Uma
fase mais evoluída correspondia às férias grandes, passadas em Celorico
da Beira, na casa dos avós maternos.
Na
sala de estar, cuja janela dava para um cume mais elevado da serra,
existia, a um canto, uma estante envidraçada repleta de livros. Eram
lombadas e mais lombadas, perfiladas como soldados coloridos com galões
dourados, que formavam palavras de sentidos enigmáticos: As Pupilas do
Senhor Reitor, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Serões da Província, Sete
Semanas em Balão, A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, Viagem ao Centro da
Terra, em suma, rótulos e mais rótulos, alguns com nomes repetidos de pessoas
desconhecidas. Noutra prateleira mais abaixo e de menor altura, os livros
não tinham cores. Era uma enorme fiada de livros pequenos de lombadas
idênticas, todas com a mesma indicação de três tostões e, por
vezes, com títulos que já tinha lido nas lombadas mais atraentes: Frei
Luís de Sousa, Memórias do Cárcere, A Freira no Subterrâneo, Amor de
Perdição, O Arco de Sant'Ana, ...
Todos
aqueles nomes começaram a intrigar-me. Começaram a espicaçar-me a
curiosidade e a suscitar perguntas:
-
Avô, o que são as pupilas? Quem são os fidalgos da Casa Mourisca? Quem
é que deu a volta ao mundo? Pode-se ir ao centro da Terra? O que é que a
freira está a fazer no subterrâneo?
O
que é que a freira está a fazer no subterrâneo?! Quem é que deu a
volta à Terra?! O que são as pupilas?!... Tanta pergunta em rajada
deixou o avô Xico completamente desconcertado! Como satisfazer a
curiosidade do catraio?
Numa
bela tarde, numa daquelas tardes abafadas de Verão, que prenunciam
trovoada e nos tornam molengos, sem vontade de andar na rua, o avô Xico
chamou o catraio:
—
Filho, anda cá. Senta-te aqui, perto de mim.
Sentei-me.
—
Queres saber quem são aquelas pessoas que há dias me perguntaste
—
Quero sim, avô.
—
E tu consegues trocar as tuas correrias pelos quintais pela leitura
daqueles livros?
Fiquei
momentaneamente indeciso. Trocar as correrias pelos quintais pela leitura
dos livros? Deixar as brincadeiras, aquelas horas agradáveis na oficina
do Vaz Preto, o sapateiro do outro lado da rua, que conta histórias da
vida, me dá os pregos e me ensina a fazer brinquedos? Deixar de ir, nas
tardes mais quentes, para a carpintaria perto de casa, onde arranjo as
tábuas e o material necessário para as minhas construções de miúdo?
Deixar as correrias e os passeios pela rua até ao eucaliptal onde estão
a construir o hospital?
A
resposta tardava a sair. O tempo não parava de avançar. E o avô Xico,
pensando já que estava livre das perguntas embaraçosas do miúdo,
procurou encerrar a questão:
—
Estás a ver? Ainda és muito pequeno para ficares preso com a leitura
daqueles livros. É melhor ires correr e brincar. Quando fores homem, se o
tempo te deixar, poderás lê-los.
Este
adiar para um dia incerto fez-me decidir:
—
Avô,
deixe-me ver os livros. Só vê-los. Um bocadinho só. Abri-los e
mexer-lhes. É só para ver o que está lá dentro.
O
avô Xico levantou-se. Foi à escrivaninha,
ao canto, entre a janela que dava para a serra, cujo cume distante me
atraia o olhar, e a porta para o corredor. Levantou a tampa de ripinhas de
verniz louro, que deslizaram para a zona escondida do móvel. Abriu uma
gaveta. Remexeu vários objectos pequenos. Encontrou a chave. Voltou a
fechar a gaveta. Desceu a tampa de correr da escrivaninha. Percorreu
calmamente a sala, colocando-se em frente da estante dos segredos, e
enfiou a chave na ranhura. Tudo pausadamente, tudo metodicamente, esticando
tremendamente o tempo, que parecia a eternidade. Tanto tempo para chegar
aos livros?! Será que mereciam tamanho suplício? Finalmente, deu a volta
à fechadura e abriu a porta envidraçada, patenteando aos olhos do
miúdo todas aquelas lombadas coloridas, agora sem as grades dos
caixilhos. Os livros estavam quase acessíveis!
—
Que livros queres tu ver? Estes maiores, de lombadas coloridas? Ou os das
estantes inferiores, mais pequenos?
—
Deixe ver, avô. É só abri-los e mexer-lhes.
Naquela
tarde, depois de abrir e folhear, cheio de curiosidade, aqueles volumes de
paralelas linhas cheias de segredos, iniciei a leitura, nas horas de maior
calor, dos livros que possuíam, de tantas em tantas páginas, imagens
perfeitamente desenhadas, no mesmo estilo daquelas magníficas
ilustrações de Gustave d'Oré, que causam a nossa admiração.
Durante
uns dias, nas tardes de maior calor, mantive-me sossegado por longas
horas, viajando em balão por países exóticos, na companhia de não
menos exóticas personagens. Fiz parte da tripulação do Capitão Nemo e
com ele andei nas profundezas do mar. Até na Lua andei. Mas isto nem era
novidade, porque muitas vezes andava na Lua, em correrias pelas hortas de
Celorico, explorando recantos que, apesar de muitas vezes repetidos,
apresentavam sempre novos encantos. Mas, desta vez, andei mesmo na Lua, na
superfície daquele romântico satélite que redescobri, anos mais tarde,
quando fiquei quase uma noite inteira sem dormir, para assistir em directo
ao primeiro desembarque do Homem.
Em
pouco tempo, tinha esgotado a colecção de Júlio Verne, há tantos
anos adormecida nas estantes do meu avô. Retomei plenamente
as brincadeiras e correrias pelos quintais quando o meu avô me
pôs nas mãos «Os Fidalgos da Casa Mourisca». Emperrei ao fim de alguns
capítulos. De tal modo fiquei farto daqueles fidalgos bolorentos e de
bolsos vazios, que, até hoje, não consegui retomar a leitura e levá-la
até ao fim. >>>
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