José Estêvão

 
 

Biografia de José Estêvão

 

 

 

 

Baptismo e morte de José Estêvão

 

 

 

 

1º Centenário do nascimento de José Estêvão

 

 

 

 

1º Centenário da morte de José Estêvão

 

 

 

 

Iconografia de José Estêvão

 

 

 

 

Discursos de José Estêvão
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1º Centenário da morte de José Estêvão

 

DISCURSO DO DR. AUGUSTO DE CASTRO

 

O Sr. Dr. Augusto de Castro começou o seu discurso por justificar a insistência com que procurou recusar-se à aceitação do honroso convite para usar da palavra naquela sessão comemorativa, pois, a seu ver, só um tribuno poderia enaltecer dignamente, pelo prestígio da eloquência, a gloriosa memória desse que foi o grande tribuno romântico de Portugal, o mais fulgurante dos oradores portugueses de todos os tempos.

Depois de definir a Eloquência e lembrar, numa síntese magnífica, como a faculdade especial de receptividade e de repercussão, que faz da palavra humana um instrumento criador e musical de imagens e emoções, é um produto das primeiras vibrações para sempre geradas na alma, o orador acentuou a circunstância de a persistência do convite lhe ter recordado as suas obrigações de filho espiritual daquela região. E evocando os seus antepassados, linhagem de homens que ilustram Aveiro; evocando tudo - disse - «o que, nas primeiras imagens da minha vida, me liga em amor, em saudade e em filial enlevo a estes horizontes, onde, numa capela florida de aldeia, aprendi a amar Deus com modéstia, a Pátria com orgulho e a Vida com alegria»; declarando obedecer às razões sentimentais que mais fundo calam no espírito, o Sr. Dr. Augusto de Castro afirmou:

«Eu posso compreender o que, no génio e na alma de José Estêvão, pertence ao génio, à natureza e à alma da terra aveirense, porque colhi essas imagens, como ele, na inspiração e no culto da minha infância. Esse passado nele foi uma floresta; em mim, foi apenas canteiro dum pequeno jardim. E em nome desse passado - Aveiro dos meus primeiros anos, Aveiro da aldeia em que fui criado, Aveiro dos meus pais e meus avós -, é em nome dessas raízes do coração e dessa herança que venho aqui falar.»

 

O ORADOR É A PALAVRA E É O HOMEM.  E É COM O HOMEM QUE A MAGIA DA PALAVRA FALADA VIVE E MORRE

 

Prosseguindo, o Sr. Dr. Augusto de Castro disse:

«José Estêvão foi a voz impetuosa, fremente, lírica - vendaval, clarão, rubra chama, doce  harmonia - de tudo o quanto nesta inquieta fulgurante alma da luminosa região aveirense, paisagem de açudes, de marés, de pinhais, de socalcos, de vinhedos, murmurantes sombras e apoteose, verde e viva, de planície, de salgueiros, de ribeiros, de praias - de tudo o quanto neste clima e nesta paisagem é expressão da natureza, graça, fogo, rudes campos, seiva da terra, claros montes, rugido do mar, extensão de areais e colinas -, de tudo quanto no florido, por vezes encapelado e ardente, horizonte de Aveiro é glória e batalha de luz, feitiço de água, paixão, sinfonia e deslumbramento de cor, claridade musical e empolgante do Espaço.

Por todos os títulos do nascimento, das origens familiares, do sangue e da vocação, José Estêvão foi um aveirense, e até à morte ficou português de Aveiro, como a eloquência de Mirabeau foi sempre a imagem e o espelho das areias e dos abismos do Loire em que nasceu, como António Cândido bebeu nas fontes e nas cascatas do Marão essa poesia da contemplação e a majestade da distância, que foram o dom supremo da sua eloquência.»

E acrescentou:

«A glória de um grande orador é efémera - porque a sua projecção, feita de actualidade e de prestígio, viva e momentânea, é feita de um conjunto de qualidades, de dons pessoais de presença, de sugestão verbal, em que, desde a emoção da palavra até aos efeitos da dicção e do gesto, desde o fulgor do texto até ao calor da inspiração, tudo se associa para o prodígio da criação viva da eloquência.

A oratória é, de todas as formas literárias ou estéticas, a única que, como uma fonte borbulha, fio de água que corre torrente que se precipita, dando a ilusão de brotar e nascer à nossa vista, e se perde e morre no eco passageiro da sua própria gestação - maravilha de transmutação, de irradiação e de fusão humanas.

Íntegra, actual, só a memória dos contemporâneos a perpetua. Um discurso - não é apenas o tema e a oração - é também o orador. Como a fama dos grandes actores, a imortalidade da palavra falada só se repercute através dos auditórios e da lembrança dos seus contemporâneos. O discurso publicado constitui sempre uma pálida e incompleta reprodução do milagre da sua criação e da vibração humana que o gerou. Há uma fonogenia na voz, como há uma misteriosa fotogenia física. Briand empolgava as assembleias de Genebra, falando numa língua que uma grande parte dos seus auditores não percebia.

A voz do cantor como a do tribuno possui estranhos segredos emotivos, inexplicáveis sortilégios psíquicos que ultrapassam todos os valores e todas as escalas do som e todos os recursos da harmonia da palavra. E, além da impressão, quase plástica, da voz, há, no mecanismo da eloquência, uma verdadeira irradiação da figura e da presença do orador, a evocação e sugestão do gesto, todo o palco e cenário, que são também instintivos instrumentos de prestígio oratório.

A posteridade de Demóstenes ou de Cícero pertence a uma tradição só indirecta e reflexa. Nenhum de nós ouviu Garrett, ouviu Passos Manuel, ouviu Bossuet. Ler o padre António Vieira não pode ser comparável a tê-lo ouvido. Eu ainda ouvi António Cândido, ainda ouvi António José de Almeida, José de Alpoim, João Arroio, João Franco, Alexandre Braga, Leonardo Coimbra, que foram grandes oradores do meu tempo, e ainda posso ouvir Cunha Leal, derradeiro abencerragem dessa tradição oratória. E conservo essa impressão tanto na memória do meu espírito como na memória dos meus olhos e dos meus ouvidos. Não posso separar nenhuma dessas representações e imagens. O orador é a palavra - e é o homem. E é com o homem que a magia da palavra falada vive e morre.

 

EVOCAÇÃO DO GÉNIO ORATÓRIO DE JOSÉ ESTÊVÃO

 

É impossível evocar o génio oratório de José Estêvão apenas pelo texto literário de algumas das monumentais peças oratórias que estão reunidas nas colectâneas dos seus discursos. A palavra escrita não pode transmitir a vibração ardente e viva, torrente sobre-humana do empolgante génio verbal, como uma labareda que tremula, cresce, se transforma em relâmpago e tempestade, se espraia, ondula como um fogacho de luz, se precipita em clarão, se alonga, cresce, se apaga no horizonte e morre em cinza, ainda incandescente e palpitante.

É preciso ressuscitar o tribuno, a sua figura tocada pela auréola do milagre criador. É preciso, pela imaginação, reviver a apoteose, o momento emotivo de que a palavra foi apenas o esplendor e o eco; recriar o cenário, a comunicação psíquica que produziram o incêndio, a explosão de que o orador foi apenas o prolongamento e a centelha.

É preciso, quando se recorda José Estêvão, ressuscitar aquela tarde célebre de 13 de Fevereiro de 1840, quando o orador entrou na sala do Parlamento para responder a Garrett, que falara na véspera.

José Estêvão tinha 31 anos. O seu grande renome ia apenas começar. Garrett era, sob o manto do seu esplendor literário, então no apogeu, o maior orador da Câmara. A palavra de José Estêvão começa com um murmúrio, toma asas, ressoa na sala ainda fremente da oração de Garrett, na véspera. À expectativa segue-se a surpresa, o entusiasmo. Ao mármore do génio do autor de «D. Branca» e das «Viagens na Minha Terra» segue-se a palavra, já moldada em bronze, do novo tribuno, que trazia da chama dos areais e das colinas da sua terra natal o rubro e sonoro ardor. A sala ouve-o e aclama-o, Garrett abraça-o. Nascera em Portugal a maior voz do seu tempo.

É impossível falar de José Estêvão sem ressurgir também a memória dessa tarde histórica em que, na sala de sessões do Parlamento português, se viu erguer-se a figura majestosa do grande orador e pedir a palavra para pronunciar o seu célebre discurso do Porto Pireu. A soberba cabeça do tribuno, o seu olhar, em que perpassavam por vezes lampejos de águia, tinha o fulgor dos grandes lances humanos. Mais do que um homem que se erguia, era uma força da natureza irrompendo, dominadora, uma grande vaga rolando, abatendo-se, prenúncio da tempestade que se avizinha. Adivinha-se na sua fronte iluminada o clarão ardente da inspiração. E José Estêvão começa a oração sublime, que parece evocar o génio de Demóstenes.

Raras vezes a nobre palavra portuguesa teve, mesmo na boca de Vieira, acertos e apóstrofes mais nobres. É, primeiro, o elogio da «ordem»:

 

«Não há outro poder na Terra senão a ordem». «Quem abateu os mares, quem enfrentou os ventos, quem fez singrar os escaleres, quem deu a mão ao soldado para saltar em terra, quem tangeu os clarins, quem limpou o fuzil, quem fez rodar o canhão?».

 

E segue-se a visão esplêndida do Pireu, a visão do país no princípio do século XIX, a invasão francesa quando «a flor da nossa juventude, o ouro dos nossos cofres, a paz dos nossos campos, a gala das nossas cidades, o sangue dos nossos soldados, a devoção dos nossos povos se empenhavam na destruição do poder colossal do imperador. Sabido é como a Inglaterra considerava pouco esses esforços, depreciava o valor desses sacrifícios e caluniava a gentileza das nossas armas?…».

As apóstrofes imortais desse discurso, traçando, na História, o cortejo das ingratidões, das ruínas, das perfídias dum momento nacional, ficarão, na vida portuguesa, como um dos mais fulgurantes clarões da eloquência de todos os tempos.

Mas o mais dramático momento da palavra de José Estêvão terá sido, sem dúvida, a fulgurante oração pronunciada em 1857, quando do episódio nacional do «Charles et George». A história deste lance, que atingiu a consciência do País e feriu profundamente a dignidade e a soberania nacionais, é conhecida. Um navio português aprisionara nas águas de Moçambique um navio francês, «Charles et George», que se preparava para recolher e transportar um carregamento de negros. De acordo com o tratado para a abolição do comércio da escravatura, assinado entre a França, Inglaterra e Portugal, no caso do aprisionamento dum navio empregado no tráfico de escravos, o navio apreendido fica propriedade do Governo aprisionador. O Governo de Moçambique, considerando boa presa, segundo a lei internacional, o «Charles et George», remeteu-o para Lisboa, com todos os documentos do processo. A França de Napoleão III reagiu, reclamando contra a legitimidade do acto português e, num movimento de insultuosa arrogância, mandou ao Tejo uma unidade da sua esquadra arriar a nossa bandeira e, desprezando os nossos direitos, retomar, em plenas águas territoriais portuguesas, a posse do navio.

A afronta atingiu em cheio os brios nacionais. E foi o verbo vingador de José Estêvão que levantou a injúria, atacando violentamente a França:

 

«A águia imperial - disse - enfadada da sua força de inacção, saudosa de aventuras, ávida de glória, veio do seu ninho de pedra, desses penhascos artificiais de Cherburgo, até às margens do Tejo, só guarnecidas da sua natural beleza e de venerandas recordações; e veio aqui (grande e nobre façanha!) repor a bandeira francesa em um navio de onde nós a havíamos arrancado para que não continuasse a manchar-se, cobrindo o tráfico de escravatura.»

 

José Estêvão havia de morrer cinco anos depois. Essa monumental peça oratória foi quase o testamento nacional do seu génio. Pela voz do tribuno, ainda húmida das lágrimas e sufocada pela dor recente da morte de Luís Cipriano, seu pai, falou a velha alma de Portugal, denunciando ao mundo a felonia e o ultraje. Essa voz que, se ainda pudesse fazer-se ouvir, saberia hoje, diante dos ataques e das injustiças, mais uma vez lançados e desencadeados na hora nacional que atravessamos, ser a grande intérprete da honra e dos direitos de Portugal - essa voz azorrague, veemência e dor -, foi buscar às sombras e às energias do Passado a força, o ímpeto e a amargura da alma portuguesa temperada em todas as provas da História. Era quase o canto do cisne, e esse canto dolorido, fremente, ferido, vibrou, naquela assembleia do Parlamento, como o clamor, a vingadora expiação da Raça.

É dessa admirável oração, que o bronze e o mármore da palavra esculpiram, a famosa passagem que, à distância de 105 anos, nos surge ainda como um clássico monumento de ressoante grandeza literária:

 

«As ondas tocadas da tempestade batem furiosamente no penhasco que as assoberba. Nesta lida, atropelam-se, amontoam-se; sobem umas sobre as outras e repetem assim os ataques, redobram os arremessos, até que galgam a altura onde a resistência as levou e, de lá, fatigadas e desfeitas em espuma, caem no mar de onde saíram, no mar de onde eram, no mar que lhes dera a força, no mar em que se tornam. O mar é a humanidade, como ele larga, vasta, imensa; como ele, querendo sempre saltar fora das suas barreiras, fugir às leis que a dominam e, voltando sempre, apesar da sua inquietação, aos princípios da harmonia natural a que perpetuamente está sujeita e para conservar os quais foi criada. E, serenada a tempestade, que resta dos penhascos em que as ondas já não batem, que o mar apenas roça, que já não atraem as nossas vistas pela luta que sobre eles se travava?».

 

E a palavra do grande orador português interroga simplesmente:

 

«Onde estamos nós? Onde está a França que nós conhecíamos? Choremos todos por ela, que o nosso pranto é pela civilização!».

 

«O nosso pranto é pela civilização» - dizia José Estêvão. E a elegia do tribuno podíamos repeti-la hoje: «… o nosso pranto é pela civilização».

 

LIBERDADE E PÁTRIA

 

Sempre atentamente escutado, o Sr. Dr. AUGUSTO DE CASTRO prosseguiu o seu discurso traçando o grande quadro evocativo das origens que moldaram a inteligência e a vida de José Estêvão e as circunstâncias que as criaram e as conduziram, definindo a época de exaltação nacional, de febre cívica, de fervor literário em que se integraram a vida e o génio do tribuno. E acentuando que a Liberdade e a Pátria foram os grandes estímulos, os ideais quase exclusivos desse período da História - o quadro generoso, romanesco e dramático em que se formaram as gerações do início do século XIX, a que José Estêvão pertenceu -, afirmou:

«Apesar de todos os percalços, de todas as sombras, dos erros e das quimeras dessas gerações, é impossível deixar de as considerar hoje, na distância que nos separa, sem nos inclinarmos diante da inspiração e da estatura dos homens e, no meio das vicissitudes dos factos e dos conflitos, perante a grandeza das ilusões, das intenções e dos combates.

Se a liberdade por que eles se bateram foi por vezes apaixonada e mais verbal do que profunda e consciente, os homens que encarnavam essa liberdade sabiam bater-se - e sabiam respeitar-se. Quando Passos Manuel defendia José Estêvão, seu adversário; quando José Estêvão vinha espontaneamente apoiar, numa hora difícil, a candidatura e a figura de Garrett, seu émulo e seu rival na tribuna e nas ambições parlamentares, as refregas, as oposições, por vezes ardentes e injustas, mas nunca mesquinhas, os contrastes das ideias e dos homens iluminavam-se duma tolerância e duma compreensão humanas, de que o tempo nos fez perder o exemplo e a grandeza.

Nesse ambiente de excessos, em que as ideias se batiam de capa e espada, José Estêvão foi, a par dum grande homem - e esse pertence à memória e ao património da Nação -, aquilo que CARLYLE considerava mais difícil ainda, «um homem». E esse, na sua simplicidade humana, pertence, não me cansarei de o repetir, à região em que o seu carácter se formou, que foi seu lar, em que fundou família, em que veio ao Mundo e onde para sempre repousa.»

Insistindo em que Aveiro foi o cenário da vida de José Estêvão, o Sr. Dr. AUGUSTO DE CASTRO declarou mais adiante:

«Foi aqui, nesta paisagem salina, verde e areia, batida pela luz crua do dia e pela música dos pinhais e das várzeas de oiro, paisagem de poentes de água e de maresia, que ele ensaiou, perto das nuvens e à sombra das estrelas, as asas da sua palavra esculpida no voo das águias e no esplendor das marés. Aveiro foi o ponto de partida e o calmo porto de chegada da sua vida. Aveiro foi a sua casa - e foi a sua alma.

É por isso que, se a glória de José Estêvão pertence à Pátria inteira, que ele serviu e amou, a memória, a soberba lição, a emoção, o rastro humano da sua existência ficaram e estão aqui, ligados ao seu berço e ao seu túmulo.

Um século após a noite em que o grande tribuno morreu em Lisboa, a comemoração da sua morte é um facto nacional. Mas a evocação dessa data, em que a sua vida deixou de pulsar, só aqui, na sua terra natal, é um acto maternal de saudade. Minutos antes, José Estêvão recebera os sacramentos. Morria em Deus. Trouxeram para Aveiro, encerrado numa urna, mandada fazer por sua viúva, o coração do excelso orador. Aqui descansa à espera de que no seu jazigo seja escrito o epitáfio que António Feliciano de Castilho escreveu para esse efeito. E para que em tudo aquele destino fosse português, a casa em que viveu e os seus bens foram disputados em hasta pública.

A hora da imortalidade chegara enfim, com a hora da paz. E é o clarão dessa palavra, que foi das maiores que iluminaram a língua portuguesa, que hoje ressoa na iluminura desta sala. Palavra que, sendo de luta, foi de concórdia; sendo de ardor e fé, foi de exaltação e união; palavra sem ódio, palavra de liberdade e de pátria; palavra em que ressoam os acentos da História; palavra de Portugal…

 

O APELO DE JOSÉ ESTÊVÃO

 

Portugal fez-se em todas as vicissitudes da sua História pelo milagre humano da vontade. «Somos independentes porque o quisemos ser», proclamou Herculano. Nas nossas fronteiras e nas nossas costas vieram quebrar-se, durante oito séculos de existência, as vagas e as tempestades do Mundo. O prodígio da Alma, de que o nosso génio nacional foi exemplo e destino, venceu sempre. Portugal não é apenas um produto da história do Mundo. Portugal é um dos autores da História Universal. Em 1940, ao inaugurar um dos pavilhões da exposição de Belém, de que fui comissário nacional, intitulei essa página «Portugal, Historiador do Mundo».

Na época que a presença histórica de José Estêvão evoca e de que ele foi uma das grandes figuras nacionais, Portugal viveu, lutou, sofreu, sob os embates das ambições, das ciladas, dos ataques estrangeiros. Os exércitos de Napoleão tinham invadido o País. Wellington e os exércitos ingleses tinham-se apossado de Portugal. O Estado emigrara para o Brasil. A Nação estava só. As lutas fratricidas, as emigrações e os exílios tinham-se tornado moeda corrente. O estrangeiro forçara as portas de Portugal. Emancipara-se o Brasil, retalhara-se o País.

Dominada, exangue, fremente, a alma portuguesa estava lá, velha da sua juventude de sete séculos. José Estêvão foi um dos artífices dessa alma que sempre, através de tudo, restituiu Portugal a Portugal.

Certamente, as horas de hoje não se assemelham nos seus pormenores, no seu curso e no seu cenário, às horas de que José Estêvão viveu o rescaldo, as provocações e as dores. Mas o sentido da História é o mesmo e repete-se. A pequena fortaleza sobre os ataques alheios. A tempestade, soprando contra nós, ameaça a pequena nau varrida pelos ventos - por aqueles sinistros ventos que um dos pregoeiros da deserção do Ocidente chamou «os ventos da História».

Mas esta Pátria, que conheceu Ourique, Aljubarrota, Montes Claros, forjou-se de fora para dentro na tenacidade da fé e na perseverança do heroísmo. É difícil de torcer. Aprendeu a viver com calma na incerteza e sabe o preço das vitórias.

Do fundo das sombras da História, neste momento do Destino que vivemos, mais uma vez face à procela, a voz de José Estêvão vem ainda exortar-nos. A voz do discurso de «Charles et George» e do «Porto Pireu» chega-nos, a mais dum século de distância, para nos repetir estas palavras, escritas em Abril de 1861, no seu manifesto aos eleitores de Aveiro, definindo a sua posição e o partido «que começa a formar-se» e a que ele se propõe, no futuro, pertencer. São estas palavras que, ditas alguns meses antes da data da sua morte, podem considerar-se o seu testamento político:

 

«Esse partido - anunciava ele - não se parecerá em carácter a nenhum dos partidos existentes, nem se filiará nas glórias de nenhum deles, nem será um engenho político, incapaz de acção própria e embargamento da acção dos outros, nem um grémio ocioso e solipso que afaste e maltrate como apóstatas todos os que não se curvem às suas idolatrias. Esse partido será a ligação de todas as capacidades prestáveis para a governação pública, tendo por intuito comum a civilização do País, em todas as suas formas.»

 

Estas serenas palavras, incitando-nos ao partido da união e da concórdia, ressoam nesta sala, vindas do túmulo de José Estêvão, do homem que soube ser, em todos os combates da sua vida, um «Cavaleiro Andante da Pátria» - da Pátria que foi a grande chama do seu génio e a razão por que esse génio palpitou.

Essa mobilização da consciência nacional para que, em 1861, a dois passos do fim, o grande orador apelava, é hoje, mais do que nunca, um imperativo português.

Através da memória e do silêncio dos Vivos, é a voz dos Mortos que, neste momento, faz a ritual chamada de presença e de combate:

- Pátria!

E aquela voz, que foi a maior de Portugal do seu tempo, e em que palpitaram os ecos de oito séculos de imortal palavra portuguesa, responde, solidária da Morte:

- Presente!»

 (Transcrito do «Diário de Notícias» de 5 de Novembro)

 

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Dez.2000