Aveiro como porto bacalhoeiro
Como muito bem se sabe, o problema da pesca do bacalhau é um problema
nacional. O Relatório do Decreto n.º 26.106, que cria o Grémio dos
Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau, é bastante elucidativo sobre
este assunto e considera-o como um dos problemas mais importantes a
resolver pelo Estado.
Assim, naquele relatório, frisa-se que o consumo de bacalhau aumenta de
ano para ano, embora se tenha desenvolvido bastante a pesca do peixe
fresco. Tem aumentado a produção nacional de bacalhau, mas tem também
aumentado a importação de bacalhau seco, e todos os anos se mandam para
o estrangeiro mais de 127.000 contos destinados à aquisição deste
produto.
Se repararmos bem, vemos que os países que nos fornecem bacalhau seco
são exactamente aqueles para com os quais nós mantemos a nossa balança
comercial deficitária e, por isso mesmo, não há inconveniente algum em
suprimir quase totalmente a importação de bacalhau, substituindo-a pelo
desenvolvimento da nossa frota bacalhoeira, de forma a conseguir o
abastecimento directo do país deste género de primeira necessidade. O
mapa n.º 1 indica a posição económica do nosso país para com os países
principais fornecedores de bacalhau.
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Mapa n.º 1
Extraído do "Anuário Estatístico de Portugal"
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Principais países nossos fornecedores de bacalhau (contos) |
Importação quase exclusiva de bacalhau
(contos) |
Exportação
(contos) |
Terra Nova .........
Islândia ...............
Noruega ............. |
16.969
37.426
43.757
--------------------
98.152 |
229
424
10.946
--------------------
11.599 |
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Por aqui se vê que não há inconveniente algum em restringir a importação
de bacalhau, visto que em nada com essa restrição prejudicamos a troca
dos nossos produtos.
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A França e a Inglaterra são nossos minúsculos fornecedores de bacalhau e
em relação a eles também importamos mais do que exportamos.
Enviamos, pois, anualmente, 127.000 contos, principalmente para aqueles
três países, sem que daí nos advenha qualquer vantagem. Como veremos
adiante, nós nunca nos poderemos bastar a nós próprios de bacalhau, e,
por isso mesmo, o bacalhau que seremos anualmente obrigados a comprar no
estrangeiro chega e cresce para contrabalançar a balança comercial com
os países fornecedores de bacalhau que sejam nossos melhores
consumidores. É com o fim de provocar o aumento da frota bacalhoeira que
o Estado tem protegido com várias medidas apenas comerciais a indústria
da pesca do bacalhau, e, mercê dessa protecção, ela tem-se desenvolvido,
como mostra o mapa n.º 2, extraído do Relatório do Decreto n.º 26.106.
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Mapa n.º
2
Extraído do
Relatório do Decreto n.º 26.106
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Campanhas |
Número de navios |
Tonelagem de arqueação |
Número de Dóris |
Número de Tripulantes |
1930−1931
1931−1932
1932−1933
1933−1934
1934 −1935
1935−1936 |
43
26
30
35
33
47 |
11.362,27
7.096,40
8.064,43
9.672,02
9.164,53
13.938,37 |
1.522
953
1.000
1.226
1.134
1.712 |
1.691
1.047
1.113
1.377
1.274
1.944 |
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Este desenvolvimento tem sido acompanhado pelo porto de Aveiro, posto
que a sua barra esteja em más condições, como também mostra o mapa n.º
3, junto.
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Mapa n.º
3
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Campanhas |
Número de navios |
Tonelagem de arqueação |
Número de Dóris |
Número
de Tripulantes |
1930 −1931
1931 − 1932
1932 − 1933
1933 − 1934
1934 − 1935
1935 − 1936 |
20
10
11
13
14
15 |
5.043,37
2.582,77
2.882,08
3.617,61
3.829,24
4.120,86 |
687
344
359
464
505
600 |
790
380
406
516
556
604 |
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Do Relatório do Decreto n.º 26.106, vê-se que, para se poderem pescar as
51.000 toneladas de bacalhau que importamos, necessitaria a nossa frota
de ser constituída por mais de 300 veleiros.
Perante este número assustador, pergunta-se: Tem Portugal portos em
condições para receber, apetrechar e mandar aos bancos da Terra, Nova e
Groenlândia 300 veleiros? A resposta é imediatamente negativa.
---o-O-o---
Analisemos, no entanto, a remodelação que a pesca do bacalhau pode
sofrer, por virtude da introdução de novas modalidades de pesca e de
seca.
Até hoje, têm-se empregado exclusivamente veleiros, aos quais se têm
aplicado motores, e só se tem empregado a seca natural.
Os vapores de arrasto e a seca artificial podem reduzir muito o número
de navios e também as áreas de terraplenos necessários à seca.
Mas os vapores de arrasto reduzem apenas na proporção aproximada de 1
para 5 o número de veleiros, e para cada vapor de arrasto fica sendo
necessária uma seca artificial. Daqui resulta que, para abastecer o país
de bacalhau, seriam necessários 60 vapores de arrasto e 60 secas
artificiais.
Mesmo nestas condições óptimas, nós decerto não teríamos portos
devidamente apetrechados para manter os 60 vapores de arrasto.
/ 4 /
Mas os vapores de arrasto têm necessariamente, para nós, graves
inconvenientes e em Portugal não se podem desenvolver, como à primeira
vista parece. Em França trabalham em condições que nós não poderemos
atingir.
Assim, um vapor sai dum porto de França e, uma vez nos Bancos da Terra
Nova, conduz o seu peixe, pescado nos primeiros meses, para as
possessões francesas de S. Pierre et Miquelon, e só por fim é que
carrega e volta a França, onde seca o seu último carregamento. Quer
dizer: desta maneira consegue em cada campanha três ou quatro
carregamentos, amortizando deste modo os 6.000 contos que
aproximadamente o vapor custa.
Em Portugal isto não pode suceder, porque não temos possessões próximas
dos bancos da Terra Nova que permitam este aumento de peixe pescado.
Assim, o vapor de pesca tem de sair em fins de Fevereiro e entrar em
Junho, sair novamente neste mês e entrar em Outubro. Pode, pois, fazer
dois carregamentos apenas, o que o coloca em condições de inferioridade
para com os vapores franceses.
É exactamente isto que claramente está indicado a pág. 8 do «Relatório
do comandante e chefe dos serviços médicos do cruzador “Carvalho Araújo"
sobre a comissão desempenhada por este navio nos bancos da Terra Nova,
em 1923.»
Só por esta razão se vê que o vapor de pesca não poderá ter campo de
acção exclusivo entre nós.
---o-O-o---
Mas, por outro lado, o vapor de pesca é indispensável, em parte, para a
manutenção de bacalhau seco durante todo o ano; e, se não, vejamos:
A principal campanha é a que termina com a entrada dos veleiros em
Setembro e Outubro. O bacalhau por eles trazido dura até Abril. De Abril
em diante, o único bacalhau que se consome é importado. Nestas
condições; o vapor de pesca, que saiu em Fevereiro e entra carregado em
Junho, abastece-nos de bacalhau de Junho a Outubro. Somente ficariam
dois meses (Maio e Junho), em que necessitaríamos de importar peixe
estrangeiro, e desta importação nunca nos livraremos, porque, mesmo com
secas artificiais, o peixe verde, chegado em Outubro, não consegue
manter-se seco em bom estado, para consumo durante todo o ano.
---o-O-o---
Vejamos como deveria ser composta a frota bacalhoeira, para evitar a
importação de bacalhau seco.
Do Relatório do referido Decreto, concluímos, tomando para base o ano de
1933, que o consumo de bacalhau é de 4.250 toneladas por mês.
Durante os quatro meses de Julho a Outubro, seria preciso que os vapores
de pesca nos trouxessem 4 X 4.250 = 17.000 toneladas; necessitaríamos,
portanto, de 17 vapores de 1.000 toneladas, que na segunda campanha nos
trariam outras 17.000 toneladas. Ao todo 34.000 toneladas a pescar pelos
vapores de pesca. Mas, como o consumo anual é de 51.000 toneladas,
faltavam-nos ainda outras 17.000 toneladas a pescar por veleiros. À
razão de 146 toneladas por veleiro, seriam precisos 116 veleiros.
Portanto, caminhando a par do progresso, poderíamos substituir a frota
de 300 veleiros, de que necessitamos, por uma frota constituída por 17
vapores de pesca e 116 veleiros.
Nunca podemos pôr de parte os veleiros para aumentar o número dos
vapores de pesca, porque, então, a segunda campanha destes vapores
forneceria peixe em quantidade demasiada, que certamente se estragaria.
Notemos, porém, que não é fácil conseguir o apetrechamento de 17 vapores
de pesca, pela circunstância já atrás indicada. O seu sucesso, apesar da
enorme independência e raio de acção de que estes vapores são dotados,
está dependente do estabelecimento de arraiais de pesca nas proximidades
dos bancos da Terra Nova. Sem essa facilidade não podem esses navios
substituir as redes avariadas, condição essencial da garantia de boa
pesca. Poderemos, quando muito, possuir alguns vapores de pesca, devendo
predominar sempre os veleiros, cujo número, a avaliar pelo incremento
que têm tido nestes últimos anos, deverá ultrapassar, a breve espaço,
mercê da bem orientada protecção que o Estado lhes dá, a casa dos 100.
Como os vapores de arrasto não realizam, no caso de Portugal, as
condições ideais de exploração, devemos admitir a existência de uma
frota mista, em que avultem os veleiros munidos de motores e que dão uma
exploração económica.
---o-O-o---
Ora nós não temos, presentemente, portos que consigam armar
convenientemente 100 navios veleiros.
Os raros portos de entradas e saídas francas que temos não dispõem com
facilidade das necessárias áreas para a seca de tão elevada quantidade
de bacalhau e neles, sendo grandes centros, as populações piscatórias
perderiam as suas qualidades para o exercício desta indústria, como tão
insistentemente têm acentuado os Congressos de Navegação que se têm
ocupado do assunto.
/ 5 /
Demais, só são próprios para a seca do bacalhau os portos situados de
Lisboa para o Norte, por causa, evidentemente, das condições
climatéricas.
A França, que manda aos bancos mais de 100 navios, tem 7 portos de
armamento. Nós temos apenas 5. Isto num país onde o consumo de bacalhau
por habitante é mais elevado.
Não faz sentido que se active e se faça reviver a pesca longínqua, sem
se lhe dar as necessárias condições de armamento. Aveiro é o primeiro
porto bacalhoeiro português. Apesar das suas más condições de barra,
esta indústria tem-se desenvolvido mais que nos outros portos. Isto
justifica-se pelas seguintes circunstâncias, que em nenhum outro porto
se encontram em tão elevado grau:
a) Condições climatéricas especiais para seca;
b) Estaleiros bem situados para construções e reparações de navios;
c) Óptimas condições de hibernagem dos navios;
d) Amplos e apropriados espaços para secas naturais;
e) Tendência natural da população para a pesca de longo curso.
Quer dizer: é da região de Aveiro que saem todos os capitães da marinha
mercante que se dirigem aos bancos da Terra Nova.
Com estas condições, não admira que o primeiro vapor português de pesca
de arrasto seja da praça de Aveiro. De facto, em Junho próximo, um navio
de 1.000 toneladas, já em adiantado estado de construção, demandará os
Bancos da Terra Nova e deverá dar entrada na Barra de Aveiro.
O único receio do armador deste navio funda-se nas condições de acesso
da nossa barra.
Sendo 5 os portos portugueses de armamento para a pesca do bacalhau,
Aveiro figura com 1/3 aproximadamente do bacalhau pescado para Portugal.
Em 1933, segundo a "Estatística das Pescas Marítimas", a quantidade de
bacalhau verde entrado na praça de Aveiro foi de 2.590.080 kg., o que
corresponde a 2.072.640 kg de bacalhau seco, ou seja, 6.982 contos, ao
preço oficial de 3$36(9).
Com o aumento que se pretende dar à frota nacional, com o concomitante
aumento de navios veleiros (13 em 1933,14 em 1934, 15 em 1935), deverá
já atingir, em 1936,18 veleiros e um vapor de pesca. A frota de 1936
deverá fazer entrar no porto de Aveiro 4.000 toneladas de bacalhau seco,
o que dará cerca de 12.000 contos.
Isto em 1936, com os números certos de que se dispõe. Tendo já, há
poucos anos, apetrechado esta praça 22 navios, sem alguma espécie de
protecção, não é de admirar que, num curto número de anos, o valor do
bacalhau pescado pela praça de Aveiro seja superior a 20.000 contos.
Mas, para que a frota bacalhoeira tenha, num futuro próximo, o
desenvolvimento que o Estado pretende, com a sua protecção, é necessário
que o porto de Aveiro tenha boas condições de acesso.
Calculando de outra maneira:
A quantia que todos os anos mandamos para países estrangeiros que não
nos interessam sob o ponto de vista comercial é, em média, de 127.000
contos. Supondo que nunca nos libertamos da importação de uma certa
quantidade de bacalhau seco, e que essa quantidade tem, em média, o
valor de 30.000 contos (quantia mais que suficiente para garantir a
troca de produtos com certos países), teremos que o nosso país ficará,
mercê da protecção que se está dispensando à indústria de bacalhau, a
pescar directamente cerca de 90.000 contos.
Como o porto de Aveiro manda para os bancos da Terra Nova um terço da
nossa frota bacalhoeira, e como o desenvolvimento dessa frota tem
caminhado à frente dos outros portos, deverá caber a Aveiro, segundo a
política económica que o Estado está seguindo, pesca no valor de 90.000
/ 3 = 30.000 contos, se a barra der franco acesso.
Quer dizer, entre 20.000 e 30.000 contos será a quota parte que Aveiro
terá na indústria da pesca do bacalhau.
Fixemos, em média, 25.000 contos num futuro muito próximo.
Perante este número, a que se chega, sem fantasias, a partir de números
oficiais, pergunta-se: Se o nosso país entrega, principalmente à
Islândia, à Noruega e à Terra Nova, 98.000 contos por ano, países esses
que não têm relações comerciais importantes connosco, não será muito
mais lógico que a quota parte do ouro que Aveiro pode evitar que saia
improficuamente para o estrangeiro seja entregue a Aveiro para as obras
de melhoramento da sua barra?
Basta empregar nas obras do porto de Aveiro a quota parte que lhe
corresponde com menos de dois anos, para que se garanta um bom acesso à
sua barra e se evite para sempre a drenagem de ouro para o estrangeiro.
Pelas condições especiais em que Aveiro se encontra como porto
bacalhoeiro, uma vez levadas a efeito as obras, estamos convencido de
que o aumento da frota bacalhoeira será muito superior ao que acabamos
de prever.
Não analisaremos agora as enormes vantagens que advêm para a economia
regional e nacional do aumento da frota bacalhoeira, pelo emprego de
grande número de braços, e pelo aumento de riqueza que daí resulta para
o nosso país.
Em conclusão: só pela 'pesca de bacalhau se justifica economicamente a
construção do prolongamento dos Molhes da Barra de Aveiro. Frisamos mais
uma vez que não faz sentido que se esteja a activar a indústria da pesca
do bacalhau sem que, a par da protecção, se dê aos portos que a essa
indústria se dedicam, em elevado grau, a necessária e paralela
eficiência.
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