(...)
De
súbito, o oleiro cuspiu e, dando meia volta, empurrou o carro adiante
de si. Magro e apressado, o homenzinho parecia um pardal aflito por voar
...
Chegámos ao pátio da
olaria e já fervilhava um grupo de curiosos, inacreditável para um fim
de tarde. A camioneta entrara abusivamente no recinto e os dois homens
que a tripulavam faziam a alegria daquela gente.
Ao
surpreender a filha agarrada por um dos homens, o Paulino ficou fulo
e, atravessando o pátio, encafuou-se na oficina. Lá dentro, soltou
uivos e escaqueirou quanta loiça apanhou adiante de si ...
Em
dada altura pareceu-me ouvir gritar pelo meu nome:
—
Zé Pardal!
O
berro viera lá de
dentro, e era a voz do velhadas ...
—
Chamou-me, Tio Paulino?
Que
sim! Queria que a cabra da filha corresse com a tropa fandanga para fora
do pátio!
—
Bem, se vossemecê quer ... que eu vá dizer isso à Miquelina...
E
fui.
Não
tinha ainda acabado de segredar o recado, quando a magrizela me joga um
empurrão e desarvora ao encontro do pai ...
Corro
atrás dela e ainda oiço o princípio da bulha:
—
Seu velho indecente! Vossemecê transforma a cama da minha santa mãe
num curral de porcos ... e eu não posso
receber os meus amigos?!
—
Fora com essa corja! — vociferou o Paulino, quebrando mais um tacho.
— Vou queixar-me ao regedor! Eles a fabricarem bonecos
no lençol e eu a berrar aqui-d’el-rei! ...
Muito direita, a
Miquelina fincou os pés no chão, tão pernalta que parecia uma
forquilha, e enfrentou o oleiro, ameaçadora:
—
Se abre a goela eu ... fujo com esse homem!
...
Aparvalhado,
o velhadas gemeu:
—
Foges ...?! — E o pobre ergueu as mãos à cabeça, aflito: — Oh,
desgraçada, mas esse tipo é casado!
— Foi! ... Foi! ...
— retorquiu ela, gingando-se, sabida. — Agora ele é tão livre como
eu! — E cuspiu, desprezível: — A mulher dele raspou-se com outro!
Falho
de forças, o Paulino amparou-se à pia da greda e lamuriou:
—
Eras capaz de abandonar o pobre do teu pai por um gabiru que mal
conheces?!
Então
a Miquelina soltou uma gargalhada nervosa que encheu a olaria e
sentenciou:
—
Sou uma mulher como as outras! Quero ter filhos! Preciso dum homem,
ouviu?!
—
Galdéria! — ganiu o velho, babando-se pelos queixos abaixo.
Mas
quem calava agora a Miquelina?:
—
... Tenho peitos, tenho tudo que as outras têm; não sou nenhuma mula
amaldiçoada!
Nesta
altura, o Paulino encarou-me e fez-me sinal para que eu saísse dali ...
(...)
Intrigado com este nome — bonecos
de luz?! — procurei saber que coisa era essa que a engenhoca
fabricava. E as respostas chegaram-me ainda mais confusas:
—
A máquina atira ali pró lençol tudo quanto a gente vê na vida!
—
Atira pró lençol?! — exclamei, pasmado. — Mas como é que isso
acontece?!
—
Acendem uma luz dentro da gaja, corre
uma fita ... e a gente vê logo no lençol os bonecos
de luz!...
Sem
entender patavina, resolvi não fazer mais perguntas. Quando a tal
fabricação começasse ... então eu veria de que se tratava.
E
moído de entusiasmo e de comichão — esperei ...
Quando
anoiteceu, o Nicolau sacou de uma ripa e afugentou toda aquela gente
para fora do recinto. Levado na enxurrada, eu fartei-me de berrar que
pertencia à casa ... Mas só a intervenção da Miquelina
—
«Esse não, Nicolau! Esse miúdo vive cá na oficina!» — conseguiu
que o estúpido do gordo me arredasse para o lado.
Agradecido,
peguei-me à saia da minha protectora e perguntei-lhe pelo pai. Mas este
meu cuidado só provocou desprezo e irritação da sua parte:
—
Quero lá saber dele! A esta hora está caído de bêbado nalguma venda!
...
Lá
fora gerara-se uma tempestade de gritos e de apupos. Eram os miúdos
escorraçados e o mulherio curioso que àquela hora voltava do campo. Não
poupavam também a Miquelina ...
E uma pedrada arremessada de longe acertou no telhado da
oficina, rolando com alarido pelas telhas abaixo.
Então
a filha do Paulino abeirou-se do muro e ameaçou os atrevidos de que
mandava chamar o regedor.
Armado
com a ripa, o Nicolau foi lá fora ver se caçava o malandro ... Andou
pelo meio da malta, berrou, insultou meio mundo, chegando a ameaçar de
que recolhia a máquina no carro e abalaria. — Súcia de bestas! —
vociferou. — Pérolas a porcos era o que ele lhes oferecia naquela
noite! Não ia correr bocados de fitas colados ao acaso ...
Nada disso! Desta vez iam ver uma fita inteira! A melhor fita do
mundo! Um espectáculo que nas grandes cidades seria pago a peso de
oiro! — E, voltando ao recinto, fez lume no isqueiro e incendiou um
bico de carbureto. Ergueu a luz no braço curto, pedindo que lhe
trouxessem uma mesinha.
A
Miquelina obedeceu ligeira e —
pronto! — uma mesa foi colocada junto da cancela do pátio.
Então
a assistência foi avisada do preço de cada entrada. Mas davam-se
facilidades aos fedelhos; dois podiam avançar com um bilhete ...
E corridas as primeiras partes, cada entrada baixava para metade
do preço...
Após
alguma regatice, as cadeirinhas do recinto foram ocupadas pelos mais
endinheirados da aldeia; depois, anuíram os rabugentos, gente que
rosnava por tudo e por nada, alguns trazendo um banco ou toro de madeira
para melhor se amesendarem. E por fim furaram os malteses maltrapilhas,
mexidos como ratos, que baixavam logo os rabos vadios sobre a terra do pátio.
O
Nicolau bateu com a ripa no tampo da mesa e soltou o último aviso aos
que ainda rondavam o muro:
—
Isto vai começar, meus senhores! Ainda estão a tempo de ver a coisa
mais engraçada desta vida! — Mas emendou logo: — Engraçada ... é
como quem diz ... Porque este actor tanto faz rir como chorar! ... —
E, elevando a voz, à laia de charabaneco de feira, anunciou: — É
entrar, meus senhores! É entrar! ... Venham ver uma fita inteirinha
do Charló, o melhor actor do mundo!
Quando
o Nicolau soprou a luz do gasómetro, o recinto parecia um matagal de cabeças
volvidas para o lençol. Respirava-se um ar morno. E o canto das cigarras
brotava dos mil buraquinhos da terra.
Buscando
maior comodidade, eu anichei-me junto das pernas magras da Miquelina. Coçava-me,
cuspia para o lado; e por fim perguntei-lhe:
—
Porque não começam isto, Miquelina?
Mas
ela não estava para graças:
—
Parvo! A máquina não vai logo à primeira!
De
repente, chispou um relâmpago sob o alpendre e que as mãos rápidas do
Lopes logo abafaram de sombras enormes. E quando todas as cabeças se
volviam para o sítio da engenhoca, foi então que um jorro de luz, saído
pelo olho da gaja, atravessou o
recinto, iluminando o lençol ...
Que
coisa fantástica tínhamos diante dos nossos olhos!
Letras
brancas, certinhas, surgiam sobre o quadrado de pano que
se tornara preto ...
Depois, zás!, uma
casa, com portas e janelas, um
bocado de céu por cima do telhado...
«Espantoso!
Tudo, tudo, como a gente vê ao natural! ... Olha! Olha! Um automóvel
atravessou a rua e parou à porta da casa!...»
—
Miquelina! Como é que o carro foi parar ali ao lençol?!
Zás!:
um jardim, cheio de árvores... («As folhas das árvores mexem,
Miquelina?!») Surge agora uma
mulher com um filho ao colo... A
mulher anda aflita de um lado para o outro...
e
tanto caminhou que
foi dar à casa fina onde estava o automóvel à
porta...
(«E
querem saber o que aquela malvada fez?»): Escondeu
a criança dentro do carro e... e
fugiu!!!
Nisto,
aparecem dois tipos mal-encarados que, após certos olhares desconfiados,
resolvem pular para o automóvel e fugir nele!
—
Miquelina! Miquelina! O miúdo está dentro do carro!!! Os gajos vão
fazer mal ao miúdo?!
Levei
uma palmada:
—
És chato! Deixa-me ver a fita! Não fales!
«Merda!
Se eu não falo rebento!»
...
O automóvel atravessou uma rua e
os dois ladrões foram surpreendidos pelo choro do menino...
Trémulo
pelo cagaço, um dos cobardolas puxa por um pistolão e revista o carro...
Assustado,
trepo para o regaço da filha do Paulino. Subo ainda um braço ao pescoço
dela... e fecho os meus olhos sobre o seu peito.
De
súbito, fiz uma descoberta: «A Miquelina é magrizela... mas tem aqui
umas maminhas bem grandes!...»
Fui
sacudido:
—
Larga-me! Vai pró chão! Olha pra ali!...
Olhei...
Um dos
malvados estava agora com a criança ao colo...
E fazia
gracinhas e toda a sorte de
momices para distraí-la... Depois,
como
o outro pulha lhe desse uma cotovelada, colocou sorrateiramente o
anjinho num caixote de lixo — e
piraram-se no automóvel...
Mas do fundo
da rua, aproxima-se um homenzinho, de bengala e de chapéu de coco, que
caminha como os patos...
E quando este janota passa por debaixo de uma janela, arrumam-lhe lá de
cima com uma porção de lixo...
Uma
gargalhada encheu o recinto. Todas as cabeças se movem de satisfação
pelo inesperado da partida; e há ainda os que exclamam:
—
É o Charló! Cá está o gajo...
...O homenzinho sacode o pó da
fatiota e, qual não é o seu espanto, topa com uma criança a palrar no
meio do lixo!!!
Mas o tipo não
se atrapalha: pega no miúdo e, armado em ama, embala-o e faz-lhe
gracinhas...
(«Que piada que o tipo tem! Olha o bigodinho dele!... E que grossas que são
as suas sobrancelhas!...») Por fim, termina a paródia e resolve colocar o fedelho no mesmo sítio...
Mas... («Que azar!») — aparece
o Polícia!!!
Atrapalhado,
o homenzinho faz uma pirueta...
e agarra de novo na criança!...
Desaparece o
Policia —
e ele logo se agacha para abandonar o fedelho...
Zás!
— outra vez o chui, que ficara
desconfiado com o vagabundo...
O homenzinho
então pega no pimpolho e abala com ele...
Mas ao topar mais adiante um
carrinho com um bebé — encafua
aí o pimpolho...
Surge uma
velha-gaiteira que, ao dar com duas crianças em vez de uma, berra Ó
da guarda! e bate com um chapéu-de-chuva
nos costados do Charló... Este pula, aflito, levando uma grande coça — mas, ainda por maior azar, volta o Polícia!!!
Este resolve
prender o homenzinho...
Mas o nosso amigo é mais
esperto do que o chui... Pega de novo no menino
—
e foge...
ROMEU
CORREIA, Bonecos
de Luz,
2ª ed., Lisboa, Editora Arcádia, 1975, 184 pp. (Excertos dos caps. VI e VIII).
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