Participar ou não participar |
Quimbele, 24 de Maio de 1973 Acabo de folhear as cópias a químico da última colecção de aerogramas. Verifico que me enganei redondamente nas previsões. Encerrei a última correspondência dizendo «retomo a escrita amanhã», o que deveria ser o dia vinte e dois. E já lá vão dois a mais, porque hoje é o dia vinte e quatro. De onde se conclui que nunca deveremos fazer afirmações categóricas. Entre o pensar e o fazer vai sempre uma certa distância. E, às vezes, esta acaba por ser maior do que aquilo que havíamos pensado. Seja como for, o problema não é grave. E esta reflexão foi até uma óptima maneira de agarrar a ponta da meada. Como diz o ditado, o comer e o coçar, o que custa é começar. E é precisamente nesta fase das cartas que mais me custa arrancar. O motor ainda está frio. O lubrificante ainda não actuou devidamente nos neurónios e a escrita custa mais a fluir. Depois, com o motor quente, a viatura embalada e a quarta ou quinta engatada, a caneta começa a deslizar sem dificuldades, vencendo facilmente as subidas da inércia na estrada das ideias. Pois é verdade! Tal como disse no final da última colecção de aerogramas, o dia catorze foi tramado. E o seguinte não foi melhor. Apesar dos problemas com o físico terem amainado, vi-me completamente sozinho. Os oficiais da CCS regressaram a Sanza Pombo após o almoço. Foi um grupo meu levá-los. Mas nem tudo foi mau nesse dia. Durante a manhã, retomei as rotinas como comandante de Companhia. O largo espaço do começo da manhã, tomado o pequeno-almoço, foi passado no edifício do comando. Tinha mensagens para decifrar e papelada acumulada ainda do dia anterior, sem falar na verificação e assinatura das escalas de serviço, elaboradas na secretaria. Depois disto, estive um bom pedaço de tempo na conversa com o sargento-ajudante. — Relativamente àquilo que conversámos há dias, o alferes Ulisses tem toda a razão. Efectuei as verificações que me pediu. Aliás, não foi para mim nenhuma surpresa, alferes. Já me tinha apercebido do problema. Disse-lho da primeira vez que tocou no assunto. E já em tempos tinha chamado a atenção do nosso capitão. — E ele, como é que reagiu? — Que era ele o comandante da Companhia. Que os problemas da Companhia eram da responsabilidade dele! — E o nosso sargento, o que é que lhe disse? — O que é que queria que dissesse? O comandante é ele. É ele quem manda. — E o nosso sargento acha correcto? — Correcto, correcto, claro que não acho! Não é caso único, alferes. São os negócios habituais aqui na tropa. O que é que o alferes pensa fazer? — O que acha que devo fazer? Se há problemas sérios, graves e desonestos, o que acha que devo fazer? Não lhe parece que deve ser participado? Não posso deixar passar negócios pouco claros! E para mais tendo sido involuntariamente envolvido. Não sou o bode expiatório de ninguém. Além de que nunca gostei de trafulhices. Gostei sempre das coisas nos devidos lugares. Foi isso que sempre aprendi e que os meus pais me ensinaram: pobre mas honrado. — E o nosso alferes já pensou nas consequências? — Que consequências? — Se o alferes participar, irá dar lugar a um auto de averiguações. E o alferes está envolvido. Mesmo sem culpa nenhuma, acabará por sofrer as consequências! — Que consequências? Está a querer dizer-me que o melhor é deixar passar? Nunca gostei de trafulhices e, sobretudo, de me fazerem passar por parvo. Quem não deve não teme. Sabe bem que fui involuntariamente envolvido e até ameaçado, inclusive, se não assinasse as papeladas. E disse-o na altura ao nosso capitão. Que assinava apenas para não desobedecer às ordens. E até já o confessei ao capitão da CCS que esteve aqui connosco. — A quem? Ao nosso capitão Glória Dias? — A ele mesmo. Viu-me preocupado e conversou comigo a este respeito. Desabafei com ele. — E o meu alferes confiou nele? — Sem dúvida! Sempre me pareceu uma pessoa honesta e em quem se pode confiar. E deu-me inteira razão. Compreendeu perfeitamente o meu problema. Deu-me todo o apoio. Fiquemos por aqui. Chega de reprodução da conversa, quando não ainda podem pensar que sou algum gravador avariado, por estar sempre a bater nas mesmas teclas. Até porque há coisas mais agradáveis para vos contar, coisas muito mais agradáveis e há muito desejadas. |