SERIA
mais fácil, e ainda por cima seria muito mais comunicativo, dizer-vos
umas simples palavras de recordação e saudade acerca do nosso
companheiro Mário Sacramento. É certo que só o conheci em pessoa nos
seus últimos dez anos de vida, e portanto já homem feito, de 38 a 48
anos, temperado por uma dura experiência, incluindo três prisões
políticas, e praticamente consagrado como ensaísta literário. Mas senti
logo nele um amigo, um dos amigos de que mais precisava, em dois
colóquios realizados em 1959 na Casa dos Jornalistas e Homens de Letras
do Porto. A extraordinária paciência, a
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simplicidade, a honestidade intelectual, o dom de si próprio, a bonomia
sorridente com que nesses colóquios então enfrentou um público enervado
por intervenções inoportunas e, em geral, pouco receptivo à sua tese
iconoclasta acerca de Fernando Pessoa – despertaram em mim, como
decerto noutras pessoas, uma grande simpatia, e dessa simpatia resultou
uma aproximação crescente, e uma amizade que, nos últimos tempos, se
tornou íntima das angústias mais retraídas, entre elas a certeza de uma
morte próxima. Teria, portanto, muito que dizer sobre o meu e nosso
amigo Mário. Mas ainda não chegou o tempo de o fazer com a largueza e a
justeza merecidas.
Mário Castrim usando da
palavra junto da campa rasa de Mário Sacramento.
Por outro lado, resistirei a
uma outra tentação ainda mais cómoda: a de despertar reacções
predominantemente emocionais, percorrendo superficialmente a sua obra
literária e identificando-a logo, e por alto, com a sua coragem, a sua
coerência, a sua lucidez de democrata e de socialista. Mas aqui, em
Aveiro, onde ele mais viveu e lutou, onde todos o conheceram, e durante
mais tempo do que eu, parece-me deslocado ser eu a recordar Mário
Sacramento como paradigma da cidadania militante, que abrange no mesmo
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olhar e na mesma diligência os problemas locais ou regionais e os de
toda a Nação, os espinhos da profissão de médico e os apelos de uma
vocação doutrinária e literária.
O mais difícil mas também o
melhor que me restava era ler e meditar, pelo menos (já que o tempo e a
saúde mais me não consentiam) a obra editada de Mário Sacramento, e
refazer uma ideia sobre a sua importância intrínseca e permanente. E
receio muito que até isto não se possa empreender sem inconvenientes.
Com efeito, está ainda dispersa ou inédita metade, pelo menos, da
produção literária do nosso amigo. E este trabalho que me impus, no meio
de outros esforços desencontrados e também urgentes, é nada menos do que
um diálogo para além da morte, um diálogo com um amigo de quem me sentia
tão próximo em afeição e camaradagem como diverso em temperamento, e tão
identificado em objectivos e métodos gerais de acção, como discordante
em certas matérias de opinião literária. Não seria correcto
apresentar-me como simples expositor ou intérprete do pensamento de
Mário Sacramento, porque uma interpretação seria sempre inevitavelmente
a minha, ou então escamotearia as questões mais vivas. Por isso
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o que tentarei é repensar a obra publicada do Mário como quem continua
longas e calorosas discussões travadas oralmente, como quem se esforça
por ouvir razões que já não são minhas nem tuas, mas nasceram do enlace
de razões trocadas, e da evidência de uma outra voz pessoal, uma voz que
nós ainda hoje continua-mos a ouvir, baixa, rouca, paciente, fraterna,
temperada por um sorriso tanto mais afectuoso quanto mais difícil parece
um acordo final.
Este sorriso de bondade e
tristeza de Mário traía um irremediável, profundamente sentido, que não
é apenas o irremediável dos limites da comunicação humana individual
possível, mas o irremediável de todas as frustrações e dores com que
(por muito paradoxal que isso pareça) se argamassa a confiança num
sentido humano para a vida. O sorriso compreensivo e dramático de Mário
Sacramento revelava os seus bastidores nos cigarros, nas cigarrilhas,
incessantes, em que ele próprio ardia, e numa actividade sôfrega que o
não deixava parar e que não o deixava sequer dormir naturalmente.
Chegou a ocasião de lembrar
que o tema dominante do ensaísmo de Sacramento é o da ironia, a ironia
realista de Eça, a ironia dramática
/ 41 /
de Cesário, a ironia absurdizante de Pessoa, e cujo denominador comum
estava, segundo Sacramento, citando Jankelevitch, na «alegria algo
melancólica que se inspira na descoberta de uma pluralidade». Ora aquilo
que mais caracteriza um espírito reside, não nas suas opiniões, mas na
sua problemática. Pouco importa, por exemplo, que o Mário tenha assumido
uma posição de crítica negativa e polémica em relação a Fernando Pessoa,
até porque ninguém soube melhor, e melhor disse, do que Mário Sacramento
que o ardor polémico é sempre o ardor virado contra algo que nós
próprios ainda somos, e algo que estamos, ou não, em trâmites de
superar. Assim, quando aos 24 anos escreveu o seu primeiro grande ensaio
sobre Eça de Queirós, uma Estética da Ironia, era também
uma sua estética, e ainda também uma sua ética da ironia, que Mário
Sacramento teorizava. Irónico era já o simples facto de este jovem
médico à força (à força das circunstâncias e da vontade paterna),
concluir algo que equivalia a uma dissertação de licenciatura em Letras,
uma dissertação aprovada, não por um júri ex cathedra, mas
pelo júri de um Prémio de Jogos Florais Universitários.
/ 42 /
Na verdade Mário Sacramento
parecia predestinado para escritor, e não para médico. Era esse o juízo
dos seus professores liceais, e era isso o que sugeriam as suas precoces
primícias de ficção em prosa; e, mesmo passando por alto as suas quatro
peças publicadas em 1959 sob o título de Teatro Anatómico, duas das
quais bem mereciam o palco, basta ler os seus ensaios e artigos para
sentir a alternância constante entre a disciplina racional e uma
fantasia metafórica, um borbulhar de imagens, de analogias concretas e
de ritmos verbais que nos prendem, sobretudo em primeira abordagem aos
assuntos, antes que o pensamento esteja inteiramente carrilado.
Ferreira de Castro com
Cecília Sacramento na sessão realizada no Teatro Aveirense.
O ensaio sobre Eça de
Queirós de 1945, é, de facto, e no fundo, o seu primeiro grande
exercício de um método dialéctico de interpretação literária. A ironia é
aí concebida como uma dada fase de reacção humana que consiste em nos
apercebermos de um conflito e em nos quedarmos no plano dessa percepção,
sem tentar resolvê-la, mas também sem tentar iludi-la por um regresso à
anterior fase ingénua ou incrítica de consciência.
Deste modo, o jovem ensaísta
empenha-se
/ 45 /
principalmente em explicar a génese de um realismo de estilo e de
concepção de vida que se organiza ao nível da ironia, ou melhor, ao
nível de uma dada ironia historicamente determinada. A ironia
queirosiana teria um dos seus pés no próprio romantismo queirosiano,
fantasista, veemente, explosivo de imagens e surpresas verbais, no
antimaterialismo burguês, dos folhetins escritos para a Gazeta de
Portugal, 1866, e depois seleccionados nas Prosas Bárbaras;
e teria o seu outro e contraditório pé no jornalismo político, vagamente
humanitarista e reformista, e algo acaciano, do mesmo Eça, quando
redactor exclusivo do Distrito de Évora, 1867, e ainda, mais tarde,
quando porta-voz das utopias proudhonianas do Cenáculo lisboeta de
1867-68. A história encarregar-se-ia, efectivamente, de revelar a
inconsistência dos ideários que Eça pretendeu em dadas alturas servir, e
a sua ironia, pelo que encerra de consciência impotentemente lúcida
perante dado conflito, corresponde na verdade a uma situação histórica,
e é a sua melhor expressão literária.
Mário Sacramento mostra-nos
alguns dos principais meandros na trajectória através da qual o grande
romancista chegou à sorridente
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melancolia da descoberta de um impasse histórico: a inviabilidade
da utópica federação republicana e internacional dos produtores de
Proudhon, mormente depois da derrota da Com una parisiense de 71, do
fracasso da primeira República em Espanha, e num país que, como o nosso,
e no dizer de Oliveira Martins, se resumia então a uma granja semifeudal
com um banco parasitário ao lado a espremê-la em rendas e hipotecas.
Outros ensaístas tinham-se já ocupado do estilo de Eça ou das intenções
subjacentes às suas construções romanescas; mas Sacramento empolga o
essencial numa síntese segundo a qual, em Eça, «a ironia é uma conquista
íntima,., obtida através de alguns vaivéns, sobretudo iniciais, mas de
que, por exemplo, o romance póstumo A Capital constitui um
momento regressivo, onde a ironia recua sob uma vaga de autocompunção do
herói, de humor displicente e de sátira ainda românticos. Esses vaivéns
são assinalados por meio de observações muito lúcidas acerca de coisas
como estas: as sucessivas e contraditórias maneiras como Eça compreendeu
e assimilou Baudelaire e Flaubert; o contraste entre a estética trágica
de Madame Bovary e a da «alta comédia, tipicamente queirosiana
/ 47 /
que O Primo Basílio exemplifica por contraste; e o modo
como tal estética da Ironia amadurece através das três versões
conhecidas de O Crime do Padre Amaro, acabando por incidir
em terreno especificamente social e não, por exemplo, em terreno
psicológico, sob a forma de denúncia constante de uma disjunção entre o
procedimento real das personagens e aquilo que elas querem pensar de si,
ou querem que delas se pense, – disjunção apreendida por uma subtil
caricatura de atitudes, tiques, falas e do ambiente ou paisagem, que, em
vez de, como em Flaubert, se intercalar no drama humano e nele praticar
uma cesura de objectividade, intervém como notação impressionista da
subjectividade das próprias personagens, do modo como elas sentem o seu
ambiente, e nele se sentem.
O propósito do ensaísta não
é o estudo da obra de Eça, mas o da génese da sua estética fundamental,
e por isso as obras da maturidade do romancista não são encaradas com a
minúcia consagrada aos começos. No entanto Mário Sacramento traz
contribuições muitas vezes esquecidas na interpretação dessas obras,
fazendo-nos reflectir, por exemplo, sobre este facto importante: as
teses aparentes
/
48 / de
A Ilustre Casa de Ramires e de A Cidade e as Serras
contêm elementos inquestionáveis da sua própria e irónica autodestruição
como teses; a identificação de Gonçalo Ramires com a Pátria e a solução
colonialista do primeiro romance, já criticados por António Sérgio, são
em grande parte satíricas, e quem tomar à letra a bucólica de Tormes em
A Cidade e as Serras tem a sensibilidade embotada para o
essencial do seu estilo. O grande tema de Eça é, não a exaltação idílica
das origens rurais pátrias, mas, como em outros romances, a
autodestrutiva, ociosa e entediada falta de horizontes de uma burguesia
nacional, mesmo quando apetrechada da melhor preparação profissional e
do melhor ambiente culto lisboeta, como Carlos da Maia, ou quando
bafejada e detentora dos últimos requintes da cultura ou da civilização
material cosmopolita, como Fradique e Jacinto. Notemos que Gonçalo
Ramires, Carlos da Maia, Fradique Mendes e Jacinto são hoje mais
universais do que no tempo em que Eça os concebeu: são espécimes
típicos, ironicamente simpáticos e idealizados, da burguesia cosmopolita
de qualquer país subdesenvolvido ou semicolonizado. Existem às centenas
ou milhares, na índia, no
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mundo árabe e nas gorilocracias da América Latina.
O ensaio sobre
Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda, escrito no presídio de
Caxias em 1953 e apenas impresso em 1959, sem a desejada actualização,
ou sequer revisão, do autor, que entretanto fora novamente preso, é uma
obra de crítica aceradamente polémica que eu leio como essencialmente
dirigida, não contra o poeta F. Pessoa, mas contra a sua incrítica e
quase idolátrica adoração dessa altura. A obra de Pessoa reage
directamente às convicções e às formas de sensibilidade dominantes entre
a nossa pequena burguesia dos decénios de 1910-20, com uma intuição
aguda de toda a inautenticidade dos credos então reinantes que lhe
permitiu levar esses credos até às últimas consequências do seu absurdo
intrínseco, opondo, a esse absurdo, uma disponibilidade céptica para a
apologia de outros quaisquer absurdos, no fundo não menores, mas apenas
então mais aparentes ou provocativos.
Acontece, porém, que vinte
ou trinta anos mais tarde, a ideologia de 1920, incoerentemente ou
salpicadamente democrática-burguesa, agrária – positivista – idealista –
religiosa
/ 50 /
– anticlerical estava desacreditada, ou então banida nos seus melhores
ingredientes, e os absurdos irracionalistas – ocultistas –
sebastianistas – imperialistas – préfascistas – anti-humanitaristas –
amorais, etc., que Pessoa oportunamente lhes opusera de um modo por
vezes irritantemente cabotino e radicalmente céptico – tinham-se
tornado, em doses variáveis e aliás também incoerentes, em ideologia
oficial, ou em ideologias grupais literárias que às vezes se davam uns
ares progressivos. O cepticismo e a disponibilidade pensante radical de
Pessoa eram, afinal, um aprofundamento do Fradique Mendes queirosiano,
que já borboleteava, sem empenho duradoiro, por sobre todas as
florescências civilizacionais do seu tempo. Como Fradique, também Pessoa
pretendeu sobretudo «viajar e colher maneiras-de-sentir», e dar uma nova
forma mais interiorizada ao dandismo fradiquista, cindindo-se em
heterónimos, que de resto, como a poesia ortónima, e no dizer pitoresco
de Sacramento, se abrem ainda em sucessivas chavetas, e chavetas de
chavetas, ou seja, em alternativas ou contradições insolúveis.
Pode parecer estranho que
Mário Sacramento se tenha apostado em escrever um
/ 51 /
ensaio para denunciar o absurdismo, o beco sem saída, para evidenciar o
que há, não de génio poético, mas de antigénio, num poeta que,
talvez como nenhum outro escritor português, contribuiu para que vários
jovens dos anos de 30 ou 40, entre eles eu próprio, viessem a ser
correligionários dele próprio, Mário Sacramento. Mas a razão é esta: eu
não consigo ler Pessoa senão no contexto histórico de 1915-25; e
Sacramento empreendeu uma obra necessária de saneamento em relação a
certo e dominante pessoísmo póstumo de 1950. E, apesar da
discussão fraterna que o Mário e eu travámos a este respeito, e que se
inicia no seu próprio ensaio, seria escusado reconhecer publicamente,
porque isso é óbvio, o seguinte: o Mário ajudou-me a compreender a obra
de Pessoa como uma consequente e, no seu tempo, corajosa redução ao
absurdo de várias alternativas ideológicas pequeno-burguesas de 1920,
tais como um positivismo sumário e uma metafísica laica, um
humanitarismo nebuloso e uma caridade esmoler inconsequentes, um
passadismo sebastiânico de além-mar e um futurismo abstractamente
mecânico, o individualismo de uma alma cristã substancial eterna e o
individualismo de um direito minoritário
/ 52 /
e inoperante de votar, o mito da sinceridade romântica espontânea, o
mito da unidade e fidedignidade do simples testemunho da consciência
individual, que Pessoa mostra estar falseada até nas recordações
aparentemente mais íntimas, etc., etc. Com certas reservas de pormenor
sobre que já me pronunciei por escrito, o ensaio de Sacramento sobre o
absurdismo de Pessoa contém uma crítica moderadora que a publicação dos
inéditos doutrinários do poeta em grande parte corrobora, e desimpediu o
caminho para um trabalho complementar que infelizmente o autor já não
pôde levar a cabo, mas que anunciou por várias vezes em artigos
posteriores e cujo alcance no próprio ensaio se prevê: o trabalho de
determinar «a verdade temporal da posição assumida pelo poeta e, como
tal, a inquestionável qualidade da sua experiência".
Óscar Lopes intervém no
colóquio que encerrou a sessão de homenagem a Mário Sacramento.
Ora, meus amigos, não é por
forma alguma diminuir a estatura de Mário Sacramento, mas antes
inserirmo-nos na dialéctica do seu conceito de ironia, pensar que a luta
contra os limites absurdistas de Pessoa é também a luta contra o
desespero e contra a perplexidade que em nós também por vezes se instala
perante os aparentes becos sem saída da história
/ 55 /
dos nossos dias, aquela que nos faz mas que nós também podemos fazer.
Reparem: o nosso amigo explica a origem do seu ensaio por um pretenso
«inadequamento» e «desinteresse» seus quanto a Pessoa, a que teria
sucedido «um, caloroso interesse pelo autor desse desinteresse». Não é
verdade que esta fórmula soa ainda um pouco aos paradoxos pessoescos?
Não poderá ela considerar-se sinal da imanência, a Mário Sacramento e a
nós, daquilo mesmo a que nos opomos, daquelas mesmas perplexidades
burguesas que procuramos transcender, mas que se renovam a cada momento,
que nos determinam, que estão inscritas nos nossos reflexos mais
íntimos, nas fraquezas, nas neuroses e até nas doenças físicas que são o
calvário e o preço imediato da luta, e às vezes até na rigidez
dogmática, e involuntariamente idealista, dos nossos juízos e dos nossos
projectos?
Mário Sacramento nunca
hesitou em reconhecer tudo isto, pelo menos em momentos de confissão
dilacerante e patética, uma confissão que ia até à injustiça para
consigo mesmo e, colectivamente, para connosco todos. O pior que os
nossos adversários nos fazem, quero dizer, o pior que nos faz o
determinismo
/ 56 /
material a que obedecem os nossos adversários, é justamente isto:
modelar-nos, a nós mesmos, em certa medida, à sua própria imagem e
semelhança, que às vezes nos limitamos a inverter ao espelho.
Ora é precisamente esta a
grande lição que Sacramento extrai nas páginas dedicadas à corrente de
doutrina estética à qual adere, quer em monografia dedicada a Fernando
Namora, 1967, quer no caderno intitulado Há uma Estética do
Neo-Realismo?, 1968. O ensaísta, ao debruçar-se sobre o que se chama
«a geração de 40» que é a sua, não pôde conter momentos de melancolia,
como a destas passagens: «o futuro vai ter muita dificuldade em
compreender o nosso tempo, peado de silêncios e semeado de hiatos»;
«Outros houve que escolheram testemunhar o seu tempo, ensaiando-se nele
pela vida prática e activa -- interveniente e problematizante a um
passo. Entre eles me conto, esperando dar conta, um dia, destes longos
anos de amarga reflexão, sim, mas de empenhamento incessante. Por ambas
as coisas lutei e luto: pela transformação e pela expressão do homem, só
me opondo nesta ao que coarcte aquela, e reciprocamente».
/ 57 /
Isto não lhe impede uma
crítica e autocrítica que por vezes a mim me parece excessiva. Mário
Sacramento denuncia, na sua geração de 1940 e nele próprio, um
«radicalismo pequeno-burguês» que, ignorando o atraso da
industrialização do País, e por isso o fraco peso social do proletariado
fabril, lhe procurou um sucedâneo num proletariado rural regionalmente
disperso, confundindo aliás o materialismo dialéctico com certo
neopositivismo, o materialismo histórico com o humanitarismo
sentimental, e concebendo esperanças apressadas num enclave europeu
isolado pela vitória do Franquismo em Espanha, e destinado a manter-se
depois da última guerra, devido à sua peculiar dialéctica
intercontinental de espoliador espoliado, que as potências ocidentais
vitoriosas interessadamente sancionaram sob a fórmula de neutralidade
colaborante.
Eu permito-me responder
postumamente a Mário Sacramento (e aliás com a sua própria voz fundida
na minha) que a sua luta, que a nossa luta, não falhou ou errou tanto
quanto parece, – porque a história foi também, e apesar de tudo, feita
pelos que estavam na mó de baixo; de contrário, a lógica interna do
sistema
/ 58 /
social hegemónico teria provocado consequências ainda mais catastróficas
do que aquelas que agora já quase unanimemente se reconhece ter tido. As
prisões, os sofrimentos ignorados e esquecidos, as frustrações de homens
como Mário Sacramento, Soeiro Pereira Gomes, Bento Jesus Caraça, Jaime
Cortesão, António Sérgio e tantos outros, valeram-nos as posições que,
através de tudo, nunca perdemos, e que hoje se robustecem.
Por outro lado, Mário
Sacramento é inexoravelmente justo quando flagela e se flagela, no
dogmatismo e na confusão do doutrinário com o literário que foram
propiciados pela repressão que nos molda, sem mesmo o querermos. É certo
que, como ele diz, «a ficção neo-realista foi durante muito tempo a
única voz possível de aspectos da vida social que, noutras
circunstâncias, caberiam ao jornalismo, à política e ao livro
doutrinário». E em dado passo observa até, finamente, que, assim como o
positivismo sumário da Propaganda Republicana trouxe como contragolpe o
metafisicíssimo de Pascoaes, Leonardo Coimbra e outros, também o
neopositivismo larvar dos pretensos materialistas de 1940 abriu uma
/ 59 /
fenda por onde irrompeu o nosso existencialismo literário dos anos de
50. No entanto, Sacramento faz um inventário altamente favorável do
neo-realismo no simples terreno das realizações estéticas e mostra que
ele constitui a bacia hidrográfica principal onde acabam por desaguar,
como afluentes, o imagismo de Sophia ou de Jorge de Sena, o surrealismo
de Cesariny ou Alexandre O'Neill, o existencialismo de Urbano, Virgílio
Ferreira e certo Namora, o novo-romance de Abelaira e Almeida Faria, o
concretismo e o absurdismo teatral da geração universitária de 61-62,
etc. – sendo, aliás, de importância secundária a manutenção ou
substituição deste nome, «Neo-Realismo», ante o facto capital de que a
reflexão literária da dinâmica das relações sociais portuguesas deu ao
longo dos anos 30 o seu grande salto ideológico qualitativo, salto que
consistiu em passar a ver as maiorias humanas exploradas, não como
objecto de comiseração, mas como sujeito potencial da sua própria
história. A literatura, a historiografia mesmo universitária, o ensaísmo
histórico e o jornalismo de hoje que se interessa por problemas sociais
portugueses chamaram de tal modo a si as preocupações dos neo-realistas
e materialistas
/ 60 /
do tempo da última guerra mundial, que a tarefa daqueles que continuam
efectivamente na sua linha, e que a revivificam, já consiste em evitar
confusões e em reformular os desideratos, os projectos e os valores de
modo a tornarem-se inequívocas e adequadas em relação às determinantes
do momento.
Mário Sacramento legou-nos,
precisamente, as linhas de uma estética materialista, assim como nos
legou lineamentos de uma acção política. Segundo ele, a linguagem e o
pensamento humano apresentam estruturas que resultam, afinal e em medida
que pouco a pouco se descobre, das estruturas ou códigos da própria
matéria, entre os quais se tem ultimamente destacado o código dos ácidos
nucleicos que determina a génese dos seres vivos. A significação
da linguagem humana seria, portanto, o resultado da complexa adequação
do seu código e das suas mensagens à própria legalidade, aliás
contraditória, estratificada e em devir, da natureza pré-humana ou
não-humana. Mas o trabalho humano não é um reflexo passivo, e sim uma
reflexão criadora. e Sacramento lembra a luminosa observação de Karl
Marx segundo a qual «o que distingue o pior arquitecto da melhor abelha
/ 61 /
é que o primeiro constrói o seu objecto na cabeça antes de o fazer na
realidade». O trabalho humano respeita os códigos naturais, porque, de
acordo com a fórmula baconiana, lhes impõe novos fins ao mesmo tempo que
lhes obedece.
Todavia, o finalismo
intrinsecamente criador do trabalho humano artesanal ou
técnico-científico acaba, ele próprio, por se esvaziar quase de todo
numa sociedade em que os valores de uso se sujeitam à lógica dos valores
de troca, em que o trabalho vivo funciona como cadeia de reprodução
ampliada do trabalho morto feito capital, feito mais-valia, feito lucro
pelo lucro. E a arte só extravasa do circuito alienatório da
mercenarização geral do trabalho humano na medida em que as suas
criações deixam de actuar como cúmplices da coisificação dos homens, e
actuam como despertadoras da subjectividade humana superior,
inseparavelmente individual e social, que, mesmo quando não é uma
consciência directa de fins, é pelo menos uma consciência e um
imperativo de finalidades imanente e permanentemente criadora para a
vida humana.
Mário Sacramento não
concordava comigo em que a arte autêntica é sempre virtualmente
/ 62 /
realista, mas ambos concordávamos em que a plenitude humana da arte
realista aponta para o socialismo.
Vou terminar esta resenha da
obra crítica e ensaística já publicada de Mário Sacramento. Os
Ensaios de Domingo reunidos em 1959, e agora prestes a serem
reapresentados com o acréscimo de mais dois volumes, mereceriam muitos
comentários, mas a multiplicidade dos temas neles versados não permitem
uma condensação. Aí se contêm muitas das melhores reflexões e, mesmo
literariamente, das melhores páginas do autor, como três notabilíssimas
páginas pungentemente risonhas sobre a medicina em Portugal, e notas
percucientes e decisivas sobre a melhor peça teatral de Régio, sobre a
crise de consciência de Raul Brandão, sobre a dialéctica da ironia e do
drama em Cesário Verde, sobre a história social e psicológica da
feminilidade datada que, em Florbela Espanca, se ergue até um
humanismo permanente, etc.
Isto que vos trouxe escrito,
para servir de núcleo a um estudo mais amplo que o nosso amigo bem
merece, é, como preveni, necessariamente parcial. Há que aguardar a
publicação integral da sua obra literária. Há que criar
/ 63 /
condições para um estudo documental e objectivo da sua acção pessoal.
Não seria eu, evidentemente, a pessoa indicada para focar o drama da sua
vida profissional, ou a atenção focada à sua região natal. Poderia, é
certo, examinar aqui a maneira exemplar como, logo que lhe foi possível
e na medida do possível, ele entabulou na imprensa local um diálogo leal
e fraterno com os católicos conciliares, os católicos do
aggiornamento da Igreja, mas creio que seria mais edificante que
fossem os seus próprios interlocutores católicos, reais ou virtuais, a
fazê-lo. Todavia, como neste momento seguro, embora com mãos mais
fracas, o facho de um legado que Mário Sacramento nos confiou, não quero
deixar de erguer esse facho à altura de certas das suas afirmações
cruciais.
Nós, materialistas como
Mário Sacramento, também cremos, e cremos talvez mais firme e
desinteressadamente do que outras pessoas, que a existência tem um
sentido possessível, um sentido que não é dogmaticamente certo, mas
apenas possível, um destino que não cabe em qualquer mito religioso
sobre os Novíssimos do Homem, mas que é inerente
/ 64 /
à própria convicção com que lutamos, e sofremos, e nos desgastamos
quotidianamente numa ponderação, sem decálogo à vista, entre os fins e
os meios da humanização progressiva.
Nós queremos que todos os
homens venham a ser, e sejam desde já quanto possível, o sujeito activo
e consciente, e não apenas o objecto, a engrenagem passiva da história
ditada pelas minorias exploradoras.
Aqui e agora, em Portugal,
nós cremos firme e activamente que a Nação Portuguesa, não como
substantivo abstracto, mas concretamente incarnada em 9 milhões de
pessoas, fora os emigrantes e dispersos por todo o mundo, temos um
futuro a construir infinitamente mais digno do que aquela história,
aliás tantas vezes gloriosa, que durante 8 séculos disputámos a outros
povos de aquém e além-mar, sob a hegemonia de aristocracias ou
burguesias que fizeram a sua época, geralmente como capatazes ou
intermediários do capitalismo mercantil ou financeiro internacional,
como sabemos por intermédio de Oliveira Martins, Lúcio de Azevedo,
António Sérgio e Jaime Cortesão, e hoje, unanimemente, pelos nossos
melhores historiadores e economistas
/ 65 /
vivos. Nós queremos um Portugal em que todos os portugueses sejam
cidadãos autênticos de primeira e única classe, e queremos também ter a
certeza de que não estamos a fazer de ninguém um português à força,
porque isso é um atentado contra a nossa honra nacional.
Nós queremos isto, e sabemos
que isto é difícil, e, mais ainda, sabemos que o dia de amanhã é
imprevisível, cheio de ciladas, de decepções e de desgostos. Mas foi
precisamente à vista destas contingências que Mário Sacramento concebeu
a nova estética realista, resumindo-a nestas admiráveis palavras com que
vou rematar, para que todos fiquemos a ouvir a sua voz, vinda, não de
outro mundo, mas surgida do meio de nós, implantada nos nossos corpos,
na nossa vontade e na nossa saudade:
«O amanhã pode trazer sempre
a novidade real, a do conteúdo, porque o maravilhoso da vida inclui a
tragédia, a angústia e o pessimismo, cuja fatalidade é tanto menos
irremediável quanto é certo o homem, logo em sua infância histórica, a
ter submetido, a ter
/ 66 /
domesticado não só no modelo reduzido das suas conquistas materiais, mas
no modelo completo, exacto, dessa obra portentosa que é sua e que se
chama - Arte, Tendo-a criado, que mais não poderá fazer o homem? Por
isso, toda a arte que não semeie amanhãs se diminui, ela própria, como
obra-prima do homem».
Óscar Lopes
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