Henrique J. C. de Oliveira

VIII - REFLEXÕES CICLÍSTICAS E NÃO SÓ...
ou
DA DIALÉCTICA AMOROSA ENTRE UM MIÚDO E UMA BICICLETA

Ciclismo

Sucederam-se os dias e as semanas e as estações. E estávamos já quase no fim da Primavera, com os dias cada vez mais longos.

Era fim-de-semana. Um sábado magnífico, convidativo, bom para ir, depois do jantar, até à esplanada da vila.  
Aspecto das esplanadas da avenida 8, em Espinho, por alturas de 1952.

Naquele tempo, Espinho possuía uma magnífica esplanada, com vários cafés, que se sucediam desde o edifício do Casino quase até à esquina da rua 23. Eram, ao todo, uns cinco cafés, com mesas e cadeiras não só no passeio adjacente, mas também do outro lado da rua, por baixo das várias palmeiras que nos brindavam, de vez em quando, com uns frutos saborosos, não tanto como as tâmaras, mas suficientemente capazes de atraírem o paladar dos miúdos. E, em todos os finais de tarde, a música dos altifalantes da cabina de som era substituída pela algazarra alegre e chilreante de toda a passarada que morava naquelas palmeiras.  

UIma das muitas esplanadas da avenida 8, em Espinho, por alturas de 1952.

E, ao fim da tarde e durante a noite, naquelas noites quentes de Verão, a sociedade espinhense fazia um salutar exercício físico colectivo, percorrendo de um extremo ao outro, durante horas a fio, toda a avenida 8, depois de saboreado o café numa das muitas esplanadas.

Era sábado, fim-de-semana. E era fim-de-semana, precisamente porque era sábado e já a manhã tinha passado. Porque, naquela altura, os fins de semana para descanso apenas começavam aos sábados, após uma manhã de trabalho.

Naquele tempo, as semanas com apenas cinco dias de trabalho ainda não tinham sido inventadas. Trabalhava-se de segunda a sábado e, talvez por isso, as treze horas de sábado eram ansiosamente esperadas, do mesmo modo que o final dos domingos era o menos desejado, porque se acabava o descanso e recomeçava o trabalho.

Era sábado, fim-de-semana. Era um sábado magnífico, com um dia quente e, caso raro, sem aquelas nortadas incomodativas.

Acabado o jantar, a mãe fez um pedido ao miúdo:

– Ajudas-me a limpar a loiça? Depois, arranjamo-nos e vamos ter com o teu pai lá abaixo, à esplanada.

Após dez minutos de trabalho carinhoso em volta do filho, o catraio estava um homem atraente de palmo e meio, com o cabelo habitualmente rebelde bem alinhado e domado com Brilcream, de casaco enfiado e calças à homem. Um verdadeiro mimo!

Apenas faltava arranjar-se a mãe, para ambos saírem até à avenida.

– Vais lá para baixo e esperas por mim. Mas não vais para a sala de aula. Esperas nas escadas. Sentado à porta. E não te sujes. Tem juízo, para não estragares o dia.

Junto à porta de casa, os amigos que o viam estranhavam:

– Estás todo pinoca! Pareces um homem. Vais passear?

– Vou sair com a minha mãe!

Uma mulher, mesmo naturalmente bonita e atraente, não se satisfaz à primeira com a imagem que o espelho lhe devolve. Há sempre um retoque que só ela encontra, uma curva especial no cabelo, que só ela descobre e arranja, um toque de cor, que só ela consegue afinar com precisão. E com retoque aqui, retoque acolá, acaba normalmente por se esquecer que os ponteiros dos relógios não se esquecem de avançar, para desespero dos homens que as têm de esperar.

O tempo foi passando. E com ele, as palavras da mãe foram-se sumindo, apagando cada vez mais. E a voz da bicicleta, lá ao canto da sala, começou a chegar, primeiro devagarinho, depois com força cada vez maior, cada vez mais poderosa, até que venceu as resistências do catraio. Esqueceu-se completamente de todas as recomendações da mãe. Esqueceu-se que estava de movimentos presos, enfiado naquele casaco que o tornava um adulto em miniatura, com movimentos mais presos.

Em breve, estava a bicicleta no meio das carteiras, em posição para ser cavalgada. Mas o raio do casaco prendia os movimentos, não deixava esticar os braços da maneira habitual. Aquele gesto já automatizado de se apoiar nos bancos das carteiras, de se equilibrar em cima da bicicleta e de dar o impulso dinâmico para a gincana em grande velocidade por entre as carteiras estava alterado. E a troca dos calções habituais pelas calças compridas também não ajudava!. As mangas prendiam os membros. Os braços não se esticavam da mesma maneira! As mangas teimavam em oferecer resistência. Não o deixavam apoiar-se como habitualmente no tampo superior das carteiras.

Finalmente, conseguiu. Conseguiu com algum custo dar início à gincana. E, quando começava a habituar-se às novas condições do exercício físico, ouviu, ao longe, a voz da mãe que o chamava. Foi a atrapalhação geral!

Para terminar as gincanas, tinha de travar a meio de uma fila, em posição que lhe permitisse segurar-se ao tampo superior de uma carteira, antes de apoiar os pés nos bancos e saltar da bicicleta. Mas, desta vez, o movimento estava travado pela manga do casaco. Esticou o braço, mas a extensão não era a mesma. A mão falhou por escassos milímetros o tampo da carteira. Passou por entre os suportes metálicos. Foi-se enfiar na prateleira por baixo do tampo, naquela prateleira onde são colocadas as sacolas com os livros e os cadernos.

A dor foi brusca e aguda. Conseguiu reprimir a dor e saltar da bicicleta. Tirou aflitivamente o casaco, para ver o que lhe tinha acontecido.

Quando olhou para a mão, o aspecto era mais preocupante que a dor. A mão não estava, como era habitual, no enfiamento do braço. A zona do pulso fazia um ângulo recto. Parecia uma daquelas manivelas com que se punham os motores dos carros antigos em movimento. Aflito e com medo da mãe, mais aflito com a dor que ela iria sentir do que com a sua própria, reuniu forças. Com todas elas juntas, deu um brusco e violento puxão à mão, para a recolocar no sítio. E a manivela desapareceu. Voltara tudo milagrosamente ao sítio. E até a dor parecia ter desaparecido!

Quando a mãe chegou, encontrou o miúdo ainda na sala de aula. A bicicleta estava descaída sobre uma carteira. No chão, encontrava-se o casaco novo. E o miúdo olhava assustado para a mão, sem saber se havia de chorar da dor ou do medo da mãe.

Sem saber bem o que se tinha passado, mas sentindo dentro de si uma dor angustiosa, a mãe fazia perguntas:

– O que é que tu fizeste? Porque é que a bicicleta está caída e o casaco no meio do chão? O que é que te aconteceu?

Foi então que o miúdo, sem saber o que dizer, desatou numa grande choradeira. E acabou por explicar, por entre lágrimas, que tinha caído, que a mão tinha saído do sítio, mas que a voltara a pôr na posição certa.

O passeio na avenida ficou irremediavelmente estragado. No gabinete do médico, onde a mãe se deslocou com o miúdo, nada podia ser feito. O que tinha que ser feito já o miúdo o fizera. Já estava tudo colocado no devido sítio. Tudo o que faltava era envolver o pulso numa ligadura resistente e deixar o tempo passar. Para mais, o miúdo não se queixava! Só quando se tocava na zona.

Perante a inoperância do médico, a mãe do catraio não ficou satisfeita. A dor que sentia pelo filho não lhe deixava ver a razão do médico. Estava insatisfeita. Na esplanada, onde se encontrou com o marido e as pessoas amigas, ouviu os conselhos de uns e de outros. «Há em Penafiel um endireita, um velhote, que resolve todos os problemas de ossos.» E os conselhos avisados do médico foram postos de lado.

 

Em pleno Verão, numa das esplanadas da Avenida 8, em Espinho, por alturas de 1952.

No dia seguinte, foram a Penafiel. Foram ao endireita. E o endireita também nada endireitou, porque já tudo estava direito!

Finalmente, serenaram os ânimos! O tempo passou. Os problemas acabaram por desaparecer. Mas o que nunca conseguiu desaparecer foi a paixão pela bicicleta. Ainda hoje se mantém, apesar da inglesa há muito ter ficado irremediavelmente perdida em Espinho.

Henrique J. C. de Oliveira
 

 

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