UMA AULA DIFERENTE

Passavam apenas dois minutos quando o professor assomou ao cimo das escadas, no patamar do primeiro andar. A aula era na sala 29, na parte antiga da escola.

 

Alguns alunos, à porta da sala, consultavam os relógios, na esperança do segundo toque, anunciador do tão desejado feriado. «E logo ao primeiro tempo... vinha mesmo a calhar para ir dar uns chutos no recreio e aquecer um pouco, que a manhã estava fria. Mas não! Lá vinha ele de pasta na mão. Que azar!», pensou o Miguel, frisando o sobrolho.

        

Bom dia cumprimentou o professor, enquanto retirava a chave da carteira e abria a porta da sala.

        

Entraram. Tomaram os lugares e a aula começou.

        

O que é que estudámos na última aula, Alberto?

        

O Alberto, distraído na conversa com a colega de carteira, levantou a cabeça e gaguejou, sem saber o que lhe queria o professor. Sem qualquer advertência, o professor remeteu a questão para o João.

        

«Tinham analisado um texto em português arcaico e havia um pequeno trabalho para casa. Além disso, segundo lembrou o João, faltava a análise formal do poema.»

        

Em breves minutos foi efectuada a correcção do trabalho de casa e ouvida a opinião de alguns alunos. E antes da análise dos versos, o professor pediu a uma aluna a síntese das ideias do texto. Depois, pediu a contagem das sílabas métricas. E aqui começaram os problemas a surgir: houve dúvidas e muita asneira à mistura. Alguns alunos não sabiam ou já não se lembravam da maneira de contar as sílabas... Mas verdadeiramente surpreendido ficou o professor quando constatou que já ninguém se lembrava das noções mais simples de versificação. As férias tinham ajudado a esquecer muita coisa!

        

Surpreendido mas não preocupado, o professor disse que não era grave. Estava ali para ajudar e se não se lembravam a solução era reavivar ou reaprender noções esquecidas. E, fechando o livro, abandonou a planificação prevista e resolveu fazer uma aula diferente, com a colaboração de todos.

        

De certeza que há aqui poetas na turma disse o professor. Vamos fazer uma aula divertida, com um pouco de humor à mistura e, com a colaboração de todos, vamos aprender para sempre noções importantes. E se inventássemos alguns versos para os analisarmos?

        

Toda a turma concordou. E o professor deu o pontapé de saída, escrevendo no quadro:

 

 

                            Quando te vejo bonita,

                            Meu coração estremece...

 

        

E parou de giz no ar. Procurava o resto para a quadra, mas não lhe saía mais nada.

 

Vá lá, dêem-me uma ajuda. Temos de arranjar dois versos para acabarmos esta quadra.

 

Toda a gente pensou, mas não saía nada. De repente, da fila da esquerda, mesmo ao fundo, ouviu-se a voz fina do Ricardo:

 

                   ... Tu és a minha mocita

                   Que o meu coração aquece.

 

Toda a turma achou a quadra bonita e efectuaram a sua análise.

 

Ao fim de algum tempo, existiam já vários versos e diferentes esquemas com noções importantes. Mas o problema é que o tempo voara sem ninguém dar por isso. E foi com grande espanto que todos se deram conta que já estava a tocar.

 

À saída, o Miguel, que tanto desejara um feriado, estava satisfeito. A aula passara num ápice. E afinal até se tinham divertido e aprendido coisas giras! E então o último texto inventado era giríssimo. Até ele se entusiasmara e arranjara uns versos para completar as primeiras linhas sugeridas pelo professor. E, para contar aos colegas da outra turma e não se esquecer, ia repetindo mentalmente:
 

                   Em frente ao café Nicola,

                   Um malvado mariola,

                   Disparou uma pistola

                   Perfurando a cartola

                   De um pobre rapazola

                   Que, tocando uma viola,

                   Andava a pedir esmola.

 

HJCO, Registos da minha pena, Aveiro, 20 de Outubro de 1988.

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