A melhor forma de fazer guerras |
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Acabo de dar mais uma volta pela sanzala. Foi um breve intervalo, um breve passeio na companhia de umas miuditas, que me seguiram. Durante os momentos em que estou sentado a escrever, a pequenada afasta-se. Devem lembrar-se das recomendações do soba. Deixam-me isolado, para melhor poder comunicar convosco. Nas outras alturas, ando sempre acompanhado: ou com indígenas ou com a miudagem. Não sei porquê, mas parece-me magnetismo. Devo ter qualquer imã cá dentro de mim que os atrai. Mas, a verdade seja dita, gosto da companhia deles. Há uma empatia estranha que se estabelece entre nós! E isto não é só com os miúdos. Acontece precisamente o mesmo com os graúdos. E a verdade é que me dá imenso prazer conversar com eles. Sinto-me entre gente amiga. E isto é bom, infinitamente bom, porque me transforma uma situação de desterro forçado numa situação de enriquecimento, de aprendizagem, de comunhão com outras gentes, também elas ricas de experiências e de conhecimentos muito diferentes dos meus. Acabo de me sentar novamente nesta situação de conversa com os pais, tal como se os tivesse junto de mim. Aliás, é uma comunhão muito mais profunda. Se não estivesse aqui desterrado, de certeza absoluta que nunca teríamos estas longas conversas. Talvez nunca as chegássemos a ter. Talvez nunca tenhamos comunicado tanto através das palavras ao longo das nossas vidas como neste momento. Estou até a lembrar-me, para azar do capelão, cuja conversa continua adiada, que se não fossem estes momentos de desterro na vida de um Homem, de afastamento da Pátria por longos períodos, talvez hoje a nossa literatura estivesse mais pobre, sem uns Lusíadas para evocação das glórias passadas, sem alguns daqueles belíssimos poemas despoletados pelas saudades do desterro. Em cima da mesa, além da pilha de aerogramas, que vai aumentando, tenho uma bebida e o gravador comprado pelo furriel. Está a trabalhar. Meti-lhe uma cassete gravada em Quimbele. Tenho a música muito, mesmo muito baixa, para não abafar o ruído da branda aragem nas folhas das árvores, o barulho das vozes distantes, à minha volta, os sons naturais. Continuo a fazer deslizar a caneta sobre o asfalto amarelo dos aerogramas, à espera que o capelão regresse à minha companhia, para retomar os diálogos. Parece que ele começa a surgir-me. Aí vem ele, depois de uma volta pelo acampamento. Está a tornar-se cada vez mais distinto na minha memória. Esteve junto do nosso refeitório improvisado, a assistir ao pequeno-almoço e a conversar com o meu pessoal. Hoje substituiu-me. Não temos feito a formatura habitual da alvorada. As nossas regras militares estão ligeiramente alteradas. O pessoal só forma pela manhã quando é mesmo necessário. Só em casos muito especiais. A chamada do pessoal é feita pelos furriéis durante o pequeno-almoço. É nesta altura que são indicadas a escala de serviço e as actividades do dia. Para quê efectuarmos as formaturas convencionais pela manhã? Se todo o pessoal se reúne, esfomeado para o pequeno-almoço, é esta a melhor altura para retomarmos as actividades no destacamento. E nunca ninguém faltou à chamada do pequeno-almoço. Nem o meu pessoal, nem a miudagem da sanzala. Depois de distribuído o pão com manteiga, ou com queijo, ou com marmelada, de acordo com a ementa elaborada pelo furriel vagomestre, é a vez da pequenada receber a ração de café com leite e pão. Cada um traz um recipiente, que leva cheio para a cubata. O capelão aproveitou este momento para conversar com os soldados e gozar o espectáculo da distribuição do pequeno-almoço. — A tua ideia foi muito feliz, Ulisses! — A minha ideia? Qual ideia? — A de distribuíres o pequeno-almoço pelos miúdos da sanzala. — Ah, isso! Essa foi uma ideia que causou, inicialmente, alguma perturbação no meu pessoal, especialmente no furriel vagomestre. Ficou preocupado: ou com o prejuízo que dava ao exército, ou com receio que nos fosse faltar a comida! Ora que prejuízo pode dar mais um bocado de leite e de café? E não é só o pequeno-almoço, capelão. Dei ordem ao furriel para reforçar todas as refeições. Mandei fazer comida em abundância. Depois da tropa, é a vez dos miúdos levarem também uma porção de comida para as cubatas. E olhe que, apesar de ainda só terem passado talvez uns vinte dias, desde que aqui estou, já noto diferença no pessoal nativo, especialmente nos miúdos. Ao princípio, para alguns, nem era preciso radiografia. Agora, já se encontram com uma melhor aparência física. E dá gosto vê-los quando vamos à água e tomamos banho com eles. Ajudam-nos a encher os bidões e é uma alegria vermo-nos rodeados de crianças felizes, alegres, em convívio connosco.
— Agora percebo por que razão te dás tão bem com todos os nativos. — E no Alto Zaza? Também não me dava bem com o pessoal de lá? — Sim, é verdade. Mas esta faceta ainda não a tinha apreciado. — Não acha que faço bem? Não é esta a melhor guerra que podemos fazer, Capelão? Se alguém me levantar problemas por causa dos prejuízos que possa dar ao exército, o que acha que devo dizer? Não é preferível que as despesas se façam com comida, com medicamentos, com bens indispensáveis à vida, do que com armamento? Não lhe parece que tenho razão? — Estás certo! Sem dúvida que sim! Estou plenamente de acordo contigo, Ulisses. Era isto que todos deveriam sempre fazer. As melhores conquistas conseguem-se com amizade, com amor. — Sem dúvida, Capelão. Foi essa a doutrina que os seus Superiores procuraram sempre transmitir a todos os homens. É pena que não agrade a todos e nem todos a sigam. Em vez de receberem condignamente o Filho do seu patrão, de O acarinharem e seguirem-lhe os ensinamentos, procuraram sempre lixá-lo bem lixado. Espetaram-no num madeiro, esqueceram-se dos ensinamentos e... E o resultado é o que se vê a toda a hora, a todo o momento. Passamos a vida em guerras! E não digo mais nada! O resultado sabe-o tão bem ou melhor do que eu! Mas voltemos a questões mais triviais. Há alguma coisa especial que pretenda de mim? Hoje é domingo. Tem alguma coisa em mente? |
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