Sesta interrompida

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No dia vinte e oito, após uma manhã inteiramente passada no gabinete do comando e um almoço de dieta e pouca conversa com o doutor, decidi não ir ao Briosa Bar. Deixei o médico partir no jipe, voltei a entrar na messe e enfiei-me no quarto. Fechei as portadas exteriores de madeira das janelas, para reduzir a luminosidade, e estiquei-me sobre a cama. Em breve, estava de olhos profundamente cerrados e, curiosamente, a recomeçar o sonho que ficara interrompido. Esta noite, nas horas em que deveria estar a dormir, levantei-me, vesti-me e dei uma volta pela vila, deserta àquela hora da madrugada. Embora aqui não tenha com que me preocupar com as sentinelas, porque não estamos no meio do mato, resolvi passar pelo refeitório e caserna das praças, para verificar as condições de segurança. Subi depois pela avenida principal. Passei pela messe de sargentos e regressei à de oficiais, voltando a enfiar-me na cama. E quando estava novamente ferrado no sono e a sonhar, fui acordado pelo impedido, que cumpria rigorosamente as minhas ordens de me acordar a tempo e horas para o pequeno-almoço e rotinas matinais inerentes a quem desempenha o cargo do comando da Companhia. Talvez por isto, porque não dormira e sonhara o indispensável para o meu equilíbrio psicológico, retomei o mesmo sonho no ponto em que fora cortado.

Andava eu no meio da selva, em plena operação no meio de densa vegetação, espiado por macacada que vinha espreitar-nos do cimo das árvores, quando o soldado atrás de mim me dirigiu a palavra:

— Alferes, deve ir junto do nosso radiotelegrafista. O nosso comandante de batalhão quer falar consigo.

Respondi ao rapaz que estava certo, que iria deixar imediatamente a minha posição e deslocar-me até à secção onde se encontra o moço das transmissões. E deixava já o meu lugar na coluna, quando fui violentamente sacudido por outro soldado:

— Meu alferes, acorde. Acorde que o nosso Comandante Soares Coelho está à espera para falar com o alferes.

Vi-me subitamente fora da selva, sem saber onde me encontrava: se ainda no sonho; se na realidade. E resmunguei.

— Hum! O que se passa? O que queres de mim?

— Meu alferes, tem de ir depressa falar com o nosso comandante.

— Qual nosso comandante?

— O nosso comandante de batalhão, alferes, o tenente-coronel Soares Coelho.

— Onde é que ele está? O que é que está a fazer na sala de transmissões?

— Não está na sala, meu alferes.

— Então onde? Não te estou a entender. Explica lá isso melhor.

— O nosso tenente-coronel Soares Coelho está em Sanza Pombo, alferes. Quer falar com o alferes pela rádio. Tem que lá ir ao posto das transmissões. Tem que se despachar, que ele já lá está dependurado há rores de tempo, alferes.

— Desculpa lá, rapaz. Já entendi. Desculpa a minha reacção. Acordaste-me mesmo no meio de um sonho e estava baralhado. Vou já para lá. Vai tu andando, que eu é só calçar-me e vou já para lá. Não digas que estava a dormir. Olha, diz-lhe que foste à minha procura. Diz-lhe... Diz-lhe que estava com o médico no café, a tomar a bica depois do almoço. Vê lá agora se me deixas ficar mal. Não digas que estava a dormir a sesta. Ainda é capaz de pensar que andei às gatas durante a noite...

— Esteja descansado, alferes. Digo-lhe que o alferes estava no café e que já vem a caminho.

Enfiei os sapatos rapidamente e dirigi-me apressadamente para o edifício das transmissões, ao lado do Comando da Companhia. Em breve, estava em conversa directa via rádio com o comandante, sem qualquer precaução de segurança nas comunicações, tal como se estivéssemos em amena conversa através do telefone.

— O meu Comandante mandou chamar-me?

— Sim, nosso alferes. Pensei que o nosso alferes tivesse ido de fim-de-semana ou não quisesse falar comigo.

— De modo nenhum, meu comandante.

— Então porque levou tanto tempo?

— O rapaz andou à minha procura, meu comandante. A seguir ao almoço, ausentei-me na companhia do nosso médico. Depois de almoço, é costume irmos tomar a bica a um café de Quimbele, meu Comandante. O moço teve de me localizar. E para chegar aqui ao posto de transmissões, meu comandante, a pé, meu comandante, leva algum tempo.

— O nosso alferes não tem o jipe do Comandante de Companhia?

— Tenho, sim, meu comandante. Mas não costumo utilizá-lo, meu comandante. Ando sempre a pé. E faz mais jeito ao médico do que a mim, meu comandante. Da messe ao hospital, meu comandante, são uns quatro ou cinco quilómetros.

— Já entendi, nosso alferes.

— O meu Comandante pretendia...

— Necessito de conversar seriamente com o nosso alferes.

— Sim, meu Comandante.

— Recebi há dias uma participação da Terceira Companhia. O nosso alferes está ciente da importância e gravidade dessa participação?

— Sim, meu Comandante. Não sou nenhum inconsciente, meu Comandante. Sei bem quais são as minhas responsabilidades.

— O nosso alferes vai ter de se deslocar imediatamente à minha presença....

— Como assim, meu Comandante? Não estamos já em presença a falar?

— Em presença, aqui no meu gabinete. O nosso alferes vai ter de se deslocar aqui, a Sanza Pombo.

— Sim, meu Comandante. Já?! Deixo a Companhia assim de repente?

— Amanhã, sem falta. Amanhã, depois do almoço, quero-o aqui no meu gabinete. Sem falta. Por agora é tudo. Até amanhã. Ah, é verdade, deve trazer a Berliet e uma secção a escoltá-lo.

— Entendido, meu Comandante. Até amanhã.

Não será necessário dizer-vos que segui directamente do edifício das transmissões para o gabinete do comando e que mandei chamar o furriel de serviço para lhe transmitir as minhas ordens.

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