Atraso na escrita |
Cabula Calonge, 27 de Abril de 1973 Aqui me têm outra vez na vossa companhia, após um período sem notícias. Se se deram ao cuidado de reflectir acerca do espaço de tempo entre cada uma das minhas cartas, deverão pensar que estou a ficar preguiçoso em pegar na caneta. Ou talvez que me esqueço de vós. Ou que tenho andado demasiado ocupado com problemas sérios, que me impossibilitam o convívio convosco. A preguiça é um animal que não conheço e que nunca tive o prazer de encontrar nestas paragens. Tenho encontrado muitas espécies, além do bicho-homem. Não contando com os macacos que andam de galho em galho e longe de nós, não vá surgir o azar de serem comidos pelos nativos, temos aqui alguns entre o meu pessoal. E alguns bem mais macacos que os macacos nossos primos ou, pelo menos, parentes afastados. Tenho conseguido resolver os problemas e as situações criadas por esta espécie de origem macacal, que se desloca apenas sobre dois membros, quando não é obrigada a deslocar-se em cima das rodas das viaturas. De modo que, tirando a fauna local, sem falar na bicharada doméstica que deambula pela sanzala, a preguiça não tem qualquer fundamento. A última hipótese é já aceitável e uma das causas que me faz estar longos períodos afastado da escrita. Mas se é a mais importante, como iremos ver quando passar ao relato da minha odisseia angolana, não é a única. Há talvez outra explicação possível para este longos hiatos. Para se poder escrever e relatar o que quer que seja, é necessário ter conteúdos, ter conhecimentos e experiências vividas. Escrever a partir do nada é coisa impossível. Mesmo que quisesse recorrer à imaginação, esta só funciona alicerçada em elementos recolhidos pelos sentidos durante o contacto com o mundo que nos envolve. Mesmo quando o produto da nossa imaginação representa universos fantásticos, até nestas situações têm de existir elementos relacionados com o mundo real e objectivo, tal como o conhecemos. Estou agora a lembrar-me do universo fantástico que encontramos naquelas figurações fascinantes e simbólicas de Salvador Dali. Estou até a rever mentalmente uma reprodução que tive, durante algum tempo, no meu quarto de estudante e que me faz lembrar o tempo que agora estou a viver. Nem o autor imaginou como aqueles relógios elásticos, em que o tempo parece escorrer como algo viscoso e que se vai submetendo à força da gravidade, nem ele imaginou como essa representação está correcta. O tempo é algo que não pode fugir a uma força, que não será a da gravidade, mas que não deixará, por certo, de estar relacionado com outras forças que nos regem. Quer queiramos quer não, ele vai-se esgueirando por entre os dedos, vai fluindo sempre, sujeito a uma força da qual não consegue libertar-se. E, quando menos esperamos, estamos mais velhos, com uma fiada de dias extintos, de dias que escorreram como a areia de uma ampulheta através dos interstícios dos nossos dedos. O tempo é demasiado fugaz. Passa célere. E meio ano de comissão está já passado. Estou a discorrer acerca do tempo e a desviar-me do motivo da minha carta. Uma das razões de ter estado tanto tempo sem vos escrever é o facto de ser necessário ter vivências. O meu cérebro funciona como um arquivo de dados. Tem de ser preenchido. Só depois de ter os dados carregados é que consigo passá-los para o papel. E então, como já devem ter percebido, é uma limpeza completa nos neurónios. Toda a informação armazenada flui automaticamente através do meu braço e da minha mão e é registada pela ponta da agulha, qual sismógrafo em acção, que não é nenhuma agulha mas o minúsculo sólido geométrico da esferográfica, com a qual preencho as centenas de linhas que constituem as colecções de aerogramas que vos envio. A linha inicial da minha correspondência para casa mostra-nos não apenas que doze dias estão passados desde a minha última carta. Doze dias cheios de eventos, como veremos em breve. E mostra-nos também que estou num novo local: Cabula Calonge. |