Mário Duarte (filho)

Fé e Pátria

 

Nos últimos três anos da Grande Guerra, de 1942 a 1945, vivi em Berlim, onde desempenhei as funções de Cônsul de Portugal e Encarregado da defesa dos interesses dos cidadãos brasileiros na Alemanha, Áustria e Polónia.

No começo de 1943, os bombardeamentos, sempre nocturnos, tornaram-se mais frequentes.

Até que, em 22 de Novembro de 1943, voaram sobre Berlim cerca de mil aviões (segundo informações da rádio e da imprensa no dia seguinte) e perto de um milhão de habitantes ficaram sem casa nessa noite.

Na rua onde estava instalado o Consulado de Portugal, arderam todas as casas, desde o Consulado (Kurfürstenstrasse, n.º 124) até ao Hotel Eden, perto do Zoo Garten, numa extensão de mais de um quilómetro. Ardeu também a Legação de Portugal, situada a perto de três quilómetros do Consulado.

A partir de 23 de Novembro de 1943, o Consulado esteve instalado na minha residência, no bairro de Grünewald; e também lá dormiram alguns portugueses, cujas casas foram atingidas por esse memorável bombardeamento da noite de 22.

Em 14 de Fevereiro de 1944, data em que um novo bombardeamento destruiu totalmente a minha casa, perdendo o cônsul todo o seu mobiliário, roupas e recheio da casa, o Consulado teve de ser instalado novamente, debaixo de todos os perigos, na casa do vice-cônsul Brandt, em Wansse; mas por ser local bastante afastado, acabou a chancelaria do Consulado por voltar para o centro da cidade, passando a funcionar numa sala subterrânea das... ruínas da Legação de Portugal. Em cinco meses... mudou quatro vezes de casa a chancelaria do Consulado de Portugal, sempre sob o perigo constante dos bombardeamentos. O serviço nunca foi interrompido.

Apesar de tudo, a vida em Berlim continuava aparentemente sem contrariedades de maior. Se não fossem as dificuldades nas comunicações com o exterior, porque às vezes não funcionava o telefone, nem o telégrafo, nem a electricidade, cujas instalações e redes de ligação eram atingidas pelos bombardeamentos, os alemães quase conseguiam disfarçar as calamidades da guerra, para aqueles que ainda não tinham as suas casas destruídas. Mas as reparações dos telégrafos e dos telefones, quando os bombardeamentos eram de grande intensidade, nem sempre se podiam realizar em um ou dois dias. Após o bombardeamento de 22 de Novembro de 1943, estivemos oito dias sem poder usar qualquer comunicação com Portugal!

Um funcionário do Consulado, ao terceiro dia, teve de viajar de comboio até uma cidade do sul da Alemanha para entregar, na estação do correio, um telegrama do cônsul de Portugal em Berlim, dirigido ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, comunicando que “todos os portugueses em Berlim estavam bem e com saúde”.

Apesar disto, a vida durante o dia continuava a processar-se com aparente (mas só aparente) tranquilidade. Funcionavam alguns cinemas nos bairros que ainda não tinham sido atingidos pelos bombardeamentos e havia concertos pela Orquestra Sinfónica de Berlim e até espectáculos de Ópera popular, sempre de dia e terminando antes de baixar a noite... porque logo que esta vinha toda a gente procurava estar em casa ou perto dos abrigos, a fim de se proteger dos bombardeamentos.

Em vários bairros de Berlim, tinham sido construídos abrigos — os “bunkers” —, enormes, gigantescos e lúgubres blocos rectangulares de cimento armado. Alguns tinham capacidade para albergar até dez mil pessoas! E enchiam-se de gente nas pesadas noites de bombardeamentos, sobretudo a partir de meados de 1944, quando Berlim já tinha mais de metade das suas casas sem telhado. A partir dessa data, portanto, em meados de 1944, com enorme e extraordinária surpresa da população de Berlim, as sereias de alarme tocaram ao meio-dia, a prevenir a aproximação dos aviões. E deu-se o primeiro grande bombardeamento à luz do dia, efectuado por duas centenas de aviões norte-americanos. A partir de então, a vida em Berlim mudou radicalmente. Os bombardeamentos sucediam-se, de noite e de dia. Era preciso estar sempre mais perto de casa ou dos abrigos, dos enormes e monstruosos “bunkers”. Todas as pessoas traziam consigo uma pasta onde, além dos documentos ou livros necessários, havia sempre “sandwiches” ou alguma coisa para beber. Os cinemas, os teatros e a ópera já não podiam funcionar, e os cafés, restaurantes e hotéis eram cada vez em menor número. Tudo aquilo que os ingleses ainda não tinham destruído durante a noite começaram os norte-americanos a destruir durante o dia. Em fins de 1944, a fisionomia de Berlim mudava constantemente, por via dos implacáveis bombardeamentos dos ingleses e americanos.

No início de 1945, os caminhos da véspera já não serviam para o dia seguinte. Algumas vezes tive de percorrer uma cidade fantasmagórica, entre chamas e ruínas, para cumprir com grande sacrifício as minhas funções. A Fé era nosso baluarte, a única “arma” em nossa defesa. Compreendi melhor do que até então que a vida não é totalmente plena sem sopro divino da Fé.

Para evitar que do ar se visse qualquer luz que servisse de ponto de referência aos aviões, todas as casas eram obrigadas a terem “estores” ou cortinas pretas nas janelas, de modo a impedir que durante a noite a luz fosse vista do exterior e pudesse facilitar o alvo aos aviões. Regra geral, durante os bombardeamentos, fechava-se a luz eléctrica e ficava apenas a luz de uma vela. -

No início de 1943, minha mulher teve a fatalidade de partir a perna direita, que ficou em ângulo recto por cima do tornozelo. Fracturou o perónio em duas partes e a tíbia também em duas parte, tendo de permanecer deitada no local onde caiu durante cerca de três horas, à espera que uma ambulância a viesse buscar. Telefonámos a todos os hospitais de Berlim: todos repletos e servindo quase exclusivamente os militares e os sinistrados alemães da guerra. Até que, por fim, milagrosamente, da “Charité”, o maior hospital de Berlim, informaram que havia um único lugar vago e que a ambulância já partira para recolher a minha mulher. E assim aconteceu. Por fortuna, o único lugar vago era um pavilhão da clínica do célebre professor Saüerbrück, considerado o melhor cirurgião da Europa naquela época, general e chefe de todos os médicos da Alemanha, excepto do médico pessoal de Hitler. Ali esteve internada minha mulher durante 36 dias. Os bombardeamentos, então, ainda não eram muito frequentes. Mas quando os havia, ajoelhávamo-nos à volta da cama da paciente. Se estavam visitas, todas faziam a mesma coisa: ajoelhavam-se à volta das camas e rezavam. Se as bombas caíam mais perto, pelas frinchas dos estores pretos brilhavam como faíscas os resplendores produzidos pelo deflagrar das bombas. Instintivamente, curvávamo-nos e com os braços e as mãos cobríamos a cabeça e a nuca, num gesto espontâneo de defesa. E rezávamos. A Fé era a nossa única arma!

Ao cabo de seis meses, minha mulher já podia andar. O célebre médico Saüerbrück informou, contudo, que em virtude dos muitos estilhaços observados nas quatro fracturas da perna, as veias e as artérias teriam de ressentir-se mais tarde, com a idade, porque a circulação do sangue não se faria com a mesma eficácia, e a minha mulher viria a sofrer de uma doença que ele chamou então (1943) artrose. É essa artrose que hoje (1980) tortura a vida da minha mulher, que em Berlim dava a vida, se necessário fosse, ao serviço da nossa Pátria.

Naquele tempo não havia qualquer assistência aos servidores do Estado. De modo que a conta do hospital e do médico Saürbrück foi inteiramente paga por mim.

Minha mulher foi sempre uma dedicada e muito útil colaboradora das minhas funções ao serviço de Portugal. Em Berlim (sem qualquer encargo para o Estado), muitas vezes mitigou a fome a alguns portugueses, nos dias em que havia pouco ou nada para comer, nos então muito raros restaurantes e hotéis da capital.

Hoje, a carreira consular e diplomática não deve ser um meio para fazer turismo ou para amealhar economias. Os diplomatas, como os religiosos e os militares, não se pertencem, nem aos seus.

Militares e diplomatas pertencem à Pátria; os religiosos pertencem a Deus e ao apostolado.

Talvez nenhum funcionário da Administração do Estado necessite de um patriotismo tão natural e uma simbiose com a Nação tão estreita como o diplomata dos nossos dias. É preciso levar debaixo dos sapatos a terra portuguesa.

Um diplomata, quando goza a sua licença, deve visitar sempre a sua região de origem, deve ir perto dos seus amigos, ir junto “da sua terra e dos seus mortos” para que a hierarquia dos factos e das ideias se restabeleça nele ao voltar ao seu posto, e nunca corra o risco de levar consigo uma imagem inexacta do Pais do qual, para ser digno da sua missão, e apto a preenchê-la nunca o seu pensamento deverá afastar-se em qualquer circunstância.

Contando com as percentagens dos vários postos tropicais e com os três anos em Berlim debaixo de bombardeamentos, cumpri mais de quarenta e dois anos de serviço, dos quais também mais de trinta fora de Portugal.

Sempre gozei as licenças a que a lei me dava direito, nunca deixei de visitar Aveiro, minha querida terra. E dela e dos meus conterrâneos tenho recebido sempre um influxo de solidariedade, apoio e coragem, que me levam a dizer — e faço-o com desvanecido orgulho — que vivemos sempre no estrangeiro “com Portugal e para Portugal”.

Tivemos de vencer inúmeras dificuldades. Não quero alongar-me em explicações sobre essas dificuldades. Basta apontar que, no início da carreira, em Port-of-Spain, Trinidad, quando ali estive como cônsul, o custo de vida subiu de tal modo que, a partir de fins de 1939, o Cônsul de Portugal ganhava menos do que qualquer dactilógrafa ao serviço das bases norte-americanas ali instaladas, durante a Grande Guerra, a partir de 1939. Em menos de cinco meses, a cidade de Port-of-Spain, de 70 000 habitantes, recebeu perto de 30.000 soldados, marinheiros e aviadores norte-americanos. O custo de vida subia diariamente com a chegada desses contingentes de tropas pletóricas de dólares. Por mais estatísticas que mandasse para Lisboa, nunca fizeram caso das nossas dificuldades. Mas deixámos Trinidad sem dívidas, porque resolvemos pagar tudo com a venda dos nossos móveis, do frigorífico, do automóvel e até das belas orquídeas, com que a minha mulher engalanava a galeria da casa, e das inúmeras roseiras que tinha plantado nos canteiros dos jardins.

Conseguimos vencer todas as dificuldades e receber das autoridades locais, bem como da comunidade portuguesa, (1) tanto em Trinidad, como no México, onde estive perto de cinco anos como Embaixador de Portugal, sou forçado a dizer, sem vaidade (não será vaidade pecaminosa dizer as verdades), que apesar de eu ganhar menos do que o primeiro secretário da Embaixada do Brasil, não deixei por isso de receber a Gran-Cruz da Ordem do Direito e Cultura e, com surpresa minha, de ser eleito membro da Academia Mexicana de Direito Internacional, por proposta e tendo como padrinho o antigo Presidente da República do México, o Dr. Miguel Aleman. Também da federação Nacional de Charros Mexicanos recebi o diploma de honra e a “Espora de Ouro”, numa festa realizada na Praça Monumental do México, a maior praça taurina do Mundo. Dou por bem empregados todos os sacrifícios (2) nesses e noutros postos, para ser útil ao País que tive a honra de representar.

E nesse trabalho de ser útil ao nosso País, justo é destacar o auxílio precioso da Isabel, minha dedicada mulher e companheira que em La Guardia, em Trinidad, em Berlim, em Havana, no Recife, em Marselha, em Hamburgo, em Madrid, em Santiago do Chile e no México trabalhou (como poucas vezes vi alguém trabalhar) ajudando-me a levantar bem alto o nome de Portugal.

MÁRIO DE FARIA E MELO DUARTE

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NOTAS:

(1) —  Aqui se transcreve o teor da carta dirigida pela Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro de Port-of-Spain, Trinidad, endereçada a Mário Duarte:

"Ex.mo Senhor.

Temos a subida honra de comunicar a V. Exª a que a Associação Portuguesa 1º de Dezembro, de Port-of-Spain, resolveu na sua última sessão, e a título excepcional, nomear seus sócios honorários V. Exª e sua Ex.ma Esposa, testemunhando-lhes deste modo o apreço pelo brilhante papel que V. EX.as têm desempenhado em prol da Colónia Portuguesa e desta Associação, servindo e honrando o nome de Portugal na Trindade.

Permitimo-nos lembrar a V, Ex.ª que é esta a primeira vez que a Associação Portuguesa concede o título de sócio honorário a um Cônsul de Portugal.

Subscrevemo-nos com a máxima consideração,

De V. Ex.a Atto. e Mt.º Obgdo.

Seguem-se as assinaturas do Presidente da Associação, do Presidente da Direcção e do Secretário.

(2) — Nesse período, alugámos um andar de Lisboa ao cargo diplomático, e as duas marinhas, que herdei em Aveiro, davam sal. Isso nos ajudou a viver no estrangeiro.


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