O PRAZER DE LER - III

 

Uma fase mais evoluída correspondia às férias grandes, passadas em Celorico da Beira, na casa dos avós maternos.

Na sala de estar, cuja janela dava para um cume mais elevado da serra, existia, a um canto, uma estante envidraçada repleta de livros. Eram lombadas e mais lombadas, perfiladas como soldados coloridos com galões dourados, que formavam palavras de sentidos enigmáticos: As Pupilas do Senhor Reitor, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Serões da Província, Sete Semanas em Balão, A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, Viagem ao Centro da Terra, em suma, rótulos e mais rótulos, alguns com nomes repetidos de pessoas desconhecidas. Noutra prateleira mais abaixo e de menor altura, os livros não tinham cores. Era uma enorme fiada de livros pequenos de lombadas idênticas, todas com a mesma indicação de três tostões e, por vezes, com títulos que já tinha lido nas lombadas mais atraentes: Frei Luís de Sousa, Memórias do Cárcere, A Freira no Subterrâneo, Amor de Perdição, O Arco de Sant'Ana, ...

Todos aqueles nomes começaram a intrigar-me. Começaram a espicaçar-me a curiosidade e a suscitar perguntas:

- Avô, o que são as pupilas? Quem são os fidalgos da Casa Mourisca? Quem é que deu a volta ao mundo? Pode-se ir ao centro da Terra? O que é que a freira está a fazer no subterrâneo?

O que é que a freira está a fazer no subterrâneo?! Quem é que deu a volta à Terra?! O que são as pupilas?!... Tanta pergunta em rajada deixou o avô Xico completamente desconcertado! Como satisfazer a curiosidade do catraio?

Numa bela tarde, numa daquelas tardes abafadas de Verão, que prenunciam trovoada e nos tornam molengos, sem vontade de andar na rua, o avô Xico chamou o catraio:

— Filho, anda cá. Senta-te aqui, perto de mim.

Sentei-me.

— Queres saber quem são aquelas pessoas que há dias me perguntaste

— Quero sim, avô.

— E tu consegues trocar as tuas correrias pelos quintais pela leitura daqueles livros?

Fiquei momentaneamente indeciso. Trocar as correrias pelos quintais pela leitura dos livros? Deixar as brincadeiras, aquelas horas agradáveis na oficina do Vaz Preto, o sapateiro do outro lado da rua, que conta histórias da vida, me dá os pregos e me ensina a fazer brinquedos? Deixar de ir, nas tardes mais quentes, para a carpintaria perto de casa, onde arranjo as tábuas e o material necessário para as minhas construções de miúdo? Deixar as correrias e os passeios pela rua até ao eucaliptal onde estão a construir o hospital? 

A resposta tardava a sair. O tempo não parava de avançar. E o avô Xico, pensando já que estava livre das perguntas embaraçosas do miúdo, procurou encerrar a questão:

— Estás a ver? Ainda és muito pequeno para ficares preso com a leitura daqueles livros. É melhor ires correr e brincar. Quando fores homem, se o tempo te deixar, poderás lê-los.

Este adiar para um dia incerto fez-me decidir:

— Avô, deixe-me ver os livros. Só vê-los. Um bocadinho só. Abri-los e mexer-lhes. É só para ver o que está lá dentro.

O avô Xico levantou-se. Foi à escrivaninha, ao canto, entre a janela que dava para a serra, cujo cume distante me atraia o olhar, e a porta para o corredor. Levantou a tampa de ripinhas de verniz louro, que deslizaram para a zona escondida do móvel. Abriu uma gaveta. Remexeu vários objectos pequenos. Encontrou a chave. Voltou a fechar a gaveta. Desceu a tampa de correr da escrivaninha. Percorreu calmamente a sala, colocando-se em frente da estante dos segredos, e enfiou a chave na ranhura. Tudo pausadamente, tudo metodicamente, esticando tremendamente o tempo, que parecia a eternidade. Tanto tempo para chegar aos livros?! Será que mereciam tamanho suplício? Finalmente, deu a volta à fechadura e abriu a porta envidraçada, patenteando aos olhos do miúdo todas aquelas lombadas coloridas, agora sem as grades dos caixilhos. Os livros estavam quase acessíveis!

— Que livros queres tu ver? Estes maiores, de lombadas coloridas? Ou os das estantes inferiores, mais pequenos?

— Deixe ver, avô. É só abri-los e mexer-lhes.

Naquela tarde, depois de abrir e folhear, cheio de curiosidade, aqueles volumes de paralelas linhas cheias de segredos, iniciei a leitura, nas horas de maior calor, dos livros que possuíam, de tantas em tantas páginas, imagens perfeitamente desenhadas, no mesmo estilo daquelas magníficas ilustrações de Gustave d'Oré, que causam a nossa admiração.

Durante uns dias, nas tardes de maior calor, mantive-me sossegado por longas horas, viajando em balão por países exóticos, na companhia de não menos exóticas personagens. Fiz parte da tripulação do Capitão Nemo e com ele andei nas profundezas do mar. Até na Lua andei. Mas isto nem era novidade, porque muitas vezes andava na Lua, em correrias pelas hortas de Celorico, explorando recantos que, apesar de muitas vezes repetidos, apresentavam sempre novos encantos. Mas, desta vez, andei mesmo na Lua, na superfície daquele romântico satélite que redescobri, anos mais tarde, quando fiquei quase uma noite inteira sem dormir, para assistir em directo ao primeiro desembarque do Homem.

Em pouco tempo, tinha esgotado a colecção de Júlio Verne, há tantos anos adormecida nas estantes do meu avô. Retomei plenamente as brincadeiras e correrias pelos quintais quando o meu avô me pôs nas mãos «Os Fidalgos da Casa Mourisca». Emperrei ao fim de alguns capítulos. De tal modo fiquei farto daqueles fidalgos bolorentos e de bolsos vazios, que, até hoje, não consegui retomar a leitura e levá-la até ao fim.   >>>

 

 

página anterior início página seguinte

08-04-2019