, então, o que é que se passa.

— Comece pelo furriel — pedi eu. Tem passado um verdadeiro tormento por causa das rações de combate.

— De que é que se queixa?

— Pensamos que se trata de uma intoxicação alimentar, provocada por uma ração de combate.

— Deixe falar o furriel. Ele deve saber melhor que ninguém.

— Dói-me bastante o estômago e ando de dez em dez minutos de calças na mão. Estava frequentemente a provocar paragens no avanço do grupo.

— E o alferes, o que é que tem?

— Desmaiei uma vez e sentia frequentemente dores no lado esquerdo do peito e falta de ar, que me impediram de acompanhar a marcha do grupo. Por minha causa o grupo foi obrigado a fazer pequenas interrupções da marcha. Tinha de parar durante alguns minutos para começar a respirar normalmente, sem dificuldade.

— E o pulso? Tem aí uma grande ligadura.

— Ah, isto é outra chatice! Dei uma queda em Tomar, pouco tempo antes de embarcar para Angola, e fracturei o pulso. Andei bastante tempo com o braço engessado e depois passei a ir semanas a fio para a fisioterapia no Hospital Militar de Lisboa, para recuperar o movimento do pulso e da mão. Hoje, ao subir um monte, desequilibrei-me e, para não cair em cima do soldado que me empurrava para vencer um obstáculo, tentei segurar-me com a mão direita, o que veio agravar a situação. Senti uma forte dor e o pulso começou a inchar. O enfermeiro aliviou-me a dor com pomada balsâmica. Há dias, numa pequena operação que fiz na área envolvente do destacamento que comando, tive o azar de cair mais uma vez em cima do braço direito. Esta é uma zona azarada. Tudo o que me acontece implica sempre com o meu pulso direito.

— Vamos lá por partes. Uma coisa de cada vez. Tire o camuflado para o auscultar.

Depois de uma auscultação minuciosa, o médico concluiu que os pulmões e o coração estavam impecáveis, apesar do esforço. Segundo ele, a falta de ar deveria ser uma questão nervosa, que provocaria uma descoordenação na respiração. Quanto ao pulso, que continuava bastante inchado, depois de tactear toda a zona envolvente, afirmou que tudo parecia estar no sítio. Nada está partido, apenas um ligeiro traumatismo, que provocou a dor e o inchaço. Como solução, receitava uns calmantes e fortificantes. E concluiu a receita, acrescentando:

— Aproveitem a curta estadia em Sanza Pombo. Distraiam-se o mais que puderem. Vão a um bom restaurante, comam uns bons bifes suculentos. Têm, por exemplo, o restaurante do Clube de Sanza, onde se come bem e barato. É o melhor tratamento para uma dieta forçada de dois dias na mata. E para si, furriel, vai tomar estas cápsulas. Pode engoli-las ou abri-las e dissolver o conteúdo num pouco de água. Em breve repõem-lhe o equilíbrio da flora intestinal. Se houve intoxicação alimentar, o pior já lá vai. Pode estar tranquilo, que disto já não morre.

Saídos do gabinete do médico, trocámos algumas palavras:

— Que lhe parece a receita do médico, Rodrigues?

— Acho-a boa. Por mim, estou disposto a segui-la à risca. E o alferes?

— Mas como? Para o meio do mato não levámos dinheiro. Não contei ter lá ninguém a vender-nos sandes e cervejas, como quando fazíamos as nossas operações na metrópole.

— Isso não é problema. Trouxe comigo a carteira.

O furriel abriu o bolso do camuflado e tirou de lá a carteira. Verificou as notas.

— Está a ver, alferes? Tenho aqui que chegue para irmos aviar a receita à farmácia que o médico nos indicou.

— Temos de saber onde fica o Clube de Sanza. Mas antes, vamos lagar as armas e as munições. Dentro de meia hora encontramo-nos em frente ao edifício do comando.

Pensei um momento e acrescentei:

— Não. É melhor junto ao posto de abastecimento de gasolina, ao fundo da rua principal. Pode surgir o comandante ou outro oficial e estraga-nos o tratamento.

— Certo, alferes. Dentro de meia hora no local combinado. Não deve ser difícil dar com o clube indicado pelo médico. Tem de ser numa das duas ruas principais.

Quando cheguei ao local combinado, já lá estava o furriel.

— Conseguiu ser mais rápido do que eu, Rodrigues.

— Ninguém me desviou do rumo da farmácia. O Clube onde nos vamos medicar é já ali, naquele edifício que se destaca dos restantes, com dois mastros para as bandeiras.

Minutos depois, estávamos sentados numa mesa a um canto. O ambiente é agradável. Naquele momento, apenas lá estavam três ou quatro pessoas. Ainda era cedo.

— O que é que desejam comer? — perguntou o empregado.

— Temos de seguir a receita do médico — disse o furriel, que riu ao ver a cara de admiração do empregado. Bifes suculentos com batas fritas e um ovo a cavalo.

— Espere aí , Rodrigues. E antes disso, enquanto preparam a receita? Não seria melhor começarmos por uma sopa? Têm cá sopa? — perguntei ao empregado.

— Sim! E por sinal muito boa.

— Então eu começo o tratamento por um bom prato de sopa.

— Para mim pode também ser o mesmo — acrescentou o Rodrigues.

Pouco depois, comido o primeiro prato com satisfação:

— Alferes, acho que vou repetir a dose. Há muito tempo que não comia uma sopa que me soubesse tão bem!

— Depois não comemos o resto, Rodrigues.

— Cabe cá tudo!

— Com os estômagos encolhidos? Há três dias sem comer já estão desabituados. Mas se manda vir outro prato, eu acompanho-o. Não fica sozinho.

Tínhamos acabado o segundo prato de sopa quando chegou o empregado com uma travessa onde vinham quatro enormes bifes, suculentos e de grande espessura, que nos fizeram arregalar os olhos.

— Onde é que nós vamos conseguir comer tudo isto? — perguntei ao furriel.

— Isto come-se num instante! Ataque, alferes, que eu faço o mesmo.

As minhas previsões estavam certas. Um bife ainda conseguimos comer com prazer. Mas não sobrava mais espaço para o seguinte. Foi com grande desgosto do furriel que a travessa regressou à cozinha, ainda cheia com os dois enormes bifes, que nos piscavam os olhos gulosos com mais boca que barriga.

Passei a noite no mesmo quarto onde estava o capelão. Embora na messe houvesse quartos com camas vazias e sem os habituais ocupantes, que estavam também envolvidos na mesma operação em outros locais, o capelão quis que ficasse com ele, para conversarmos.

Com o cansaço, acabou por não haver conversa nenhuma. Limitei-me a descalçar as botas e a esticar-me sobre a cama. Não me lembro de me ter tapado. Adormeci rapidamente e foi o capelão que me cobriu com um cobertor. Mal abri os olhos, na manhã seguinte, estava ele junto de mim:

— Parecias uma pedra a dormir! Tentei falar contigo, mas não estavas cá . Tapei-te com um cobertor e não deste por nada. Devias andar com o sono bastante atrasado.

— Há três noites que não conseguia dormir em condições... Deitei-me vestido sobre a cama, porque não estava em condições de me despir e meter entre lençóis. Para isso, teria de tomar um banho antes e ter roupa limpa para mudar. E os comprimidos que o médico me receitou puseram-me chumbo nas pestanas.

— O duche e a roupa não são problema. Tenho uma mala cheia dela e somos quase da mesma estatura. Vais tomar um duche e vestir-te de lavado. Depois conversamos.

Aliviado da porcaria de dois dias na mata e com roupa limpa, senti-me outro. O capelão continuava no quarto à minha espera e nem me deu tempo para falar.

— Antes de saíres daqui, preciso de ter um conversa contigo. Ontem, o comandante estranhou não te ver na messe de oficiais durante o jantar. Mandou procurar-te para ires falar com ele.

— Assim que saímos do gabinete do médico, achámos que devíamos seguir à risca a prescrição do médico. Fomos à farmácia aviar a receita e depois de termos tomado os bifes aconselhados pelo doutor, estávamos tão cansados que viemos aterrar imediatamente nas camas.

— Isso vi eu... Isto é, não vos vi aviar a receita do médico, mas dei contigo aqui deitado. Ainda te abanei para ires falar com o comandante, mas não adiantei nada. Não havia terramoto que conseguisse fazer-te levantar. Disse ao comandante que estavas sob o efeitos de sedativos e que ninguém te conseguia acordar. Se ele te perguntar por que razão não te foste apresentar, dizes que adormeceste sob efeito dos comprimidos que o médico te receitou.

— E é verdade. Antes de me esticar na cama, tomei uma colher do xarope que o médico me deu e metade de um calmante. Aqui é que não cumpri com a receita. Achei que dois comprimidos eram demais. Sou contra drogas para dormir. Se a metade produziu o efeito que se viu, com dois nunca mais me levantava.

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