José Pereira Tavares e os estudos da língua

O Dr. José Pereira Tavares é um dos mais venerandos cidadãos de Aveiro, um destes vultos que exornam o quadro de honra da cidade, que a dignificam e que lhe garantem uma identidade cultural. O Dr. José Tavares é uma personalidade ilustre. Nesta breve nota procuraremos evocar apenas o seu perfil de estudioso da língua, no entanto, convém lembrar que, mais ainda do que neste domínio, ele se distinguiu como professor e, de uma maneira geral, como «activista da cultura», predicados que a memória da cidade não deve esquecer e que certamente não esquecerá.

Frontispício do programa da récita de despedida dos alunos do 7.º ano do Liceu Nacional de Aveiro, em cujo verso se lê «Este Pangloss de 1956 evoca os que em 1924 e 1930 foram escritos e postos em cena pelo autor Dr. Álvaro Sampaio, sob os títulos de Pangloss em Aveiro e Crepúsculo de Pangloss».

Como estudioso e professor da língua portuguesa. o Dr. José Pereira Tavares é uma figura imprescindível na primeira metade deste século em Portugal e ainda até aos anos setenta.

Há quase um século, em 1887,  justamente quando José Tavares nasceu, iniciava-se um período áureo da história gramatical e filológica da língua portuguesa. Vários linguistas ou glotólogos (como então gostavam de ser chamados) gramáticos e filólogos, ortografistas e foneticistas (extraordinário escol), reflectiam com seriedade e rigor sobre a nossa língua, lançavam as bases da grande e primeira reforma ortográfica e, sobretudo, formavam a geração que havia de promover e modernizar o estudo e o ensino da língua em todo o país.

Adolfo Coelho tinha então 40 anos, conhecia os estudiosos europeus das línguas românicas e ensinava da melhor linguística portuguesa no Curso Superior de Letras. Epifânio da Silva Dias renovava o ensino da gramática e dava início a uma pratica filológica verdadeiramente científica. Leite de Vasconcelos abandona o estudo da medicina e vai fazer uma carreira espantosa ao serviço da língua e da cultura portuguesa. Guilherme de Vasconcelos Abreu e sobretudo Aniceto dos Reis Gonçalves Viana elaboram e fundamentam uma reforma ortográfica, propõem uma ortografia nacional, racionalizada e simples. Anos mais tarde, o nome de Gonçalves Viana viria ainda a fazer parte da comissão responsável pela reforma ortográfica de 1911, de que ele fora afinal o principal obreiro. Vale a pena recordar os nomes dessa comissão que assinou um dos acontecimentos mais importantes da história da língua portuguesa: Carolina Michaëlis, Gonçalves Viana, Adolfo Coelho, Cândido de Figueiredo, Epifânio da Silva Dias, Leite de Vasconcelos, Júlio Moreira e Borges Grainha. Muitos outros nomes ilustres avultam ainda na historiografia linguística do princípio deste século que foram mestres ou ainda companheiros de José Tavares. Nomearemos em especial: António Augusto Cortesão, António de Vasconcelos, Gonçalves Guimarães, José Maria Rodrigues e sobretudo José Joaquim Nunes.

 

Todos estes nomes perpassam pela obra do Dr. José Tavares, que se formou e cresceu no pleno auge desta plêiada de linguistas. Durante a sua preenchida carreira de professor e de estudioso, deu testemunho abundante e alargou a lição desses mestres insignes. Necessário é que essa lição continue a ser estudada e aprendida.

Na obra do Dr. José Tavares, para além de uma copiosíssima produção voltada para a animação cultural e didáctica, como se pode ver pelos títulos da extensa bibliografia de que neste número se dá notícia, avultam sobretudo os trabalhos de divulgação e escolarização da língua, e a publicação crítica de textos do nosso património clássico. Nesta dupla perspectiva conciliam-se a actividade da investigação e a actividade docente, com evidentes vantagens para uma e para outra. A investigação ganha uma imediata utilidade social, entra na escola, melhora a formação dos jovens e, em última instância, contribui para a «defesa e ilustração da língua». As necessidades da docência impuseram, por sua vez, um certo pragmatismo nos estudos linguísticos e é nesta linha de síntese, entre o pragmatismo e a formulação doutrinária, que se situam os trabalhos do Dr. Tavares.

O mesmo espírito de síntese caracteriza a sua obra, quando a situamos dentro das correntes teóricas que orientaram os estudos de língua portuguesa, na primeira metade do século. Podemos distinguir dois rumos predominantes nesses estudos: por um lado, os estudos motivados por uma intenção normativa, tendente a esclarecer e a fixar a norma sintáctica, lexical e sobretudo ortográfica — é a corrente dos gramáticos e dos dicionaristas, dos defensores da pureza da linguagem, de Cândido de Figueiredo, de Torrinha e de Augusto Moreno, de Rodrigo de Sá Nogueira, de Rebelo Gonçalves, de Vasco Botelho do Amaral, de José Pedro Machado e da Sociedade de Língua Portuguesa; por outro lado, os estudos que podemos designar de filológicos e estilísticos, que promoveram o levantamento dos textos que documentam a história da língua, os monumentos da escrita portuguesa, fixando criticamente a sua forma e facilitando a sua leitura com esclarecimentos históricos e com uma informação lexical e etimológica. Para além deste aspecto, encarando a língua sob urna perspectiva predominantemente sincrónica, alargaram os seus estudos aos domínios da expressão, da estilística da língua e também da geografia linguística. A Bibliografia de Textos Medievais Portugueses, de M. Adelaide Valle Cintra dá notícia do caudal filológico e, no respeitante ao estudo da expressão, os nomes mais memoráveis são os de João da Silva Correia e de Rodrigues Lapa, conterrâneo e quase contemporâneo de José Tavares, e felizmente ainda vivo também.

Autógrafo de José Pereira Tavares, existente no original Salu populi... Abutres de Março de 1939.

O Dr. Tavares foi gramático e filólogo, fez a ligação entre os dois domínios e podemos mesmo referenciá-lo como um ponto de encontro entre os vários estudiosos da língua portuguesa até à última década.

Nas revistas que fundou e dirigiu, sobretudo na «LABOR», encontra-se, entre a sua bibliografia, notícia de quase todos os nomes de filólogos e gramáticos que foram seus contemporâneos ou que o precederam. Não se pode fazer a história do estudo da língua em Portugal, nos últimos 100 anos, sem conhecer esse testemunho.

Na edição de textos clássicos (Gil Vicente, Francisco Manuel de Melo, Rodrigues Lobo, Dinis da Cruz e Silva, Filinto Elísio) dos textos escolares, portugueses e latinos; e dos manuais de gramática, encontra-se o mais importante contributo do Dr. José Tavares para o estudo e, sobretudo, para o ensino da língua portuguesa. De certo modo todos os portugueses que frequentámos o ensino secundário, nas últimas três ou quatro décadas, fomos seus alunos e a ele devemos um pouco da nossa formação linguística e literária. Justo é que o lembremos e que lhe testemunhemos a nossa gratidão. Esta será a melhor das homenagens. 

TELMO VERDELHO


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