Verdemilho

Daniel Paiva Martins, Verdemilho. Memórias de um cidadão comum, 1ª ed., Aveiro, 2007, 184 pp.

XXV

REGRESSO AO BANCO

Finda a comissão militar em Angola, regressei à Metrópole e ao BNU. Era o tempo em que todo o serviço ainda era feito à mão. Por isso, no fim de ano, para contar juros em todas as contas e preparar os demais elementos para elaboração do balanço, faziam-se muitos serões. O horário normal de trabalho terminava às seis horas da tarde. Havia um intervalo de três horas, para tratar dos assuntos pessoais e jantar, após o que se iniciava o serão, que normalmente durava das nove à meia-noite.

Uma noite, ao entrarmos para o serão, reparámos que o nosso colega Zé Trigueiro trazia uma garrafa de espumante escondida debaixo do sobretudo. "Ó Zé, isso é para bebermos no serão?" – perguntou o Pita, para o provocar. "Não, isto é só para homens!" – respondeu o Zé, com os maus modos que o caracterizavam. Zé Trigueiro era um rapaz franzino, dotado de temperamento ácido e respondão, que afinava com muita facilidade e essas características, tornando-o num alvo apetecido para partidas dos companheiros, levavam a que reagisse mal a toda e qualquer brincadeira.

/ 152 / O insulto colectivo que estava implícito na resposta dada ao Pita não podia ficar impune. Por isso, durante o serão, fomos buscar a garrafa ao sítio onde a tinha escondido, bebemos o espumante e enchemo-la de água. Rolhámo-Ia de novo, recolocámos a cápsula e voltámos a pô-la no sítio. O Zé não deu por nada. No fim do serão, pegou-lhe naturalmente e levou-a para casa.

Quando chegou ao Banco na manhã seguinte, o Arturzito, que era ordenança, meteu-se com ele, no seu ar de puto reguila: "Ó Sr. Trigueiro, disseram-me que ontem à noite o senhor levou para casa uma garrafa de água?". "Cala-­te miúdo, que te parto o focinho!" – respondeu-lhe o Zé. Mas ficou de pedra no sapato. . . Ao almoço deve ter verificado a garrafa, porque de tarde ninguém o aturava: "Se sei quem foi o filho da puta que me roubou a garrafa, parto-lhe o focinho!" – clamava aos quatro ventos. E nos dias seguintes continuou com um ar tão irado que nem podíamos dirigir-lhe a palavra. Uma zanga tão ostensiva inspirou o colega Hermano a passar-lhe outra rasteira: num dos serões seguintes, foi ele que apareceu com uma garrafa de espumante escondida debaixo da gabardina. Teve o cuidado de a arrumar de modo que o Zé visse onde estava. Claro que era uma garrafa de água, preparada de propósito em casa. O Zé pegou o isco e roubou-a. Na manhã seguinte, ao ouvir o Arturzito, ia morrendo de colapso: "Ó Sr. Trigueiro, então levou outra garrafa de água? Outra?!! !". Daí em diante é que ninguém o podia mesmo aturar!...

Por essa altura houve alterações inesperadas na Agência e foi mudado o gerente. Poucos dias depois, o novo gerente, Sr. Crispim, satisfazendo o pedido que a mulher lhe fez ao pequeno-almoço, comprou um queijo e guardou-o num armário que havia em vão de escada nas traseiras do seu gabinete. Ao vê-lo guardar o queijo, o colega Manuel Pizarro lembrou-se I que o Zé não tinha vindo trabalhar na véspera. Chamou-o de parte e segredou-lhe, em surdina, para que ninguém ouvisse: "Ouve Zé, esteve cá ontem o Sr. Caeiro (era um cliente importante, negociante de queijo) e deixou dois queijos, um para mim e outro para ti. Como não estavas, guardei-to no armário do vão de escada, detrás do gabinete do gerente".

É claro que, no final do dia de trabalho, o Zé foi ao armário buscar o queijo. Levava-o debaixo do braço quando passou pelo gabinete do gerente, a despedir-se. Ao ver o embrulho, mesmo sem o reconhecer logo, o Sr. Crispim desconfiou que havia ali algo errado; e perguntou:

– Ó Zé, que embrulho é esse?

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– É um queijo – respondeu.

– Queijo? Que queijo?

– Um queijo que me deram.

Foi como se uma campainha tivesse soado na cabeça do Sr. Crispim, que de repente reconheceu o embrulho. Mas ainda inquiriu:

– Deram-lho? E onde é que o foi buscar?

– Ali, àquele armário – disse o Zé.

– Alto! – exclamou o Sr. Crispim, esse queijo é meu!

– Perdão. É meu! Deram-mo!

– Não é nada, é meu! Comprei-o!

E a discussão entrou num círculo vicioso, para gozo da comunidade. O Sr. Crispim garantia que tinha comprado o queijo; Zé Trigueiro, escaldado como estava com a história recente das duas garrafas de espumante, não abria mão de que o queijo era seu, que lho tinham dado. Claro que, estrategicamente, o Manuel Pizarro, única pessoa que podia esclarecer tudo, tinha dado "ás de vila Diogo". E o Sr. Crispim, para que a esposa pudesse ter o seu queijinho ao pequeno-almoço, não teve remédio que não fosse levar o Zé à loja onde nessa manhã o tinha comprado, para que o comerciante confirmasse a venda.

Não era só o tempo em que tudo ainda se fazia à mão; era também tempo em que nos bancos só trabalhavam homens. Dois ou três anos depois foi admitida a Lena, que, tanto quanto me lembro, foi a primeira mulher a entrar como empregada numa agência de província dum banco.

A Lena era uma mulher linda. Na verdura dos seus vinte e dois ou vinte e três anos, com uma carinha de boneca de porcelana, muito branca, muito fresca e apetitosa, tinha umas pernas fabulosas. Usava mini-saia, uma novidade desse tempo, muito mini, como Mary Quant, sua criadora, recomendava. Sendo jovem viúva de guerra, já com dois filhos, vestia toda de negro. Então, o brutal contraste da brancura daquelas coxas esplendorosas com o – curtíssimo! – negro da mini-saia, era uma visão digna de fazer parar o trânsito em qualquer lado.

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Só o vê-la na rua, em tal preparo, já era motivo de murmuração generalizada naquela cidadezinha de província; imaginem o que não foi a sua entrada no banco: aquele balcão nunca tinha visto tamanho corrupio de clientes, nem sonhava que viesse nalgum dia a ver os homens, em fila, inventavam perguntas a fazer sobre depósitos, sobre empréstimos, sobre o que calhasse para poderem parar um pouco no balcão, a mirá-la com olhos gulosos de cobiça. De tal modo que um velho comerciante, cliente endinheirado e poderoso, quando lá chegou e viu aquele panorama, olhou para ela e atirou do alto dos seus dois metros, com aquele vozeirão habituado a dar ordens: "Ai coitadinha, uma pombinha no meio de tantos galifões!..."

Não se enganava, porque de facto, mesmo no interior da Agência, após a entrada da Lena nada ficou como dantes. Ela, que não era estúpida, sabia bem medir o valor daquelas pernas, mas não só: conhecia os homens e o fascínio que sobre eles exercia o seu olhar, o seu sorriso, naquele lindo palminho de cara que Deus lhe dera, e, sobretudo, que ao falar-lhes, naquela vozinha meiga que mais parecia um ciciar erótico do que falar, os deixava completamente de rastos, por mais santo ou frio que qualquer um pudesse ser! E não hesitava em usar tudo isso em seu favor.

Então, dum momento para o outro, houve coisas estranhas que começaram a acontecer naquele Banco. Por exemplo, o Nelito, um puto de dezasseis anitos travessos, que era ordenança e preparava os livros de cheques requisitados pela clientela numa mesa defronte da secretária da Lena, começou subitamente a deixar cair os carimbos, os lápis, as borrachas para debaixo da mesa dela. Passava o tempo a ter de se abaixar para os apanhar do chão. De tal modo que mesmo o Gouveia, até aí tão arisco com ele, passou a abaixar-se também para ajudar o miúdo.

Um outro colega, o Germano, era tão habilidoso para as mecânicas e outros trabalhos manuais que fora ele que, a pedido dos vizinhos, instalara todas as antenas de televisão lá no prédio em que morava. Tinha um Fiat 600, em cujo motor, como é bom de ver, não havia segredos para ele. Como a Lena comprou também um Fiat 600 em segunda mão, mas não se entendia lá muito bem com o carro, que volta e meia a deixava a pé, nada mais natural do que recorrer à ajuda do Germano quando estava enrascada. O problema foi que, uma noite, a mulher do Germano acordou com ele a revolver-se na cama, a arfar, murmurando baixinho: "Ai Lena, Lena! Ó filha! Ó minha filha!...". Foi o bom e o bonito: a senhora fez uma cena que nem queiram saber!...

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Mas problema ainda maior era o do Teixeira, que se deixou apaixonar pela Lena. O Teixeira, meio solteirão, ficou perdidamente apaixonado, a ponto de perder a noção do real e do ridículo, de modo que o Nunes, aproveitando-se disso, passava o tempo a martelar-lhe nos ouvidos: "Sabes Teixeira, aquela é mesmo a mulher que te convém: é jovem, é bonita, tem carro, tem casa... Repara que nem filhos precisas de lhe fazer, que ela também já tem...". Era a malta a gozar e o Teixeira, auto-iludido, a sofrer. Até que um dia se apercebeu, finalmente, que ela não lhe ligava nenhuma importância e andava de amores bem adiantados com outro. Ficou como doido! Nem imaginam os disparates verdadeiramente impensáveis que cometeu.

Mas não foi só ele, dentre os colegas, que ficou apanhado. O gerente também. Era viúvo recente como ela, mas com mais do dobro da idade. Começou a rondá-la, arranjou mesmo estratagemas para que ficasse no Banco com ele para além da hora... Mas nada conseguiu. Ficou furioso e, como não era bom de assoar, resolveu vingar-se. Um dia chamou-a ao gabinete. Sem ousar referir-se à mini-saia, começou com pezinhos de lã:

– Sabe D. Lena, a senhora é uma mulher muito bonita...

– Muito obrigada, Sr. Gomes – interrompeu ela.

– Não tem de quê – prosseguiu o Sr. Gomes. Como ia dizendo, a senhora é uma mulher muito bonita e as pessoas não estão habituadas a ver mulheres a trabalhar nos bancos. Já reparou certamente na agitação que a sua presença provoca no balcão?

– Sim, tenho vindo a reparar num certo movimento disse ela. E armando-se em ingénua: mas não sei se isso foi sempre assim...

– Não, não foi sempre assim, é o resultado da sua presença. E não é nada bom. Preocupa-me o andamento dos serviços, que foi afectado: os colegas andam distraídos, não rendem, cometem erros... Se ao menos a senhora arranjasse uma bata...

A Lena percebeu logo e não se desmanchou:

– Muito bem, Sr. Gomes, não há qualquer problema: eu mando fazer uma bata.

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Passados dias, logo de manhã, à abertura dos serviços, entrou no gabinete envergando uma elegantíssima bata preta.

– Pronto, Sr. Gomes, já tenho a bata.

– Muito bem – respondeu ele.

Mas ao levantar os olhos do documento que estava a ler, ficou petrificado: a bata da Lena era um palmo mais curta que a mini-saia.
 


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