Henrique J. C. de Oliveira

V - REFLEXÕES CICLÍSTICAS E NÃO SÓ...
ou
DA DIALÉCTICA AMOROSA ENTRE UM MIÚDO E UMA BICICLETA

Ciclismo

Na sala de aula, que comunicava por uma porta com a sala de jantar da casa onde vivia, estava, ao fundo, encostada a um canto, o transporte do professor primário. Já ali estava arrumado há uns tempos, com os pneus completamente vazios.

Desde que o professor conseguira amealhar uns cobres com trabalho extra e comprar um Fiat 600, a bicicleta ficou para ali definitivamente esquecida. Esquecida para os adultos, mas não para os miúdos que quase todos os dias ocupavam as carteiras, durante as horas de escola, e a namoravam sorrateiramente, pelo canto do olho, com vontade de a acariciar e dominar.

Era uma bicicleta grande, adulta e robusta, cheia de carácter e orgulho da sua origem inglesa. Era uma bicicleta toda preta com letras douradas, de pneus largos e com um selim de molas largas que mais parecia um sofá, bem moldado às bochechas inferiores dos humanos que nele se sentassem. Era uma bicicleta cheia de recordações, com um farol na frente, bem no meio do guiador, um farol grande e cromado, que piscava o olho guloso aos miúdos, despertando-lhes desejos para umas voltas de sonho pelas ruas da vila.

A bicicleta era demasiado alta para os miúdos que frequentavam a escola, para uns miúdos ainda com umas pernas de palmo e meio. Mas era incrivelmente tentadora, constantemente a mandar convites secretos que só os miúdos conseguiam ouvir e que, na cabeça do filho do professor, eram reforçados pelas várias recordações de episódios em que ela fora a protagonista.

Tirando os pneus vazios, tudo nela parecia em perfeito estado de funcionamento. E as várias peças cromadas, que se destacavam do conjunto preto, reluziam naquele recanto esquecido da sala, lançando mensagens de brilho tentador: «Andem! De que estão à espera? Experimentem-me. Estou aqui ao vosso serviço. Viagem comigo».

Até o sol a namorava frequentemente. Naqueles dias de Inverno, em que o sol anda mais baixo, mais curvado, mais junto à terra e com menos forças, até ele penetrava, a meio da tarde, pelas largas janelas e esticava os braços brilhantes até ao canto da sala, onde estava a bicicleta. Também ele a acariciava e fazia concorrência aos miúdos. Passeava os braços de luz pelo adormecido biciclo. Arrancava-lhe reflexos brilhantes das peças cromadas, que iam projectar-se no tecto branco da sala, por cima das cabeças dos miúdos, desviando-lhes a atenção e ateando-lhes uma pequena chama, chama de desejo, que os fazia sonhar e sair da sala, deixando a voz do professor cada vez mais distante.

Na carteira da frente, estava o filho do professor. Entre ele e a bicicleta, a distância era considerável. Todavia, os reflexos arrancados pelas carícias do sol nos cromados da bicicleta projectavam no tecto raios brancos que se espraiavam, cada vez mais largos, até ao fundo da sala. E aquela claridade súbita vinda de cima atraia o olhar do miúdo. Levava-lhe as mensagens secretas da velha bicicleta esquecida:

«Lembras-te daquela tarde em que o teu pai andou comigo horas e horas à tua procura por vários locais de Espinho? E tu sem apareceres! Lembras-te? Lembras-te disso? Andavas com os teus amigos a brincar nas dunas ao sul da vila, naquelas dunas que as máquinas arrasaram para dar lugar às paredes de cimento do hospital e de uma fábrica de cordas. Lembras-te disso? Fui eu que te trouxe para casa. Vieste em cima de mim, sentado no quadro, entre o guiador e o teu pai. Não estás a lembrar-te?! Até foste ao Porto, nessa noite, assistir a um espectáculo de patinagem artística sobre o gelo. E os passeios que davas comigo e com o teu pai até ao Rio Largo, e até àquela fonte nos arredores de Espinho, onde o teu pai te contou uma história fantástica de que tu tanto gostaste! Lembras-te disto?»

Estão a ver a quantidade de conversas secretas que se podem estabelecer entre uma bicicleta esquecida a um canto de uma sala e um miúdo de sete ou oito anos? 

Estes namoros secretos  foram-se mantendo durante bastante tempo, foram trazendo várias recordações e foram engrossando a bola de neve do desejo, a ponto de conseguirem vencer a força bloqueante de uma ordem: «não mexas na bicicleta, que te podes magoar».

Deste modo, juntaram-se duas forças tentadoras, capazes de levar um miúdo à acção. Duas forças que fazem girar o mundo. Duas forças que o têm levado a alterações, umas vezes para melhor, outras para pior, mas sempre fazendo-o evoluir. A primeira grande força é a das mensagens secretas, frequentemente repetidas, só entendidas por uma criança ou por aqueles que conseguem manter-se crianças, por aqueles a quem a imaginação comanda a vida; a segunda, uma força ainda mais irresistível, a mesma que fez pecar Adão, aquela força fantasticamente poderosa e tentadoramente irresistível para todo o ser humano, que o leva a procurar alcançar o fruto proibido, sempre o mais saboroso e o mais apetecido.

Da conjugação das duas forças aliadas e sobre-humanas resultou um acontecimento funesto, que me impediu a prática de um desporto novo, em breve tornado impossível, como iremos ver. >>>

 

 

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