Breve evocação de

Eduardo Cerqueira

  

Foi com pesar que, em finais de Setembro, alguns dias após o regresso de férias, recebi a triste nova de que Eduardo Cerqueira nos havia definitivamente deixado.

Aquele amigo, de cavaqueira amena e agradável, que habitualmente encontrava, de manhã, à mesa do café, enchendo longas e álgidas tiras de papel que, não raras vezes, me dava a ler, nunca mais terei o prazer de o encontrar. E manhãs como essas, a que já gostosamente me habituara, obrigando-me frequentemente a passar por esse café, jamais voltarão a suceder-se. Esse café nunca mais será o mesmo, como o mesmo nunca mais voltarão a ser essas manhãs. Falta-lhes o elemento polarizador, o elemento mais importante, que tanto aí me atraía.  

Eduardo Cerqueira, por volta de 1971.

Ao recordar estes momentos passados, de um passado ainda não muito distante, vejo-me recuar uma boa fiada de anos, ao tempo da minha meninice. Já por essa altura a figura de Eduardo Cerqueira — o Senhor Cerqueira, como nós o conhecíamos — fazia parte da esfera da minha vivência.

Miúdo então, ia frequentemente com meus pais, a meio da tarde e sempre que eles dispunham de uns momentos de lazer, ao Café Arcada, ponto central de encontro de muitos aveirenses e rivalizando com outro, também muito frequentado, o Café Avenida. E se andava em correrias e traquinices por entre as mesas do café, percorrendo-o em toda a sua extensão, tudo isto cessava com a entrada de uma figura alta, sempre bem vestida, de cabelos já grisalhos e com um objecto circular de vidro, que me provocava um misto de curiosidade, surpresa e admiração. Entrara o Senhor Cerqueira!

Cumprimentadas as pessoas amigas, o Senhor Cerqueira vinha aumentar a roda de pessoas que, junto à última das portas envidraçadas que davam para as Pontes, mesmo ao lado da porta de acesso ao hotel, iam conversando e vendo o movimento na rua. E o Senhor Eduardo Cerqueira, vendo que aquele miúdo, habitualmente irrequieto, dele se acercava e o vinha cumprimentar, sentando-se ao lado e olhando-o com curiosidade, tirava aquele intrigante bocado de vidro redondo e, lentamente, recolocava-o, fixando o miudito que atentamente lhe acompanhava todos os gestos.

Eduardo Cerqueira na sua «oficina» habitual - os cafés.

Mas nem sempre as coisas se passavam desta maneira. Não raras vezes, o Senhor Cerqueira ficava-se pelos cumprimentos às pessoas amigas. Escolhia, em seguida, um lugar a seu gosto, de preferência sempre o mesmo, estendia sobre a mesa algumas tiras de papel, pousava uma caneta e, após breve reflexão, ia redigindo os artigos, que enviaria, depois, para os jornais de que era habitual colaborador: um requiem a uma palmeira desaparecida, um apontamento sobre um “fait divers” local, a evocação de uma figura da terra, o desaparecimento de algo ou de alguém que conhecera...

Os anos passaram, na sua célere e ininterrupta marcha. Pessoas foram desaparecendo. Cafés foram sendo encerrados e substituídos por estabelecimentos bancários. Edifícios foram sendo sucessivamente abatidos.

Novas gerações foram surgindo. Novas construções, mais modernas, mais altas, mais incaracterísticas, substituíram as antigas. Recordações e locais de encontro desapareceram, dando lugar a novas vivências. As pessoas foram mudando, crescendo, envelhecendo. E como elas, também a cidade foi mudando, crescendo e renovando-se. E os meninos de então fizeram-se homens.

Uma figura continuava, no entanto, a marcar a sua presença na velha-nova cidade, recordando-a e identificando-se com ela, revivendo e registando para o futuro o passado, evocando as figuras de outrora às pessoas do futuro. Apenas os locais de trabalho foram substituídos por outros, com clientes e mobiliário mais novo. Apenas aquela figura relativamente nova, na meia-idade, dera lugar a outra um pouco mais alquebrada, mas sempre pautada pelo gosto à terra-mãe.

Em finais da década de setenta, nascia na cidade um movimento novo, um movimento tendo por objectivos a salvaguarda do património de todos. Nascia uma Associação, interessada na defesa do património natural e cultural de toda a região de Aveiro.

E uma voz “débil” surge a secundar o coro a favor do património local, com um artigo que faria sair em 27 de Outubro de 1978, nas páginas do jornal “O Litoral” (1), e, uma vez mais, Eduardo Cerqueira voltaria a encontrar-se com aquele miúdo que já não era miúdo e que, como ele, ganhara também apego à terra-mãe. E aquele senhor alto, de cabelo já não grisalho, mas todo branco, acompanhado pela sua inseparável bengala, já não tirava o monóculo ao miúdo curioso. Tornara-se um companheiro mais velho, mais experiente, pleno de conhecimentos e de satisfação em os transmitir às gerações mais novas.

Para além dos momentos de convívio e de troca de ideias, num dos cafés da cidade, normalmente de manhã, ao lado do Palácio da Justiça, Eduardo Cerqueira tornou-se um excelente mestre e colaborador, quer escrevendo artigos, que me entregava para publicação neste Boletim, quer participando em encontros e palestras, quer ainda guiando-nos em visitas de descoberta através da nossa cidade (2).

Quem foi, afinal, a figura que temos vindo a evocar? Que trabalhos nos legou?

É para responder a estas questões que, neste mesmo Boletim, apresentaremos uma sinopse biográfica de Eduardo Cerqueira, bem como uma reduzida relação de alguns dos seus escritos, que foram imensos, apresentados em palestras, quer nas páginas de jornais como “O Jornal de Aveiro”, “O Litoral”, “O Correio do Vouga”, “O Primeiro de Janeiro” e “O Jornal de Notícias”, entre outros, quer ainda em revistas como o “Arquivo do Distrito de Aveiro”, “Aveiro e o seu Distrito” e no “Boletim” da ADERAV.

HENRIQUE J. C. DE OLIVEIRA

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NOTAS:

(1) - Ver referência na relação bibliográfica apresentada neste mesmo Boletim, p. 24, 2.ª coluna.

(2) - Destas visitas guiadas através da nossa cidade é testemunha a fotografia que se reproduz na página 3 deste Boletim.
 

Procurar em «Aveiro e Cultura» outras imagens de Eduardo Cerqueira, na secção ARQUIVO DIGITAL.


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