Glosa de algumas alusões de Júlio Dinis a Aveiro

 

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Acontece que, todavia, e para a satisfação que me deu em poder identificá-la de bem avisada inspiração, deixou apontada a casa em que efectuou a sua estância de alguns dias em Aveiro: «A casa em que moro fica fronteira à que pertenceu ao José Estêvão. Há ainda vestígios das obras que ele projectava fazer-lhe e que por sua morte ficaram incompletas. Tudo isto se vendeu, e dizem que por uma ninharia.» Por baixo preço, acaso como se conta que sucedeu com o espólio estevaniano da capital. E como, com efeito, testifica o Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa, na sua «Memória sobre Aveiro do século XIX», tão copiosa de informações esclarecedoras da evolução aveirense. O inspirado, contagiante, e inspirador tribuno liberal havia projectado obras que pronunciadamente alterariam aquele ângulo terminal da rua. Após a demolição das casas precedentes e contíguas, estabeleceria um esmerado jardim em comunicação imediata e aformoseadora da casa que herdara de seu pai. Esse bondoso clínico, que por vezes escondia debaixo do capote (porventura do típico «gabão de Aveiro») — a galinha para a canja do doente pobre, não juntou os meios bastantes sequer para manter a suas exclusivas expensas a cursar a licenciatura em Matemáticas o seu tão bem dotado e esperançoso filho cadete — o Rufino —, que afinal a morte arrebatou frustrante e prematuramente. E para o qual, como esteve para suceder com as obras beneficiadoras da residência familiar, o grande paladino dos altos ideais da fraternidade humana, que era o seu irmão primogénito — José Estêvão, o perduradouro patrono cívico, a par da padroeira Santa Joana Princesa no âmbito religioso, dos aveirenses de boa cepa — contribuía, larga, espontânea, afectuosamente, e participava, também, sem haver sobejos consideráveis, com larga fatia retirada do seu soldo de oficial, e acaso dos proventos de alguma outra aplicação de predicados a que o levasse o seu dinamismo, a sua irrequietude, a sua efervescência de temperamento e seus dotes e fantasias criativas, sem fadiga e sem tréguas. Concomitantemente com esse assunto, valerá a pena referir que a Rua Direita — com essa designação toponímica já anterior presumivelmente ao século XVI, ainda por muitos anos, na sua proverbial tortuosidade apresentava à entrada, do lado dos oitocentistas Paços do Concelho, um estreitíssimo traçado. A residência do Dr. Luís Cipriano avançava sobre a actual faixa de rodagem daquela sinuosa artéria, que não consente trânsito senão em sentido descendente, e cuja largura hoje subsistente provém do corte mandado efectuar por José Estêvão, pouco ante do seu inesperado falecimento; e, assim, verosimilmente, em 1862. E salientava-se de tal modo que nessa «excrescência», que se apresentava no termo da vetusta artéria citadina como um abcesso e uma disformidade, havia uma janela que olhava para a Costeira.

Mas não só as duas figuras sob cuja égide os aveirenses colocavam os seus anseios e esperanças de patrocínio figuram num espécime epistolográfico como alvo do preito do visitante de então, que tinha já em regurgitante potência os predicados de escritor de nomeada. Feriram-Ihe a atenção, para o que acaso já teria chegado predisposto por informações concretas ou meras sugestões insinuadas em conversas intencionais, sabidas já de antemão as suas predilecções de gosto, as «trigueiras» de Aveiro. As raparigas morenas, mormente as de ascendência de pescadores e marnotos do castiço bairro da Beira Mar, de tez meridionalizada, de plausível, ainda que hipotética proveniência, ou acentuada mesclagem, mediterrânica, predominavam fartamente na cidadezinha recortada de canais.


Tricana de Aveiro.

Abundavam, e impressionariam o artista prestes a revelar-se, aqui, em contiguidade com essas zonas de ar queimoso, acremador de rostos de proporções dos mais correctos cânones, que uns negros olhos inquietos animavam. As moças de origem popular do povo aveirense, que poderia tomar-se já como autóctone, genuíno, modesto, sóbrio, independente, brioso e digno, as dessa camada que se decantava e se tornava como que um degrau intermédio, de transição entre o povo estreme — esse mesmo em certas circunstâncias tão esmerado como o aristocrata de maior polimento e distinção e estas outras classes que se elevam, por dotes de apuramento valorizador, aos estádios sociais superiores. Essas jovens com qualidades de beleza patrícia, as cantadas e requestadas tricanas, famosas de encantos e dotes de atracção cativadora, que ofuscavam as jovens das classes de mais elevadas esferas, ainda as de mais fulgurantes encantos.  

Sem pormenorizar, bastará, decerto, apontar alguns casos que andam narrados. Por exemplo, a famosa crónica, antológica nos trechos que buscam os temas aveirenses como aquele que o catedrático e homem de letras, académico e político, Tomaz de Carvalho, que foi grande amigo de José Estêvão, numa estância de alguns dias na terra daquele e de outro grande amigo de ambos, Manuel José Mandes Leite — o mais íntimo e mais dedicado dos que viveram em devotado afecto estevaniano — desenvolveu então no «Campeão do Vouga» (5) que, como sobejamente se sabe, foi o primeiro verdadeiro jornal publicado em Aveiro, e que tomou depois, por longo tempo, o nome de «Campeão das Províncias». Num artigo que causou impressão e deixou memória, intitulado «Aveiro no Circo», classifica a tricana de «esse tipo imortal de beleza popular». E acrescenta, exprimindo entusiasticamente a deslumbradora impressão colhida: — «Percorrei o reino inteiro e não encontrareis formosuras como neste pequeno canto de Portugal. Olhos vivos, alegres e travessos, dentes de uma brancura de jaspe, incomparáveis, feições regularíssimas, o corpo estatuário».

E, continuando a realçar-lhe os predicados, não hesita em considerá-la um enxerto da Geórgia ou da Circássia, para depois prosseguir nas demonstrações de incontida admiração:

«Uma tricana, com uma saia de pano azul finíssimo, com a sua capa gentil e graciosa, com o lenço de seda lavrada, a cobrir-lhe dos raios do sol as dinas ondas dos seus abundantes cabelos, vale — a conta foi feita por um bom entendedor vinte das mais aperaltadas e dengosas janotas da capital. Agora acrescentai que conquanto de uma vida dura e cortada de trabalho, o seu trato é por extremo polido e delicado, as maneiras palacianas, o conversar finíssimo e espirituoso — A tricana é o enlevo dos olhos. — Isto vem da raça.»

Foca-lhe todos os atributos de distinção e formosura que afamaram a tricana de Aveiro, pois nem sequer deixou de anotar a maneira insuperada de calçar a chinela chame-lhe embora sapata — que observou «gentil e apertada, podendo conter apenas a extremidade de um pé, o mais chinezmente formoso». E não omite o facto de o «janota» em cuja classificação estão aqueles com quem emparceira — lançar «a sua vista namorada», mais que pela altura dos camarotes, «pelo anfiteatro onde viera brilhar a gentil tricana.

Concretizado, personalizado numa beleza que não só simboliza, mas superlativa a das demais jovens de Aveiro — «trigueiras» na generalidade, ainda que com algumas excepções de contrastantes cabelos loiros, e correspondentes olhos azuis claros, que sugerem uma incomprovada miscigenação de caracteres dominantes anglo-saxónicos na hereditariedade — destaca-se um caso, que vem sendo reiteradamente relembrado, e documenta e ilustra esses dotes que singularizaram as «tricanas» de Aveiro. Da segunda metade do século XIX, corre, referido em repetidos ensejos, com efeito, um caso que deixou ecos inextintos, e flagrantemente comprovativo.

O Marquês de Castelo Melhor, um dos aristocratas de mais relevante fidalguia do país, movido pela circunstância de sua mãe acaso por meros motivos fortuitos ser aveirense de nascimento e, por esse facto suscitador, querer conhecer a terra natal da sua progenitora, aqui veio em visita, que repetiria em posteriores digressões porque «sobretudo gostou das mulheres» (6), de gosto requintado, como era próprio de um representante eminente da mais alta nobreza. E tão bem ou tão mal se deixou conduzir por aquele primitivo propósito de culto materno, que veio a encandear-se na beleza deslumbradora, que ficou na memória, e na lenda subsequente, de uma tricana de cativadores encantos sem par. Seria, nessa época, já longínqua de seguramente um século e um quartel, a mais bela e a mais elegante e distinta dessas esbeltas, esculturais e gráceis raparigas, a que Homem Cristo, tão objectivo e tão avaro de elogios — por consabido temperamento mais propenso a condenar os aspectos de repercussão social nefasta do que do encómio rasgado e avultador — considerou, no caso, incontido na apreciação, com laivos de bairrismo revivido e agora ditirâmbico, precisamente, as «lendárias» tricanas de Aveiro.

O Marquês de Castelo Melhor enfeitiçara-se pela filha de um pescador, modesto de mister, mas daquela compleição somática e cívica que, nos períodos de lazer, quase anulavam as aparências de distinção de meio e de polimento, e daquele apuro de ponte que chegava a sobrelevar, com larga vantagem, pelo hábito e capricho de exteriorização, por exemplo, nas insuperáveis procissões aveirenses, os representantes das mais genuínas famílias fidalgos que com eles se dispusessem a estabelecer cortejo.

Prendeu-se pela Isabel de Almeida, que ficou como um paradigma das potencialidades de promoção social das tricanas, e que apenas não ocupou uma posição das de maior destaque nas rodas da aristocracia nacional, porque aquele titular morreu inesperadamente, nas vésperas da data marcada, já com o consenso régio para o matrimónio, (em circunstâncias tão imprevistas e de razões tão dubitativamente alegadas, que não conseguiram inteiramente debelar as dúvidas sobre as causas de uma morte sem prévia sintomatologia concludente).

Outro caso, também citado por Homem Cristo (7) que ficou gravado nos anais tricanescos, — sirvamo-nos do que suponho um neologismo do académico Tomás de Carvalho foi o da moça, de encantos também de quilate apuradíssimo do suburbano lugar de S. Bernardo, que cativou, rendidamente, o Conde de Soure. Dar-lhe-ia dois filhos naturais, embora um dos quais ilegítimo, mas que, reconhecido por todos os meios vinculatórios, lhe sucederia no título nobiliárquico. Embora, neste ensejo, o casamento não houvesse figurado nas hipóteses prováveis para o par de origens tão desiguais, — o que para a época se revestia, como se sabe, de suma importância esta «meio tricana, meio camponesa» do arrabalde aveirense conservou uma pensão da família, de tão arreigados preconceitos nobiliárquicos, até à tentação a que, já amadurecida e a perder o fresco da beleza deslumbradora, não resistiu a caar-se com um homem pertencente  ao seu meio rural originário.

Já pelos inícios do último decénio do século passado, uma outra jovem de Aveiro, essa já casada e com marido pertencente à sua classe social, o Francisco Maracas, um artista esmerado no seu trabalho, e no seu aspecto, fora dele, artista, pois, naquela acepção do termo em que neste se pretere qualquer significado afim das intenções de pura estética, em favor da designação de actividade manufactora do ganha pão, probo e trabalhador, aprumado e com zelos de apuro, que tinha o culto viril, acaso lusitanissimamente a pender para o domínio machista, da consorte com dotes de beleza de excepção, invulgaríssima — causara sensação em Lisboa.

O Dr. Artur Ravara, médico da Casa Real e que, por dotes evidenciadores, grangeara nomeada prestigiosa, e ao mesmo tempo aveirense muito apegado, apesar da longa separação a que o levara a prática profissional do meio natal tão vinculador, viera buscar a Aveiro a ama do recém-nascido príncipe D. Luís Filipe. Não lhe era estranho que a encontraria na formosíssima Florinda Pirré, cuja beleza invulgar, desencadeadora de platónicas paixões, de deslumbramento, aliava os requisitos de uma impecável saúde, que uma missão daquela natureza tornava indispensáveis. O conceituado médico do Paço buscara-a na sua terra, formosa de enlear os mais exigentes, distinta de porte como qualquer dama que frequentasse a corte, à patrícia que Lisboa admiraria, certo de que de nenhum confronto sairia inferiorizada.

Sabe-se que num dos dias da semana, a Rainha D. Amélia, esbelta ela própria, e de traços regularíssimos, saía numa carruagem descoberta a dar, com o herdeiro do trono, uma volta, em ritmo pausado, pela Avenida da Liberdade. Tinha de algum modo essa digressão como um dever de soberana, que, assim, estabelecia mais uma aproximação com os cidadãos anónimos. E, na verdade, ao longo do antigo «passeio público», um número crescente de lisboetas, àquela hora libertos de quaisquer obrigações impeditivas, deambulavam, aguardando a habitual passagem da carruagem da Casa Real. O motivo, porém, não residia nem no desejo de saudar ou admirar a Rainha, com tantos e tão altos predicados para despertar a contemplação dos admiradores de encantos femininos, nem o de fixar as feições do principezinho — que na ocasião se não podia ainda supor que não subiria ao sólio régio. A atracção dos mirones, que afluíam à grande artéria lisboeta, era, efectiva e decisivamente, a ama do príncipe, a tricana de Aveiro, Florinda Pirré, cuja formosura louvada de boca em boca era alvo de sempre novas e mais numerosas contemplações extasiadas.

Tricana de Aveiro dos finais do séc. XIX.

Deixemos os factos concretos de exemplos frisantes de raparigas de Aveiro capazes de dar uma imagem mais acabada da beleza que lhes era peculiar. Lembremos antes, para encerrar estas laudas de dissaboridas glosas de sugestões propiciadas num fugaz folhear da obra dionisíaca, a sua provada predilecção de homem, incontidamente manifestada no artista, pelas «trigueiras», que tanto o terão impressionado em Aveiro. Dois poemas, além de outros pormenores que nos parecem ociosos recordar, atestam, involuntária ou propositada, essa preferência pessoal, em «As Pupilas do Senhor Reitor», o mais conhecido dos seus romances. O primeiro troca trigueira por um sinónimo: «Morena, morena / dos olhos castanhos / Quem te deu morena / encantos tamanhos» (8). E, mais adiante, numa repetição que põe na boca de um adolescente a desabrochar para a vida e para o amor, insiste: «Morena, morena / Dos olhos rasgados / Teus olhos, morena / São os meus pecados». O outro, esse, dirige-se expressamente a uma «trigueira» — que parece cativar-lhe mais as opções lexicológicas para habitual emprego. A musa inspiradora já não é então a Margarida, mas a taful e afectada, frívola e ávida de namoro promissor, a Francisquinha, filha do ambicioso negociante, com voos de restrito raio, que se negava a pés juntos, com obstinação granítica, a tomar arsénico — o Senhor João da Esquina, calculista e premeditado caçador de noivo conveniente para a filha ambiciosa.

Então, ficcionista que se estreava, pela pena suposta e não muito exemplarmente orientada do novel facultativo Daniel, o versátil herói do romance, cujas fragilidades são ofuscadas pelos dons de simpatia de que nos aparece revestido, o clínico que sobrepõe o homem na flor da vida ao clínico despreocupado de quaisquer eventuais complicações, escreve também denunciadoramente, evidenciando os gostos do escritor: «Trigueira! Onda mais reala / O brilhar de uns olhos pretos / Sempre húmidos, sempre inquietos / Do que numa dor assim? / Onde o correr duma lágrima / Mais encantos apresenta? / E um sorriso, um só, nos tenta / Como me tentou a mim» (9).

Sem levar até pretensões exaustivas a glosa de algumas passagens, se não propriamente de Júlio Dinis, das cartas do médico que conquistara uma alta função na Escala Médica que o diplomara, o Dr. Joaquim Guilherme Gomes Coelho para os seus afectuosos destinatários epistolográficos, creio ter dado a ideia do que elas me sugeriram quanto a Aveiro — o meu já agora dilecto e quase absorventemente exclusivo tema de escriba da septuagenarização de horas sobejas.

EDUARDO CERQUEIRA

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NOTAS 

(1) - Obras Completas de Júlio Dinis, Ed. «Círculo de Leitores», vol. VIII, pág. 305.

(2) - ldem, pág. 318.

(3) - Idem, pág. 254.

(4) - Idem, págs. 317 e 318.

(5) - N.º 58, de 31-10-1852 — Cit.º por Marques Gomes.

(6) - Homem Christo, «Notas da Minha Vida e do Meu Tempo», vol. II, pág. 229.

(7) - Op. cit., pág. 230.

(8) - «As Pupilas do Senhor Reitor, in Ed. do Círculo de Leitores, págs. 17-18.

(9) - ldem, pág. 140 e segs., voI. «Poesias», mesma colecção.


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