Derradeiros momentos na Quimabaca |
São sete e trinta da manhã. Desde muito cedo reina uma azáfama invulgar no destacamento. Hoje, a alvorada e o pequeno-almoço foram mais cedo do que o habitual. Nem por isso deixámos de ter a fila de miúdos, com as vasilhas nas mãos, à espera da vez de levarem o café com o leite e a porção de pão para a cubata. Foi a última refeição com a participação dos nativos. Às sete e trinta da manhã, com a ajuda dos miúdos e dos graúdos, a desmontagem fez-se com uma rapidez invulgar. Antes da minha tenda ser levantada, efectuei a devolução dos objectos emprestados pelos indígenas: as esteiras, a mesa onde trabalhei e vos escrevi algumas colecções de aerogramas e as cadeiras onde, durante vinte e sete dias, nos sentámos. Ainda não eram nove horas e já tudo estava desmontado e empilhado, à espera da chegada da Berliet. — Como é, alferes? — perguntou o furriel. — Como é o quê, Ramalho? — Temos tudo desmontado. E a viatura? — É preciso ter paciência. — disse o capelão. Aproveitem o pouco tempo que aqui estamos para conviverem um pouco mais e se despedirem dos civis. — Ó capelão, não é preciso. Não vê que temos aqui toda a população à nossa volta? Estão aqui todos juntos, miúdos e graúdos. Não viu como eles nos vieram ajudar? E repare que não são só da Quimabaca. Há aqui muito mais gente que a população local. Há aqui muitos que vieram das sanzalas mais próximas. Está a ver ali aqueles velhotes, aqueles ali, de carapinha toda branca, ao lado do soba Cachela? São os sobas das sanzalas mais próximas, que nós recenseámos. Está aqui muita gente que não é desta sanzala. A Quimabaca é grande, mas não tem tanta população. Estou até a conhecer algumas caras. Olhe. Olhe ali, por exemplo. Está a ver ali aquelas mulheres? Lembro-me perfeitamente delas. Foram nossas clientes. O Mike que o diga. — O Mike? — Sim, o nosso soldado enfermeiro. — Chama-se Mike? — Não, capelão. É assim que o conhecemos. Foi a alcunha que os colegas lhe puseram. — Mas Mike porquê? — Mike de maçarico, capelão. O Mike é o moço que tem andado sempre connosco. Tem talvez uns vinte anos, se é que já os fez. — Mesmo assim, não estou a perceber a razão da alcunha, Ulisses. — Mike é a letra M do alfabeto, em linguagem de transmissões. Neste caso, os soldados utilizaram-na para designar «maçarico». E maçarico porquê? Sabe o que é um maçarico, na gíria da tropa, não é verdade? Maçaricos fomos todos nós quando chegámos a Angola. É assim que designamos os novatos. Ora acontece que o moço, além de andar sempre bem disposto e de ser um grande brincalhão, um brincalhão incorrigível, das primeiras vezes que andou connosco, proporcionou-nos uns momentos de francas gargalhadas. Por duas ou três vezes caiu do unimogue. Por duas ou três vezes tivemos que parar no meio da picada. Por distracção, talvez, ou porque não se segurou devidamente, nas zonas mais acidentadas, por duas ou três vezes foi parar ao meio da picada. E à terceira foi de vez. Para evitarmos paragens e algum acidente grave, porque das três vezes andou cheio de sorte, agora viaja sempre sentado no meio do banco, nunca na ponta, no meio dos camaradas, não vá o Diabo tecê-las. É um mocito impecável e sempre bem disposto. Estou agora até a lembrar-me que já lhe falei dele. — Já? Quando? Não me recordo. — Já, capelão. Lembra-se do episódio que vos contei, creio que em Quimbele, em que o capelão me disse que eu tinha sido imprudente por causa de uma espada ferrugenta que encontrei? Pois olhe, foi precisamente ele que deu origem à brincadeira, em Macuma, e nos fez dar umas valentes gargalhadas. Foi até com ele que eu próprio brinquei, apontando-lhe a espada à barriga, e que o furriel Rodrigues registou numa fotografia. Eram dez e trinta quando chegou o furriel Rodrigues com a Berliet. Com a ajuda de todo o pessoal, civil e militar, as viaturas depressa ficaram carregadas. Antes do pessoal subir para as viaturas, dei ordens ao furriel vagomestre para distribuir as rações de combate. — Almoçamos no caminho, alferes? — Sim, Ramalho. Vamos parar no mesmo local em que almoçámos, quando efectuei o recenseamento de Marimba. É mais ou menos a meio caminho de Quimbele. É um sítio aprazível para almoço e descanso. Chegou finalmente o momento mais triste da despedida. As pessoas foram-se abeirando do pessoal e abraçando-o. Fui o último a subir para a Berliet. Antes de o fazer, vi-me rodeado pelos mais velhos. Tive de pedir ajuda ao Joaquim, que já se encontrava em cima, na caixa da Berliet, ao lado das minhas coisas. Voltou a descer e a traduzir as nossas palavras de despedida. E à medida que cada velhote me abraçava, entregava-me um galináceo com as patas presas por atilhos de uma fibra vegetal, que o Joaquim colocava na caixa da viatura. Foram uns momentos pesados, de silêncio. Tirando as palavras de despedida, ninguém dizia nada. Na cabina da Berliet, já estavam o condutor e o capelão. Aguardavam apenas que eu subisse e desse a ordem de arranque. Foi um momento difícil. Uma inércia estranha e pesada parecia roubar-me a força das pernas e impedir-me de subir. Mas tinha de ser. Agarrei o varão de apoio, ao lado da porta, pus um pé no estribo, e, meio voltado para a multidão que me olhava, icei-me lentamente e tomei o lugar ao lado do capelão, junto à porta, que fechei. Lembrei-me, como que a fechar subitamente o círculo, do momento em que, à luz ténue das estrelas, arranquei do Alto Zaza para estas paragens. A única estrela que agora brilhava e me aquecia era um sol forte, lá em cima, bem alto, num céu sem nuvens. — Podes avançar. Muito devagar! Para que as pessoas se afastem. Lentamente, fomos abrindo caminho por entre os nativos. Entrámos devagar na descida entre a sanzala e a picada. As pessoas avançaram também um pouco, atrás das duas viaturas, até que acabaram por ficar, a meio da descida, a dizer-nos adeus. Um adeus retribuído por todos. Só tirámos os olhos dos que deixávamos, quando começaram a ficar cada vez mais reduzidos e se perderam na distância. Chegámos a Quimbele eram quinze horas. Tirando o momento da paragem na linha de água para almoço, foi uma viagem rápida e reduzida ao silêncio, como que para ouvirmos as vozes das pessoas que deixáramos e que pareciam continuar a soar dentro de nós. E é tudo. Creio ter cumprido bem a minha missão na Quimabaca. Creio ter igualmente cumprido aquilo que me propus no começo desta tarde. Tenho a minha escrita em dia. Poderia ainda acrescentar mais alguma coisa relativamente à correspondência recebida e àquilo que disse nos aerogramas escritos a camaradas menos afortunados do que eu, porque se encontram na Guiné. Mas é tardíssimo. Já estou atrasado para o jantar. O mais incrível é que ouço barulho na sala de jantar e ninguém aqui veio à minha procura. Ainda bem!
Um abraço para os meus velhotes queridos,
Ulisses de Almeida Ribeiro |