Uma lição imprevista de Português |
— A propósito, o que é feito do Capelão? Ainda hoje não o vi. — Andas na lua, Ulisses? Não te lembras que foi ontem para a sede do Batalhão? Não estiveste a despedir-te dele? A esta hora deve estar a dar conhecimento das tuas actividades ao comandante Soares Coelho. E tu, já é altura de começares a falar. — Não sei se vai ser fácil. Antes de vocês aqui chegarem, estava num impasse... — O quê? Estavas onde? — Estava em suspenso, Capitão. Não é isso, Ulisses? — Sim, Graça Marques. Estava num impasse. Estava como que bloqueado. Queria relatar os últimos acontecimentos e não me saía nada. Geralmente, quando pego na caneta, revejo os acontecimentos e ouço até as falas todas. É como se tivesse um gravador na cabeça. Sai-me tudo ao correr da pena. E hoje... Hoje, para minha pena, estava a tentar recuperar os dados e a memória... A memória estava como que bloqueada. Porquê, Graça Marques? Qual a causa? — Isso não é nada, Ulisses. Pode ser uma simples questão de cansaço. Ou estavas sem inspiração! Se calhar não fizeste como o Camões? — O Camões?! Qual Camões, Graça Marques? — O nosso épico. — Ah, pois, está a referir-te a Camões! Pensei que estavas a falar de algum amigo teu! — Ah, Ah! Estás com muita piada. Estás a gozar comigo, Ulisses? Não te estou a perceber. — Não é nada disso, Graça Marques. Como falaste no Camões, pensei que fosse algum teu conhecido. — Oiçam lá uma coisa, carago, não vos estou a entender. — disse o capitão com cara de caso. Estão agora a discutir um problema que não é para aqui chamado. Afinal o que é que o Graça Marques fez de mal? Até parece, pelas tuas palavras, Ulisses, que ele meteu o pé na argola. — Não é nada de especial. Vou explicar o que se passou. Nunca esperei que o nosso médico, cuja cultura já tive oportunidade de testar, tratasse Camões por tu. — Mau! Como é que ele tratou o Camões por tu? — Do mesmo modo que o capitão o está agora a tratar. — Como assim, carago? Estás a querer gozar com o teu comandante de companhia, Ulisses? — Calma, Capitão. Não estou a gozar com ninguém. Estou só a procurar ser rigoroso com a nossa língua. Quando falamos de alguma pessoa ilustre, seja ela da nossa literatura ou não, devemos evitar utilizar o artigo. — O artigo? Qual artigo? — O definido, Capitão. Quando vai levar as amostras aos médicos ou apresentar um novo produto farmacêutico trata os médicos por tu? — Estás aqui a querer dar-nos uma lição de Português, Ulisses? — Não! Estou só a procurar corrigir uma pequena lacuna, para que os oficiais falem com mais correcção. São pequenos deslizes que permitem definir a personalidade de uma pessoa. Diz-me como falas, e eu dir-te-ei a cultura que tens. — Deixemo-nos de tretas, Ulisses. Em que é que ficamos? Contas ou não as tuas peripécias? — Já lá vamos, Capitão. Apesar do pequeno e imperceptível deslize do Graça Marques, percebi perfeitamente onde ele queria chegar. — Mas nós é que não percebemos nada, não é Valério? — O capitão deve falar por si. Eu creio que alcancei as palavras do Graça Marques. — O que ele queria dizer, Capitão, é que eu deveria ter feito como Camões. Não é verdade, Graça Marques? Deveria pedir invocação às musas. Só que aqui, em Quimbele, não há nenhum rio, nem como o Tejo, nem como o Mondego. Quem é que achas que eu deveria invocar, Graça Marques? — Não sei! Tu é que és de Letras. Tu é que deves saber. — Quando muito, passará uma linha de água insignificante. — Passa o Futa, Ulisses. — Aquela amostra de água, onde costumamos ir ao banho, Capitão? — Sim, Graça Marques. — Isso é uma linha de água insignificante. E o Ulisses ainda não a conhece. O Capitão está a esquecer-se que o Ulisses tem andando sempre em aventuras, longe da sede da companhia. — Se não conhece, há de ficar a conhecer. Vamos lá hoje de tarde tomar uma banhoca refrescante. Pode ser que o Ulisses lá encontre algumas divindades para o inspirar. E agora, Ulisses, digo-te que te despaches. Já despachámos uma rodada de finos e vamos a caminho de mais outra, se quiserem. Por isso, é bom que te despaches. Ou queres que te obrigue a fazer um relatório escrito dos últimos dias? — O Capitão não é desses. Não tinha paciência para estar a ler os meus relatórios. Prefere os relatos orais, não é assim? — Vamos, lá. Despacha-te. Para te dar inspiração, vamos a outra rodada de cerveja com ginguba. |