Falta de inspiração

Já dei a minha volta. Já desenhei a planta que vos envio. Vai tudo a rigor. Só me faltou uma fita métrica, para poder elaborar o projecto à escala. Não estive para utilizar a mesma minúcia com que desenhei a planta do Alto Zaza, quando elaborei o plano de defesa. Já convivi com o pessoal e com os furriéis que estão aqui. Os mesmos de sempre? Deveria responder: «claro que sim!» Mas é claro que não. Com a escuridão que faz lá fora e a distância que me separa deles, não os consigo ver daqui. Nem com telescópio! Desta vez, não estou com elementos do meu grupo, mas de outro. Mas nem por isso deixam de ser o meu pessoal, o pessoal que está sob o meu comando e pelo qual sou responsável. Também já dei uns mergulhos no rio, onde aproveitei para me ensaboar com champô e tirar o suor do corpo. E já jantámos.

Esboço da planta de Cabula Calonge, tal como se encontra no aerograma original. 
Legenda: A - Mercado; B - Campo de futebol C - Posto escolar D - Zona da água E - Posto sanitário   F - Casa dos milícias   G - Casa do regedor.

 

Tenho neste momento os aerogramas a amontoarem-se e ainda não vos expliquei como vim aqui parar. Não há problema. Tenho um bom petromax a iluminar-me. Tenho uma boa mesa emprestada pela população. Tenho uma cubata só para mim. E tenho uma noite comprida, que me vai permitir rever os últimos dias. Será uma boa estratégia para passar o serão. Vou passá-lo na vossa companhia, a rever os acontecimentos. Só o irei interromper, de vez em quando, para passar uma ronda às sentinelas, não vá o Diabo tecê-las. Não é que desconfie dos furriéis e do pessoal que está de serviço. Mas, cautela e caldos de galinha são excelentes para manter a saúde e o físico «comme il faut».

O grande problema do momento, e devo desde já confessá-lo, é que estou com uma certa dificuldade em retomar os acontecimentos dos últimos dias. Não tenho aqui nem cortesãos da noite (e muito menos cortesãs!), nem fantasmas vagos ou mochos piadores, que isto aqui não é a metrópole, e muito menos os grilos cantores que me entraram pela porta do edifício, quando estava no Alto Zaza, para me criarem um ambiente agradável de trabalho, com fundo não musical, mas antes grilal! Já pensei ligar o rádio. Mas hoje é dia negativo, melhor dizendo, noite negativa! Para cúmulo, as curtas estão impraticáveis. Estão muito ruidosas. Ouvem-se demasiados barulhos, com trovoadas longínquas. Não consigo captar nada com clareza nem encontrar uma musa inspiradora que me ajude a sair desta situação. No Futa, o minúsculo riacho próximo de Quimbele, não consegui encontrar ,musas que me valham. As musas nativas são demasiado escuras! Têm menos energia que as pilhas do meu rádio. Energia, entenda-se, para me ajudarem a escrever, porque para outras actividades energia é coisa que não lhes falta. Certamente, por estes sítios, nunca passaram outros portugueses amantes das letras. De modo que, sem ninguém que me valha, estou para aqui numa grande aflição. Estou a debitar linhas e linhas de escrita sobre estas folhas amarelas, mas o mais importante não está a sair.

Mas que grande burrice a minha! Estou a esquecer-me de uma bóia importante, a que me posso agarrar e que talvez me ajude: a minha agenda. Quem sabe se ela não produzirá a centelha capaz de reactivar os meus neurónios, capaz de me permitir recuperar os diálogos e as vivências dos últimos dias? Acabo de a tirar do bolso da minha camisa. À luz do petromax, a capa castanha parece mais escura e brilhante.

Estou no dia quinze de Abril. Foi domingo. Um domingo bem passado, que não registei na folha, que continua com as linhas vazias, a não ser as três primeiras, onde se lê que vi à noite, em Quimbele, um filme com Barbara Streisand e Omar Sherif intitulado «Funny Girl». Ora aqui está uma boa musa inspiradora. Mas estará mesmo? Com ela aqui, a inspiração seria outra! Nunca para relatos escritos, que seria um grande desperdício de tempo!

Talvez concentrando-me nas linhas em branco do espaço relativo à segunda-feira consiga reavivar os neurónios. Talvez os registos que não fiz e que lá deveriam estar me surjam como por artes de magia. Estão a surgir-me na mente os célebres pirilampos da Camuanga, que os meus soldados confundiram com inimigos na escuridão da noite. Ainda se lembram deste episódio caricato que vos contei? Estão a vir-me à lembrança factos antigos, que já deveriam estar carregados de bolor; e nada surge relativamente aos últimos quinze dias.

«Funny memory»! É mesmo curiosa a nossa memória! Está a fornecer-me factos antigos e nada me debita em relação aos últimos dias. Dá-me aquilo que não quero e recusa-se a fornecer-me o que pretendo. Também não posso ir ao frigorífico buscar uma bebida com uísque e gelo, para a refrescar. Não estou na messe de oficiais de Quimbele.

Não haverá nenhuma entidade que me ajude a sair deste impasse? Estou a ver o tempo a avançar, as linhas dos aerogramas a aumentar... E é tempo de parar, porque vos estou a maçar e a minha paciência a esgotar. Até já estou com falta de ar! Vou passar uma ronda às sentinelas e apanhar um pouco do ar fresco da noite. Talvez os sois nocturnos me iluminem e inspirem, ajudando-me a cumprir a minha promessa. Até já!

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