Era fim-de-semana.
Um sábado magnífico, convidativo, bom para ir, depois do jantar,
até à esplanada da vila.
Naquele tempo,
Espinho possuía uma magnífica esplanada, com vários cafés, que se
sucediam desde o edifício do Casino quase até à esquina da rua
23. Eram, ao todo, uns cinco cafés, com mesas e cadeiras não só
no passeio adjacente, mas também do outro lado da rua, por baixo
das várias palmeiras que nos brindavam, de vez em quando, com uns
frutos saborosos, não tanto como as tâmaras, mas suficientemente
capazes de atraírem o paladar dos miúdos. E, em todos os finais de
tarde, a música dos altifalantes da cabina de som era substituída
pela algazarra alegre e chilreante de toda a passarada que morava
naquelas palmeiras.
E, ao fim da tarde
e durante a noite, naquelas noites quentes de Verão, a sociedade
espinhense fazia um salutar exercício físico colectivo,
percorrendo de um extremo ao outro, durante horas a fio, toda a
avenida 8, depois de saboreado o café numa das muitas esplanadas.
Era
sábado, fim-de-semana. E era fim-de-semana, precisamente porque era
sábado e já a manhã tinha passado. Porque, naquela altura, os
fins de semana para descanso apenas começavam aos sábados, após
uma manhã de trabalho.
Naquele
tempo, as semanas com apenas cinco dias de trabalho ainda não
tinham sido inventadas. Trabalhava-se de segunda a sábado e, talvez
por isso, as treze horas de sábado eram ansiosamente esperadas, do
mesmo modo que o final dos domingos era o menos desejado, porque se
acabava o descanso e recomeçava o trabalho.
Era
sábado, fim-de-semana. Era um sábado magnífico, com um dia quente
e, caso raro, sem aquelas nortadas incomodativas.
Acabado
o jantar, a mãe fez um pedido ao miúdo:
– Ajudas-me a limpar a loiça? Depois,
arranjamo-nos e vamos ter com o teu pai lá abaixo, à esplanada.
Após
dez minutos de trabalho carinhoso em volta do filho, o catraio
estava um homem atraente de palmo e meio, com o cabelo habitualmente
rebelde bem alinhado e domado com Brilcream, de casaco enfiado e
calças à homem. Um verdadeiro mimo!
Apenas
faltava arranjar-se a mãe, para ambos saírem até à avenida.
– Vais lá para baixo e esperas por mim. Mas
não vais para a sala de aula. Esperas nas escadas. Sentado à porta. E
não te sujes. Tem juízo, para não estragares o dia.
Junto
à porta de casa, os amigos que o viam estranhavam:
– Estás todo pinoca! Pareces um homem. Vais
passear?
– Vou sair com a minha mãe!
Uma
mulher, mesmo naturalmente bonita e atraente, não se satisfaz à
primeira com a imagem que o espelho lhe devolve. Há sempre um
retoque que só ela encontra, uma curva especial no cabelo, que só
ela descobre e arranja, um toque de cor, que só ela consegue afinar
com precisão. E com retoque aqui, retoque acolá, acaba normalmente
por se esquecer que os ponteiros dos relógios não se esquecem de
avançar, para desespero dos homens que as têm de esperar.
O
tempo foi passando. E com ele, as palavras da mãe foram-se sumindo,
apagando cada vez mais. E a voz da bicicleta, lá ao canto da sala,
começou a chegar, primeiro devagarinho, depois com força cada vez
maior, cada vez mais poderosa, até que venceu as resistências do
catraio. Esqueceu-se completamente de todas as recomendações da
mãe. Esqueceu-se que estava de movimentos presos, enfiado naquele
casaco que o tornava um adulto em miniatura, com movimentos mais
presos.
Em
breve, estava a bicicleta no meio das carteiras, em posição para
ser cavalgada. Mas o raio do casaco prendia os movimentos, não
deixava esticar os braços da maneira habitual. Aquele gesto já
automatizado de se apoiar nos bancos das carteiras, de se equilibrar
em cima da bicicleta e de dar o impulso dinâmico para a gincana em
grande velocidade por entre as carteiras estava alterado. E a troca
dos calções habituais pelas calças compridas também não
ajudava!. As mangas prendiam os membros. Os braços não se
esticavam da mesma maneira! As mangas teimavam em oferecer
resistência. Não o deixavam apoiar-se como habitualmente no tampo
superior das carteiras.
Finalmente,
conseguiu. Conseguiu com algum custo dar início à gincana. E,
quando começava a habituar-se às novas condições do exercício
físico, ouviu, ao longe, a voz da mãe que o chamava. Foi a
atrapalhação geral!
Para
terminar as gincanas, tinha de travar a meio de uma fila, em
posição que lhe permitisse segurar-se ao tampo superior de uma
carteira, antes de apoiar os pés nos bancos e saltar da bicicleta.
Mas, desta vez, o movimento estava travado pela manga do casaco.
Esticou o braço, mas a extensão não era a mesma. A mão falhou
por escassos milímetros o tampo da carteira. Passou por entre os
suportes metálicos. Foi-se enfiar na prateleira por baixo do tampo,
naquela prateleira onde são colocadas as sacolas com os livros e os
cadernos.
A
dor foi brusca e aguda. Conseguiu reprimir a dor e saltar da
bicicleta. Tirou aflitivamente o casaco, para ver o que lhe tinha
acontecido.
Quando
olhou para a mão, o aspecto era mais preocupante que a dor. A mão
não estava, como era habitual, no enfiamento do braço. A zona do
pulso fazia um ângulo recto. Parecia uma daquelas manivelas com que
se punham os motores dos carros antigos em movimento. Aflito e com
medo da mãe, mais aflito com a dor que ela iria sentir do que com a
sua própria, reuniu forças. Com todas elas juntas, deu um brusco e
violento puxão à mão, para a recolocar no sítio. E a manivela
desapareceu. Voltara tudo milagrosamente ao sítio. E até a dor
parecia ter desaparecido!
Quando
a mãe chegou, encontrou o miúdo ainda na sala de aula. A bicicleta
estava descaída sobre uma carteira. No chão, encontrava-se o
casaco novo. E o miúdo olhava assustado para a mão, sem saber se
havia de chorar da dor ou do medo da mãe.
Sem saber bem o
que se tinha passado, mas sentindo dentro de si uma dor angustiosa,
a mãe fazia perguntas:
– O que é que tu fizeste? Porque é que a
bicicleta está caída e o casaco no meio do chão? O que é que te
aconteceu?
Foi
então que o miúdo, sem saber o que dizer, desatou numa grande
choradeira. E acabou por explicar, por entre lágrimas, que tinha
caído, que a mão tinha saído do sítio, mas que a voltara a pôr
na posição certa.
O
passeio na avenida ficou irremediavelmente estragado. No gabinete do
médico, onde a mãe se deslocou com o miúdo, nada podia ser feito.
O que tinha que ser feito já o miúdo o fizera. Já estava tudo
colocado no devido sítio. Tudo o que faltava era envolver o pulso
numa ligadura resistente e deixar o tempo passar. Para mais, o
miúdo não se queixava! Só quando se tocava na zona.
Perante
a inoperância do médico, a mãe do catraio não ficou satisfeita.
A dor que sentia pelo filho não lhe deixava ver a razão do
médico. Estava insatisfeita. Na esplanada, onde se encontrou com o
marido e as pessoas amigas, ouviu os conselhos de uns e de outros.
«Há em Penafiel um endireita, um velhote, que resolve todos os
problemas de ossos.» E os conselhos avisados do médico foram
postos de lado.
No dia seguinte,
foram a Penafiel. Foram ao endireita. E o endireita também nada
endireitou, porque já tudo estava direito!
Finalmente,
serenaram os ânimos! O tempo passou. Os problemas acabaram por
desaparecer. Mas o que nunca conseguiu desaparecer foi a paixão
pela bicicleta. Ainda hoje se mantém, apesar da inglesa há muito
ter ficado irremediavelmente perdida em Espinho.
Henrique J. C. de Oliveira
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