Dois dias na mata |
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Hoje tive azar ao jogo. Calhou-me o médico como parceiro. Perdemos. Fomos nós a pagar as bicas. Foi um prejuízo astronómico! Não tirámos a desforra, porque estava a pensar em vós. Preferi deixar os meus camaradas no café e vir até à frescura e sossego do meu quarto, para retomar a escrita. Acabo de reler os últimos aerogramas. Detectei uma pequena incongruência, que não vou corrigir. Reside apenas na contabilidade dos dias. Se a última remessa de aerogramas foi com a data de quatro deste mês, o intervalo de tempo sem notícias minhas é um pouco maior. Mas como a falha corresponde apenas a dois dias, não vale a pena estar com tantos rigores cronológicos. Partamos, pois, do dia seis, que deveria ser o começo de um fim de semana em descanso, que não o foi. Logo pela manhã, ao pequeno-almoço, não me cheirou a esturro, mas desconfiei que a semana não iria começar bem. Após a conversa trivial que é costume estabelecer-se quando todos os oficiais estão reunidos, o comandante deu-me uma ordem que não me agradou: — Ulisses, a meio da manhã, passas pelo meu gabinete. Temos assuntos importantes a tratar. — O quê, capitão? — Se calhar, mais uma passeata pelo meio da mata. — alvitrou o médico. — É capaz de ser. Mais uma operação para mantermos o físico em ordem. — É quase isso, Ulisses. Mais uma operação. Estamos na época da Páscoa. A tropa não pode ficar parada. Tem de estar sempre em acção. Julgavas, certamente, que vinhas de férias para Quimbele? — Mais acção do que aquela que tenho tido, capitão? Desde que vim para estas paragens, certamente que nunca o capitão nem nenhum dos meus camaradas teve tanta movimentação e problemas como eu. No Alto Zaza, nunca me faltaram! E depois, como está farto de saber, andei sempre em turismo desenfreado entre Quimbele e o Cuango. — Estás a queixar-te? Olha que nós aqui, em Quimbele, também não temos estado parados. O Graça Marques e o Valério que o digam. Temos andado sempre em operações. — Mas afinal do que se trata ao certo? — perguntou o Graça Marques. — É mais uma operação, como disse há pouco. Não vou estar aqui com pormenores. Agora é momento de descontracção. Estamos no pequeno-almoço. Pelas dez horas, Ulisses, passas pelo meu gabinete. Depois conversamos. Às dez horas em ponto, estava no gabinete do Comandante de Companhia: — O meu capitão dá-me licença? — Entra. Deixa-te de formalidades. Senta-te, que temos muito que falar. — Então, do que é que se trata? — Estás aqui a ver o mapa da região do Alto Zaza? Temos de bater toda esta zona à volta do destacamento do Quitari. Recebemos informações de que tinham sido avistados elementos estranhos. Certamente, um grupo terrorista que entrou por esta zona, ao sul da Camuanga, e deverá estar a deslocar-se para o interior. — Durante quantos dias vamos andar por aqui? E quem vai? — Vamos nós os dois. Levas o teu grupo. — Não pode ser, capitão. — Não? Porquê? — Porque só cá tenho metade dos homens. A outra ficou no Alto Zaza, com o grupo do Vieira. — É essa metade que vais levar. Depois junta-se o grupo do Vieira. E, no Quitari, levamos também parte do grupo do alferes Monteiro. — Quem é o alferes Monteiro? — Não conheces. São de outro batalhão. É um dos grupos que nos está a reforçar os postos limítrofes da nossa zona. — Compreendo. Deve ser mais um alferes do mesmo grupo do outro que se despediu de mim, quando estive no Alto Zaza. Espero que este tenha mais sorte e melhores elementos, que não lhe dêem problemas. — Problemas? Quais problemas? — Nem queira saber! Um deles vinha com alguns elementos de alto calibre! Nem queira saber! Tive uma autêntica insurreição por causa de um mau elemento do Quitari. Estava mesmo a ver que dava tiroteio. Felizmente, consegui acalmar os ânimos e sanar o problema. — Nunca me deste conhecimento do facto. — Claro que não! Nem tinha que dar. Se os problemas foram sempre resolvidos, não ia estar a perder mais tempo com coisas passadas. Creio que os seus problemas já lhe devem bastar! Quanto mais ainda ter de aturar os dos outros! Ou não é verdade? — Sim. Talvez! De qualquer modo, o comandante da companhia deve estar ao corrente de tudo, Ulisses. — Não digo que não, capitão. Mas penso que não vai querer ficar sobrecarregado com os problemas dos outros. Para mais, se foram devidamente resolvidos. Já deveria ter descoberto que só lhe ponho problemas sérios quando eu próprio não os posso resolver. Ou prefere que esteja sempre a bombardeá-lo com problemas? — Claro que não. Mas... — Mas tem toda a razão, capitão. Estou a entender perfeitamente onde quer chegar. E pode ter a certeza que, sempre que houver assuntos de responsabilidade, serei o primeiro a comunicar-lhos. E agora, capitão, em relação à situação que se avizinha? Arrancamos ainda hoje? — Não. Hoje é sábado. Temos o dia todo para descansar. Logo, chamas os furriéis e dás-lhes as instruções necessárias. Temos de arrancar amanhã de manhã para o Alto Zaza. Almoçamos aqui, isto é, o almoço é no Alto Zaza. Aqui tomamos o pequeno-almoço e arrancamos logo a seguir. Jantamos e dormimos no Quitari, para avançarmos para a mata na madrugada do dia seguinte. — Levamos daqui as rações da combate? — Não. Temos de levar os homens devidamente equipados. Mas as rações são distribuídas lá em cima. Além do mais, é preciso também um grupo de GEs. — Isso é com o Vieira. Ele trata disso durante a hora do almoço, ou a seguir. Vai à Cabaca falar com o chefe Simão. É ele que agora comanda o Alto Zaza. Isso agora já não é comigo. — Também não estou a dizer que és tu a resolver o problema. — Já pensou nos carregadores? Não vou sem um carregador. Não volto mais a sair sem levar comigo um carregador. — No Alto Zaza, amanhã, tratamos de tudo. Está descansado que terás também o teu carregador. Há de ir um para cada oficial. Não vou continuar a conversa com o capitão e muito menos relatar minuciosamente a nossa peregrinação na região do Quitari. Foram três dias de marcha. Aliás, três não; apenas dois. Correctamente, apenas andámos dois, embora a operação nos tenha feito gastar mais tempo. No domingo, dia oito de Abril, arrancámos cedo para o Alto Zaza. Tivemos aqui uma pausa prolongada, não só para o almoço, mas sobretudo para organizarmos o grupo que ia sair. Ao todo, foi o meu grupo de combate quase completo, metade do pessoal do alferes Vieira e duas secções de GEs, comandadas pelo chefe Simão. Chegámos ao Quitari próximo da hora de jantar, ainda com muita luz para montarmos as nossas tendas. No dia seguinte, arrancámos cedo para a mata, juntamente com uma secção do Quitari comandada pelo alferes Monteiro. Por volta das dezassete horas, já tínhamos alcançado o objectivo, sem encontrarmos quaisquer vestígios da passagem de tropas estranhas. Montámos o acampamento, distribuímos cuidadosamente as sentinelas e pernoitámos em plena selva africana, não muito longe de uma linha de água, para enchermos os cantis. Na terça-feira, mal começaram a ouvir-se os primeiros ruídos da passarada e a escuridão da noite desapareceu, para dar lugar a um dia quente e húmido, levantámos o acampamento. Retomámos uma marcha contínua, ininterrupta, para chegarmos o mais depressa possível ao Quitari. A única paragem, indispensável para retomarmos as forças, foi a do almoço, ao fim de cinco horas de uma caminhada num ritmo alternado, com momentos de progressão rápida e outros de avanço lento e custoso, nos locais de vegetação mais densa e impenetrável. Aqui, a progressão fazia-se a passo de caracol, ao mesmo ritmo da abertura à catanada de uma passagem por entre a cerrada vegetação, especialmente nas zonas mais baixas e atravessadas por linhas de água. Sem o auxílio dos GEs, para quem a selva africana não tem segredos, não nos safaríamos. Foram eles que seguiram sempre na frente, sempre com uma atenção a todos os vestígios no terreno, para ver se detectávamos qualquer presença de elementos hostis. A paragem para o almoço foi ligeiramente prolongada, para recuperarmos do esforço, e silenciosa. Falámos apenas o mínimo indispensável e numa voz quase ciciada. E isto para passarmos informações uns aos outros ou para trocarmos as latas da ração de combate. Como cada caixa contém elementos diferentes, é sempre possível efectuar algumas trocas de acordo com os gostos de cada um. Como sempre, a lamparina a álcool que trouxe da metrópole foi de grande utilidade, especialmente para aquecermos as latas com feijoada. A única coisa que desta vez falhou, que causou uma certa decepção e me valeu um «raspanete», foi ter-me esquecido da máquina de café. Já não tenho comigo o Joaquim, que regressou ao Alto Zaza. E não me lembrei de meter a máquina na mochila. Foi um esquecimento imperdoável, tanto mais que houve malta que tinha levado café em pó, a contar com a maquineta do alferes. Doravante, como na messe de oficiais há uma máquina grande, a minha lamparina e a máquina de café passarão a ficar permanentemente na mochila, para que não volte a faltar-nos a bica no meio das operações. Chegámos ao destacamento a meio da tarde. Muito a tempo de irmos tomar um banho no rio Quitari, para nos libertarmos do suor e do mau cheiro, após dois dias de marcha sob um calor insuportável e húmido. Depois do banho, vieram os preparativos para o regresso. Como as viaturas que nos trouxeram até ao Quitari tinham regressado ao Alto Zaza, a primeira preocupação foi estabelecer o contacto via rádio. À noite, à luz de candeeiros de petróleo, tivemos uns momentos de convívio com o pessoal que está destacado no Quitari. O Quitari é uma pequena sanzala, numa clareira aberta no meio de uma densa floresta, ligada por picada à povoação de Quilambiquiça, situada a meio caminho da picada que liga o Alto Zaza à Camuanga. Tal como na Camuanga, o Quitari é guardado por um grupo de uma companhia de outro batalhão que nos vem reforçar, dada a vastidão e importância da zona pertencente ao Alto Zaza. Ao todo, há dois destacamentos nas extremidades da área do Alto Zaza: a Camuanga, muito próximo da fronteira com a República do Zaire, e o Quitari, onde pernoitámos. Curiosamente, há uma zona densamente povoada, na extremidade de uma picada que cruza a meia distância entre a fazenda de Nossa Senhora da Conceição e o Alto Zaza que, por enquanto, continua sem qualquer protecção. De acordo com o mapa que decalquei e que guardo comigo, o Quibula Calonge é uma sanzala situada no meio de outras mais pequenas. Também deveria ter protecção. Todavia, não possui qualquer destacamento nosso nem tão pouco um grupo de GEs ou de milícias. Mas voltemos ao Quitari, que é o que agora nos interessa. Durante o convívio, o alferes Monteiro aproveitou a presença do capitão para se queixar: — Capitão Alberto, pode dar-me uns minutos? — Sim. O que é que pretendes? — Estamos sem reabastecimento. Não contávamos ter de preparar duas refeições para tanto pessoal. Esgotámos as nossas reservas. Antes desta operação, tínhamos ido buscar o reabastecimento ao Alto Zaza. Só lá devíamos voltar a meio da próxima semana. — Qual é o problema? Aproveitas e vais amanhã connosco. Levas uma secção na tua viatura. E, em vez de te ires reabastecer ao Alto Zaza, aproveitas e segues connosco até Quimbele. Ficas lá amanhã. É dia de cinema. Passas o dia connosco. Abasteces-te na cantina, em Quimbele, e regressas no dia seguinte. — E não há qualquer problema, capitão? Pode ficar o Quitari sem mim? — Não te estou as perceber. Enquanto andaste connosco na operação, quem é que te substituiu? — Um furriel. — Aí está! Fica cá metade do teu pessoal, comandado por um furriel. É precisamente a mesma coisa. E vais tu connosco. Vais tu efectuar o reabastecimento e regressas no dia seguinte. Como do Alto Zaza para Quimbele vou só com o pessoal do Ulisses, tu até me fazes um grande favor. Vais a reforçar o meu grupo. Ficas na messe com o Ulisses. Tomas um chuveiro quando chegares a Quimbele e, à noite, fazes-nos companhia. Há quanto tempo já não vais a um cinema? Não será uma boa estratégia? Tens um dia de civilização. Na manhã de quarta-feira, ainda bem cedo, mal acabámos o pequeno-almoço, já tínhamos as viaturas para nos levarem. Arrancámos a meio da manhã. Uma coluna de três unimogues e uma cabra de mato, a cabra do alferes Monteiro. Na sanzala dos GEs saiu o grupo do chefe Simão. A seguir, tivemos um contratempo imprevisto, que nos atrasou ligeiramente. Entre a sanzala dos GEs e a Cabaca há uma ponte de madeira, que atravessa um riacho com bastante água. Foi precisamente aqui que tivemos o contratempo. E tivemos um contratempo porque não podíamos passar. A ponte tinha desaparecido. Lá embaixo, no meio do riacho, estava uma camioneta de um civil com toda a carga espalhada. Devido ao peso, segundo pensamos, a ponte não aguentou. Também não pudemos socorrer o civil, por falta de meios. Foi trabalho para o pessoal do Alto Zaza. Na altura, tivemos de nos limitar a recuperar a ponte, de modo às viaturas poderem passar. A camioneta do civil e toda a carga foi depois retirada com a ajuda do pessoal do Alto Zaza, recorrendo a vários unimogues com guinchos. Mas é operação sobre a qual não me posso pronunciar, porque não a presenciei. Tudo o que fizemos foi restabelecer a passagem, o que conseguimos ao fim de uma hora de trabalho imprevisto. No Alto Zaza, ficou metade do pessoal do alferes Vieira, que seguiu connosco até Quimbele. Chegámos à messe de oficiais a meio da tarde. Descemos das viaturas no parque auto, por detrás da messe de oficiais. Com o barulho das viaturas, abriu-se uma janela do quarto que dá para as traseiras. Era o médico, o Dr. Graça Marques, que estava a dormir a sesta e acordou com o barulho da nossa chegada. — Esperem aí. Deixem-se estar onde estão. Não podem ainda entrar na messe. Vocês estão com um ar de bandidos. Aguentem aí, que já vou ter convosco. Esperámos, intrigados com a reacção do médico e sem sabermos o que ele pretendia. Pouco segundos depois, estava junto de nós, com a máquina fotográfica na mão. — Vamos lá, pessoal. Deixem-se estar aí onde estão, que estão mesmo lindos! E o final da nossa operação ao Quicunda, na extremidade da zona do Quitari, ficou registada para a posteridade com uma fotografia surpresa, em que se encontram os quatro oficiais, o Vieira, o Monteiro, eu e o capitão Alberto, tendo como fundo as traseiras da messe de oficiais e a casa do administrador de Quimbele, em último plano. |
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