Ferreira de Castro, Um homem exemplar, pp. 29-32

Um homem exemplar

AINDA tenho muito vivo no espírito o belo e tão lúcido discurso de Mário Castrim, pronunciado, com veemente sentimento de justiça, lá onde a Posteridade começa.

Desejo, pois, iniciar estas breves palavras agradecendo àqueles cuja iniciativa permitiu ao povo de Aveiro exprimir, ainda uma vez, hoje, no cemitério e aqui, a sua fidelidade e o seu preito à memória de Mário Sacramento, figura que simboliza os mais profundos / 30 / valores humanos. Ele continua vivo – disse-o Mário Castrim; e vivo continuará: aquelas flores que hoje cobriram a sua campa homenageavam também o futuro que ele tanto defendeu.

Vamos ouvir novamente falar dele. Desta vez o Dr. Óscar Lopes.

Minhas Senhoras
e meus senhores:

Não tenho a pretensão de vos apresentar o Dr. Óscar Lopes. Portugal inteiro o conhece. Quero apenas dizer-vos que ninguém melhor do que ele poderia discorrer, hoje, sobre Mário Sacramento. Uma completa identidade une estes dois grandes espíritos. Ambos se dedicaram à crítica e à história literária. Ambos devotaram a vida ao povo português, às suas aspirações e à sua cultura. Trilhando o mesmo caminho, por essa devoção pagaram numerosos sacrifícios, os que se tornaram públicos e os que ficaram íntimos e são, muitas vezes, os mais dolorosos.

Mesmo que Óscar Lopes não falasse nesta homenagem póstuma, que prestamos a / 31 / um homem exemplar, de todos nós tão querido e tão admirado, mesmo que nos desse apenas a sua presença, poderíamos afirmar que ele representava aqui a Mário Sacramento, como um irmão a outro irmão. Irmãos pelo espírito, pelas ideias e seus objectivos, que é onde a fraternidade se realiza de maneira mais completa. Irmãos eram e irmãos continuam sendo na obra de cultura de que tanto carece o nosso povo.

Há anos, num tribunal do Porto, foram julgados cinquenta e dois jovens, entre eles Óscar Lopes, já então professor e homem de letras prestigioso, de quem fui testemunha. E uma das acusações que lhe faziam, a principal, era de haver tido contactos com o povo.

Quando o advogado de defesa me perguntou se eu considerava um crime os contactos dum escritor com o povo, não era só a causa do Dr. Óscar Lopes que se julgava, era a causa de tantos intelectuais do Mundo inteiro, inclusive eu próprio. Quem melhor poderia contribuir para a cultura popular, quem melhor poderia interpretar os anseios dum povo do que os seus intelectuais? Eis um ponto que me parece ter ficado, mais uma vez, bem definido, através das palavras e da minha / 32 / própria emoção, nesse julgamento memorável.

Realmente, se todos os escritores se houvessem desinteressado do progresso humano, a própria civilização teria evoluído muito menos e os seus imensos defeitos e as suas inumeráveis injustiças seriam hoje mais numerosos ainda do que são.

Vamos ouvir o Dr. Óscar Lopes. E, através dele, vamos de novo conviver com Mário Sacramento, que tanto honrou Aveiro, que tanto honrou Portugal e tão persistentemente serviu a Humanidade, sem uma só quebra, sem um só desvio, sem uma só incoerência.

Ferreira de Castro

 

 

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pp. 29-32