Almoço na Missão de Quimbele |
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Estive um longo espaço de tempo sem companhia, na esplanada do Briosa Bar. Um largo espaço de tempo feito lagarto ao sol. Embora quente, já não é aquele sol escaldante e insuportável, brilhando lá no alto, no meio de um azul vivo. Esta cor, salpicada pelos algodões brancos e mutáveis das nuvens, já não é bem a mesma. Aquelas nuvens alvíssimas, aqueles brilhantes maços de algodão contrastante com o azul do céu, deram lugar a um largo véu geralmente acizentado, de um branco pardacento, sem o mais pequeno vestígio de nuvens. Até o sol parece estar adoentado, menos amarelo e mais esbranquiçado, como se tivesse um véu a velá-lo. E o casario da povoação e as colinas, ao longe, parecem esfumadas, confundindo-se com a linha do horizonte, quase sem transição entre o verde das matas, que parecem também acinzentadas, ao longe, e o céu, quase da mesma cor. Farto de estar sentado e sem ninguém para conversar, à excepção do dono do café, levantei-me e desci a rua. Parei uns segundos na esquina arredondada, em frente ao Bar Quimbele, e atravessei a rua, mudando para o passeio em frente. Segui maquinalmente até à cantina e ao refeitório das praças. Parei, por momentos, na cortada que atravessa o passeio cimentado e que dá acesso à picada para a missão. À semelhança de Quimbele, a missão fica no cume de uma colina ligeiramente mais baixa que aquela em que me encontro. A toda a volta, vêem-se as copas densas das altas árvores, que formam a mata cerrada que nos rodeia. No meio de um tufo de verdura, agora menos verde porque mergulhado na luz acinzentada do céu, ergue-se um edifício, que se distingue perfeitamente, apesar da distância que nos separa. De tal maneira se distingue por cima da densa mata, que não é difícil imaginar a grandeza das dimensões. Do local onde me encontro até lá, deve ser uma caminhada para uma hora ou mais. Quando efectuei o percurso de jipe, na companhia do capitão, a distância não pareceu tão grande.
Segui lentamente até à cantina. Parei uns segundos em frente ao refeitório e voltei a descer a rua. Regressei ao Briosa Bar na esperança de já lá encontrar o médico. — O alferes anda a queimar o tempo? — perguntou-me o senhor David. — É verdade. Estou à espera do doutor Graça Marques. A fazer horas para o almoço. — Isto hoje, por aqui, está muito sossegado, alferes. Nem é nada habitual. — É domingo! Além disso, está quase na hora do almoço. A malta deve ter ido para o refeitório. Pelo menos, há bocado, quando vim para baixo, cruzei-me com vários soldados. Até o pessoal que estava ali em baixo, no Bar Quimbele, já foi embora. — Aí tem o doutor a chegar, alferes. De facto, o senhor David a acabar a frase e o médico a estacionar o jipe. — Só agora, Graça Marques? — Tive de ir lá acima, ao hospital. — Lá acima ou lá abaixo? — Como queiras, Ulisses. Tive de passar pelo hospital para ver uns doentes. Assim, não tenho que lá ir da parte da tarde. — Queres tomar alguma coisa antes de irmos? —É melhor não. Já passa do meio-dia. Ficámos de lá estar entre o meio-dia e a uma. — Então é melhor arrancarmos. É preferível chegarmos mais cedo que obrigarmos os padres a esperarem por nós. O percurso entre Quimbele e a missão foi de curta duração. Muito menos do que quando andei à caça com o capitão. Sem chuva há já uns tempos, a picada está seca e em bom estado. Notam-se os rodados de muitas viaturas. Certamente, ainda lá se encontram os que lá deixei, há três dias, misturados com muitos outros. — Italianos? — Sim, italianos. Mas estão aqui há muito tempo. Falam bem a nossa língua. Não fosse a pronúncia, passariam por portugueses. — Estou a gostar do edifício. Já reparaste na colunata a toda a volta? Colunas vermelhas, de fuste liso, com arcos de volta inteira da mesma cor sobre capiteis simples, pintados de branco. — As colunas são só deste lado, Ulisses. Do outro, voltado para um campo amplo para futebol, não há colunas. — Ainda bem. Doutro modo, reduziria demasiado a área do rés-do-chão. Mas, mesmo assim, com este amplo corredor por baixo do primeiro andar, a área é vasta. Parámos o jipe em frente à entrada, que forma uma saliência rectangular, também com colunas, sobre a qual se ergue um terraço descoberto. O barulho do motor assinalou a nossa chegada. Ainda a sairmos do jipe e já estávamos rodeados pelos padres, que nos vieram receber. Efectuados as apresentações e os cumprimentos, fomos conduzidos para uma sala de estar, no primeiro andar, para tomarmos uns aperitivos: amendoim torrado com uísque velhíssimo com soda e muito gelo. Hesitei um pouco. O graça Marques tirou-me da atrapalhação. — Descontrai-te. Experimenta. Não te vai fazer mal. Voltando-se para os padres, o doutor explicou-lhes que o nosso alferes Ulisses, ultimamente, tem andado com problemas do estômago. Certamente nervos! O que ele precisa é de se descontrair, de se divertir, de esquecer os problemas e gozar descontraidamente os bons momentos. — Talvez tenhas razão! O jantar de ontem, na messe da CCS, não me causou problemas. Encorajado pelos padres, decidi esquecer as dietas. Peguei no copo com o aperitivo e acompanhei com uns amendoins torrados, que já não provava há muitos dias. À cautela, troquei o uísque por um vermute de marca italiana. — Não sei se irão apreciar a nossa comida. — disse um dos padres. — Fizemos um almoço especial de domingo à italiana. Nós não usamos a sopa, como os portugueses. Mas temos uma lasanha. — Uma lasanha? — perguntámos. — E é o quê? — Um prato típico da nossa terra. Tudo confeccionado por nós. É a nossa entrada, a base para assentar um coelhinho assado no forno com batatinhas assadas. Tomado o aperitivo, os padres conduziram-nos para a sala de jantar: uma sala ampla, bem iluminada por uma grande janela rectangular. Sobre a mesa, posta com um certo rigor, fumegava já a lasanha, libertando um ligeiro vapor e um aroma agradável. Indicaram-nos os lugares e sentámo-nos. Um dos padres pediu-me licença, pegou no meu prato e começou a servir-me. — A lasanha é um prato à base de massa? Como é que isso se escreve em italiano? Nunca ouvi este nome. — Tal como se pronuncia. — A palavra existe em português? É com um «s» ou com um «z»? — Não estás a querer saber de mais? — perguntou-me o médico. — Não, Graça Marques. Se não perguntar não aprendo. Um dos padres esclareceu-me. Foi-me dizendo que não sabia se o nome existia em português, mas que em italiano se escreve com um esse, tal como se pronuncia. E para melhor se fazer entender, soletrou a palavra: l-a-s-a-g-n-a. Lembrei-me das minhas aulas de italiano e acrescentei que, mentalmente, já tinha escrito a palavra e que a minha versão batia rigorosamente certa, até porque o som palatal [nh], que em português se escreve com n e h, é rigorosamente o mesmo que em italiano, embora grafado com um g e um n. E para demonstrar que os meus conhecimentos de italiano ainda não estavam totalmente esquecidos, fiz também referência ao som palatal [lhe], registado em italiano com dois eles ou com [gli]. E lembrei-me do nome de uma cantora italiana, muita ouvida na rádio portuguesa, chamada Gigliola Cinquetti. Para completar a minha nova aquisição linguística e gastronómica, um dos padres explicou-me que a «lasagna» é feita com tiras de massa, muito finas, confeccionadas na própria missão. São acompanhadas com um molho especial, em que pode entrar também um variedade de queijo italiano. — O aroma e o aspecto, mas especialmente o primeiro, são muito agradáveis. — Acrescentei.— O que permite adivinhar que o paladar ainda será melhor! — concluí. De facto, não me enganei. Apesar do gosto um tanto exótico e levemente picante, estava delicioso. Lembrei-me, por momentos, do capitão Glória Dias. Amigo das artes e dos petiscos, tenho quase a certeza que também ele apreciaria e não deixaria de procurar informações mais detalhadas acerca da confecção desta rara experiência culinária. Minutos depois, mudados os pratos e os talheres, entrou o cozinheiro com uma fumegante assadeira de barro vermelho. Ao centro, um louro coelho rodeado por batatinhas pequenas, também elas com a mesma tonalidade do animal. Um cheirinho delicioso fez-me sair, por breves momentos, daquela sala de jantar. Vi-me, subitamente, recuar no tempo. Vieram-me à lembrança os almoços de domingo em casa dos meus tios. Vi-me mentalmente sentado ao lado do meu tio. A minha tia a entrar na sala de jantar com a assadeira com aqueles magníficos coelhos, criados em casa, que faziam as nossas delícias, minhas e do meu tio. Que saudades daqueles almoços que tanto prazer me davam, em que eu e o meu tio reforçávamos o paladar com um pouco de mostarda e molho picante de piripiri, para puxar um pouco mais a bebida. Foi uma ausência rápida daquela sala, mas suficiente para me rever na metrópole e matar saudades. E, para melhor as afogar, peguei no copo com vinho de marca italiana e bebi um golo, regressando à sala. Quando olhei para o prato, constatei que já lá se encontrava uma magnífica coxinha rodeada de batatinhas pequenas. Fora tal a força da evocação, que não me tinha apercebido da atenção que um dos padres me prestara. O mesmo que me tinha enchido a taça com aquele vinho, tinha-me servido e colocado o prato na minha frente. Agradeci a atenção e enchi lentamente os pulmões, saboreando o delicioso aroma que me aguçava o apetite. Um dos padres apercebeu-se do meu êxtase com aquele aroma exótico, quase divino, que eu desconhecia por completo. — O senhor alferes está a saborear o aroma? — Exactamente! É um aroma divino. Não é habitual... Não cheguei a acabar a frase. Apercebi-me que um dos padres estava também deliciado, não tanto com o coelhinho assado com as batatinhas, mas sobretudo com as minhas expressões de surpresa e agrado. E, elogiando as habilidades do cozinheiro e as qualidades da cozinha italiana, acrescentou que o segredo está numa planta perfumada, que cultivam com muito carinho e que utilizam como condimento: o alecrim. — O alecrim inteiro?! — perguntei surpreendido. — O alecrim é uma planta que eu conheço muito bem. É uma planta perfumada, deliciosamente aromática. Mas nunca pensei que pudesse ser utilizada para fins culinários! Explicaram-me que o alecrim é um excelente condimento. Mas a planta tem de ser muito bem lavada e melhor esmagada, utilizando um almofariz de madeira. — Sei muito bem o que isso é! — disse eu. É uma espécie de pilão, como o que utilizam os indígenas para fazerem a fuba, mas em miniatura. Aliás, já encontrei modelos pequenos, em várias sanzalas, que os indígenas utilizam para moer a ginguba e obterem o óleo do amendoim. Com tudo isto, escusado será dizer que me esqueci completamente dos problemas com o estômago e releguei a dieta para as calendas gregas. E, como quem não quer a coisa, talvez por algum rebate de consciência, fui dizendo em voz baixa para o médico, sentado à minha direita: — Mais logo, Graça Marques, é que vai ser o bom e o bonito. — Então porquê, Ulisses? — Vai-te preparando. Se me surgirem problemas com o estômago, és tu que terás de me aturar. — Deixa-te disso. Pensa no sacrifício do animal para teu prazer e goza o momento. É um coelho abençoado pelos padres. Achei graça à expressão do médico e ri-me. Os padres olharam para mim, procurando saber a causa. Expliquei-lhes que o nosso médico, o doutor Graça Marques, acabara de me dizer que podia deliciar-me com o coelho assado com as batatinhas, porque o animal não me iria fazer mal, que tinha sido abençoado e perfumado por eles. E o doutor voltou a esclarecer que o nosso alferes Ulisses continuava com algum receio de comer por causa dos problemas com o estômago. A refeição prolongou-se num ambiente agradável, em que se enalteceram as artes da culinária italiana. E também da portuguesa, porque os nossos antepassados souberam criar uns petiscos que se tornaram célebres. Olha, por exemplo, o leitão assado à moda da Bairrada. — citei eu — É um manjar divino. E estou também a lembrar-me dos ovos moles de Aveiro, que constituem uma bela gulodice. — E não só, Ulisses. Estás a esquecer-te das magníficas caldeiradas de enguias, que se comem em toda a região de Aveiro. — Não me esqueci. Ainda há pouco saí daqui para Aveiro. Estive lá por uns breves segundos. E não te esqueças que em todas as nossas regiões, de norte a sul de Portugal, há petiscos célebres. Olha, por exemplo, na tua terra. Onde é que se come a melhor dobrada? Não será no Porto? Como podem verificar por estas breves transcrições das nossas conversas, se apreciámos bastante a ementa com um toque italiano com que os santos padres missionários nos regalaram, neste abençoado dia treze de Maio do ano da graça de mil novecentos e setenta e três, em terras de Quimbele, a verdade é que ainda não nos esquecemos dos deliciosos petiscos da nossa cozinha, aí na metrópole. Sim, porque aqui, em Angola, também os há bastante típicos e alguns totalmente desconhecidos aí. Estou agora a lembrar-me da deliciosa açorda de marisco, que comi em Luanda, quando cá chegámos em Novembro do ano passado. E as fubadas? Sabem o que isto é? Não devem saber, tal como eu, antes de ter vindo para aqui. As fubadas são um petisco da região, que já provei e que comecei a gostar, especialmente a partir daquele dia em que regressei de uma operação de quatro dias na mata, em que me mantive quase exclusivamente a leite condensado das bisnagas e a água. E sabem que mais? Estou a alongar-me demasiado por causa da magnífica almoçarada na missão de Quimbele. E a pilha de aerogramas a aumentar exageradamente! Já lá vão mais de vinte, preenchidos com uma letra miudinha. E o meu pulso a dar sinal, a ressentir-se da força que tenho de fazer por causa dos duplicados a químico. E o pai, neste preciso momento, a pensar, com toda a razão, que o seu filho é um chatarrão, porque vos massacra com tantas palavras escritas. E até a minha esferográfica começou também a ressentir-se. E esgotei-lhe a carga por completo. E já tive de ir buscar uma nova Bic Laranja de ponta fina, cujo invólucro plástico hexagonal de cor amarelo-alaranjado conduz perfeitamente com o amarelo dos aerogramas. E, e, e... E com tantas conjunções coordenativas copulativas a começarem as frases, começa a ser uma «chatiação» de correspondência. Com toda esta digressão extra-almoçarada, já nós acabámos a refeição e estamos, neste momento, a visitar as instalações da missão. A breve descrição, que há pouco vos fiz, condiz rigorosamente com aquilo que nos foi mostrado. A parte superior, o primeiro andar, é constituída por salas amplas, onde os padres missionários se encontram bem instalados. A superfície do rés-do-chão é inferior à do primeiro andar, devido à colunata que só existe num dos lados. Por isso, as salas são ligeiramente mais pequenas. Além de salas de aula, existe uma enfermaria. Nas traseiras do edifício principal, estende-se uma vasta área plana, devidamente capinada, onde se podem praticar vários desportos, como o futebol, por exemplo.
Para que não seja uma lacuna, não posso deixar de voltar a referir as duas amplas varandas do primeiro andar. Uma, situada a meio do corpo do edifício, constitui uma saliência rectangular descoberta, suportada sobre colunas, formando em baixo, no rés-do-chão, um hall de entrada na missão. A outra, na extremidade voltada para Quimbele e dentro do enorme rectângulo da planta do edifício, é uma área coberta e um local onde se pode estar sentado, aproveitando a frescura dos finais das tardes, nos dias de muito calor. Estivemos aqui a conversar durante um largo período, antes de nos termos despedido. Enquanto aqui estivemos, aproximou-se o doutor do parapeito da varanda e tirou uma fotografia. Em baixo, entre nós e a mata densa que nos separa da vila, está uma estação meteorológica e um aparelho para registar a velocidade do vento; por cima das copas verdes das árvores, vêem-se, ao centro, as casas situadas no topo da colina; do lado direito, a parte alcatroada da picada de acesso à missão, à saída da vila. Despedimo-nos dos nossos anfitriões a meio da tarde. Não o fizemos sem darmos os parabéns ao cozinheiro e acrescentarmos que não nos importaríamos de continuar a descobrir-lhe as restantes facetas da habilidade culinária.
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