Peregrinações portuguesas |
Quimbele, 16 de Abril de 1973
Antes de começar a escrever-vos, estive um longo pedaço de tempo a rever os duplicados a químico dos aerogramas que vos mandei. A pasta onde os vou arquivando, devidamente numerados e ordenados, vai já volumosa. Felizmente que a lombada é larga e as argolas de grandes dimensões. Espero que aí, na metrópole, a mãe vá fazendo o mesmo. No final da comissão, quero ter um registo completo e pormenorizado desta minha peregrinação por terras angolanas. Estou agora a lembrar-me que não sou o único nesta situação. Quantos milhares de portugueses passaram já por isto antes de mim? Esta peregrinação por terras que não aquelas onde nascemos não é de agora. Estas peregrinações forçadas não são exclusivas da segunda metade deste século XX. Penso que é sina do povo português. Talvez uma consequência de vivermos à beira-mar, num minúsculo país da Europa com metade das fronteiras voltadas para o Atlântico. Com um espaço tão vasto e horizontes tão distantes, que outra coisa seria de esperar? Quando o nosso rei poeta mandou semear ou plantar o pinhal de Leiria, penso que também ele, já por essa altura, estava a ser atraído pelo mar. E terá sido essa força estranha, incontrolável, que o terá levado a semear as caravelas e as naus futuras, que os seus sucessores puseram a navegar em direcção ao desconhecido. E os juros dessas plantações nos areais de Portugal deram frutos de muitos tipos: terras, paisagens, conhecimentos novos de raças e de animais, novas terras distantes de aventuras e de sonhos, que se foram estendendo até locais cada vez mais vastos e remotos. Foram espaços de peregrinações, com momentos altos e baixos, com momentos sublimes e outros vis, ou não seja o Homem um misto de céu e terra, um misto de nobreza e vilania, uma amálgama de fogo e lama. Que o diga um nosso antepassado, que andou por locais muito mais distantes do que estes em que me encontro, e que foi, durante muito tempo, considerado um mentiroso apenas porque resolveu registar, de memória, todas as aventuras de uma longa peregrinação por terras orientais, pela China e pelo Japão. Estou agora mesmo a lembrar-me de algumas das suas peripécias. Li-as em miúdo. Lembro-me perfeitamente que as li em duas versões: a primeira, em banda desenhada, numa revista que comprava semanalmente, aos sábados, graças à semanada de vinte e cinco tostões que o pai me dava; a segunda, em casa dos avós, em Celorico, graças à excelente biblioteca do avô Xico. Apesar dos dois volumes não possuírem imagens, a minha imaginação permitia-me seguir com prazer e interesse as peripécias do protagonista. Acabo de olhar para o volume de aerogramas que já se acumulam na minha pasta com argolas. Fico por vezes espantado com a quantidade de palavras que saíram das esferográficas que aqui tenho. Por isso, uma vez mais (e lembro-me que já o disse em aerogramas anteriores), peço à mãe que me arquive religiosamente tudo quanto vos escrevo e vos mando. Espero, no final da minha comissão, ficar com um registo pormenorizado de tudo por quanto passar, viver e sentir. Quem sabe se isto não poderá vir a ser uma das minhas heranças para os meus filhos e netos, se alguma vez me casar e os vier a ter? E mesmo que isto nunca venha a suceder, será uma herança de mim para mim mesmo, para a minha velhice, e depois, quem sabe, talvez para aqueles que cá ficarem depois de eu partir para outras viagens. Talvez eles venham a interessar-se por tudo isto e queiram ficar a conhecer alguns aspectos do que foi a peregrinação forçada da minha geração por terras africanas. A mãe não pense que me estou a lamentar por estar aqui longe de vós. É certo que na vossa companhia estaria melhor. Mas já pensaram que, se eu aí estivesse, nunca teriam a oportunidade de poder ler o que vos escrevo? É certo que sinto saudades de casa. Sinto saudades dos amigos. Sinto saudades das coisas que aí deixei. Até dos meus livros sinto saudades! Mas este sentimento estranho é amplamente compensado por outros livros, que aqui tenho comprado, por outros amigos, que vou conhecendo e estimando, pelo convívio com os pais através destas folhas amarelas dos aerogramas. É a maneira de manter perfeitamente em equilíbrio o meu estado emocional. Aquilo que falta deve ser compensado com novas coisas que se adquirem e com novas experiências vividas. E é o que procuro fazer. E é isto que tenho vindo a registar e convosco a partilhar. Acabo de folhear as cópias dos últimos aerogramas, que já terão lido há algum tempo. Apesar da última colecção ter sido grande, verifico que o espaço de tempo se dilatou também consideravelmente. A última colecção tem a data de quatro de Abril. Esta vai com a data de hoje, ou seja, doze dias depois. São doze dias sem vos dar notícias. É o que vos disse em correspondência anterior: só no desterro, longe dos prazeres e do conforto da civilização, é que surgem as aventuras e a inspiração. Aqui, em Quimbele, tenho tido bons momentos de convívio com civis e militares. Logo, o vosso filho tem andado repartido. Tem tido menos tempo para estar convosco. Mas espero compensar-vos. Espero pôr-vos ao corrente dos factos mais importantes destes últimos dias. E como a Páscoa está próxima, espero acabar esta colecção a tempo de aí chegar antes do dia vinte e dois. Serão as minhas amêndoas da Páscoa. Certamente não tão doces como as que me mandaram e distribuí na Quimabaca. Mas talvez... talvez? Talvez, não será correcto dizer. Seguramente, muito mais apreciadas! Vou já com dois aerogramas preenchidos e vou ter de interromper a escrita. O combustível da esferográfica está a chegar ao fim. Neste momento, a esferográfica está como o unimogue que se avariou duas vezes seguidas. Está a falhar. Ora escreve, ora se limita a vincar o papel, porque a tinta está no fim. Está até a verificar-se uma perfeita sintonia entre a caneta, que me está a falhar, e a minha mente. Estou também sem ideias. Vou ter de parar. Vou à secretaria requisitar uma ou duas esferográficas e dar dois dedos de conversa com os sargentos. E, se não houver grandes desvios, regresso à conversa dentro de pouco tempo. |