Futurologia e fusos horários

 

Amanhã é o dia vinte e cinco de Maio. Sexta-feira. Vai ser o começo de um fim-de-semana diferente. De manhã, coloco todos estes aerogramas, que ainda não são muitos, na caixa do correio. Sim, digo bem: na caixa do correio. Aqui em Quimbele não é como no Alto Zaza ou como quando estava na Quimabaca. Aqui não preciso de os colocar nos sacos do correio. Tenho a dois passos o edifício. Por isso, é só cintá-los todos, para irem juntos, e entregá-los directamente. Ou, melhor ainda, chamar o impedido, quando estiver no gabinete do comando, e entregar-lhos para os ir levar. Como vêem, estar à frente da Companhia e aqui na vila sempre tem algumas vantagens.

De tarde, devo abalar para Carmona, porque o dia do campeonato de futebol de salão é já depois de amanhã, à noite, no pavilhão desportivo desta cidade, a sede do sector onde nos encontramos. Estou cá com uma certa esperança de que iremos sair vencedores, a avaliar pelo empenhamento do pessoal, que não perde uma tarde de treino. E como o nosso pessoal, que conta na equipa com alguns elementos civis, tem aqui em Quimbele uma grande claque, devo ir no carro de um civil. Tive já o convite de um deles para o acompanhar. Não sei se acatarei a oferta ou se seguirei na viatura com o pessoal. Aliás, vou ter de aceitar. Dada a quantidade de pessoas que vão, nem sequer vamos precisar das viaturas militares. Vai tudo à civil e vai haver boleia para todos os interessados, isto é, apenas para aqueles a quem irei autorizar a saída de Quimbele, porque a sede da Companhia não pode ficar despovoada. Além do mais, vamos ter de pernoitar em Carmona e não disponho de dinheiro para pagar a dormida de ninguém, a não ser a minha. E esta terá de ser do meu bolso. Mas isto também não é problema que me preocupe. Todos os que participam fazem-no pelo prazer da prática desportiva e do são convívio. E devo acrescentar que a minha fezada em que iremos ganhar tem um certo fundamento. Isto porque o encontro em Carmona é já a final de um campeonato a nível regional, melhor dizendo, a nível de todo o sector em que nos encontramos. E os Tigres de Quimbele conseguiram já eliminar as outras equipas, inclusive os Tigres de Sanza. Seria mesmo muitíssimo agradável trazermos para Quimbele a taça do torneio. E posso acrescentar que esta fezada não é só minha! É minha e também de todo o pessoal militar e, inclusive, da população civil, que sempre tem dado um grande apoio, acompanhando a equipa nas várias deslocações em que, infelizmente, nunca estive presente, porque andei sempre longe da sede da Companhia. Coube agora a minha vez. E, por sinal, na melhor altura! Se ganharmos, irei poder gozar com toda a malta o prazer da vitória. E, melhor ainda do que isto, vou ficar a conhecer novos horizontes com novos olhos. Sim, digo bem: com novos olhos! Além dos meus dois, tenho agora um terceiro que me permite fixar para a posteridade os locais por onde for passando. Já bastaram as longas semanas em que estive à espera que a máquina fosse reparada. Agora a cantiga é outra.

Para melhorar ainda mais a situação, acabo de receber duas encomendas: uma, saborosa e bastante apreciada; a outra, sem sabor mas desejada. Passo a explicar-me melhor. Doutro modo, corro o risco de ficarem sem saber onde pretendo chegar.

A encomenda saborosa e muito apreciada foi o queijo da serra que tiveram a feliz ideia de me mandar e que vinha acompanhada com elementos não gustativos, mas tanto ou mais agradáveis: os vossos aerogramas com as notícias de casa e dos amigos. A outra encomenda, não mandada por vós, foram os rolos de diapositivos que tinha encomendado há dias na loja onde comprei a máquina fotográfica e que chegaram precisamente há dois dias. Logo, dois factos agradáveis para compensar outros menos agradáveis.

Creio que é tempo de parar. Tenho estado com digressões e até a fazer futurologia, a fazer suposições e a preocupar-me com coisas que não são para preocupações. E o pior é que os olhos estão a querer fechar-se-me. As pestanas começam a ficar mais pesadas que os estores das janelas e a quererem vedar-me a escrita. Seja feita a vontade delas! Vou parar e enfiar-me na cama, que já é tarde e o corpo começa a pedir descanso.

Um grande beijo para os pais. A estas horas a que me deito, já devem estar a dormir há muito. Ou, pelo contrário, se calhar ainda é cedo para vós, porque me quer parecer que aqui andamos mais adiantados que aí. Seja como for, a diferença de fusos horários não deve ser grande. Quando muito, devo andar uma hora ou duas avançado em relação a vós. E aqui está uma coisa em que ainda não tinha reflectido: será que há uma grande diferença horária? Será que, pese embora a grande distância que nos separa, Angola e Portugal não estarão no mesmo fuso horário? Eis um problema interessante sobre o qual nunca tinha reflectido, apesar de termos estudado cartografia e técnicas de orientação durante a recruta em Mafra. Se me lembrar e me deixarem, amanhã procurarei averiguar a resposta a estas reflexões.

Mais um grande beijo para os meus velhotes queridos e até à próxima colecção de aerogramas.

Ulisses de Almeida Ribeiro                             

 

 

PS. - Já estava deitado e voltei a levantar-me. Estou agora à luz do petromax, porque o gerador da vila já está desligado. Tive de me levantar. Acordei a meio da noite a magicar no nome de Gaudi. Será que é este o nome do arquitecto espanhol que me veio à lembrança, quando falei das formigas? Aqui em Quimbele não tenho meios para averiguar. Talvez o pai me pudesse esclarecer. Bastava-lhe ir à Biblioteca Municipal de Coimbra ou à Biblioteca Geral da Universidade e consultar uma enciclopédia. Pensando melhor, é melhor não o fazer! Vou-lhe dar trabalho. E penso que desnecessário! Daqui por um mês ou mês e meio, devo estar aí de férias, junto de vós. Aproveito então, se ainda me lembrar disto, para tirar as dúvidas. Por isso, faça de conta que não escrevi estas linhas. E com isto, volto para a cama, que amanhã vai ser um dia bastante ocupado.

Afinal, ainda não! A cama vai ter de esperar por mim um pouco mais. Acabo de me lembrar de outras coisas importantes, não tanto para vós, mas sobretudo para mim.

Em primeiro lugar, quando mexi na minha papelada, dei com a cópia a químico de um aerograma que me esqueci de arrumar na pasta de arquivo. E verifiquei que estava a faltar à promessa que vos fiz. Este foi um aerograma para um colega de Mafra e Tomar, o Melo dos Santos, que foi parar à Guiné. Escrevi-lhe para lhe dizer que só já nos faltam 526 para acabarmos o nosso desterro e que, em compensação, para amenizar esta pena forçada sem termos culpa, poderemos encontrar-nos em Julho, na metrópole. Por isso, dei-lhe as minhas moradas de Aveiro e Coimbra.

Em segundo lugar, é para vos dizer que recebi hoje mesmo, aliás ontem, porque já estamos no dia vinte e cinco de Maio, uma carta de Luanda, enviada pela agência de viagens com os horários das partidas e chegadas relativamente aos percursos entre Carmona e Luanda e Luanda e Lisboa. Para ficarem com uma ideia, transcrevo-vos os horários recebidos:

 

Percurso

Data

Voo

Partida

Chegada

Carmona/Luanda

28/6/1973

DT 215

14:20

15:05

Luanda/Lisboa

4/7/1973

TP 202

11:00

19:25

Lisboa/Luanda

8/8/1973

TP 257

23:15

08:00

Luanda/Carmona

9/8/1973

DT 214

13:15

14:00

 

Como podem ver, se tudo correr bem, no dia 28 do próximo mês, embarco em Carmona para Luanda. Seis dias depois embarco para Lisboa num voo da TAP. Estarei convosco um mês completo e lá para 10 de Agosto estarei de regresso a Quimbele.

Só peço a Deus que o capitão não me altere as datas das férias, como já disse que pretendia, antes de ter dado baixa ao Hospital Militar de Luanda. Que Deus o conserve por lá muito tempo, que eu aqui estou maravilhosamente sem ele. Se nada disto se alterar, ter-me-ão junto de vós praticamente todo o mês de Julho e mais sete dias de Agosto.

E com isto, volto para a cama, que mais logo vai ser um dia bastante ocupado. E o pai que se deixe de preguiças e me escreva de vez em quando.

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