Um gravador

Deixámos o café e fomos à loja. Entrei e cumprimentei o comerciante:

— O alferes por aqui? Quando é que o temos cá de vez, durante uns tempos?

— Estou durante este mês instalado na regedoria de Marimba, na sanzala da Quimabaca, para fazer recenseamentos. Conto vir de vez para aqui no próximo mês, se não me trocarem as voltas.

— Estamos cá à espera do alferes. Até já falei em si à minha mulher. O alferes não é professor de Português e Francês?

— Precisamente! Porquê?

— Temos à porta as férias da Páscoa. Gostava que conhecesse a minha filha. Anda a estudar. Tem algumas dificuldades no Francês. Gostávamos que o alferes lhe desse umas explicações, para ver se melhora.

— Se cá estivesse, fá-lo-ia com todo o gosto. Sempre era mais agradável que as rotinas militares.

— Alferes, olhe as horas. Peça para nos mostrar o gravador.

— Tenha calma, Rodrigues. Não me esqueci. É o aparelho que estou a ver na montra do balcão, Rodrigues?

— É esse mesmo.

— Se é este, é um magnífico aparelho. É precisamente o mesmo modelo que tenho lá em casa. É uma máquina! Faça-me um favor, — disse para o comerciante — mostre-nos este gravador que aqui tem na montra.

— É um aparelho moderno, alferes.

— Moderno já não é. Novo será, mas não moderno. Comprei um rigorosamente igual em 1969. Saiu-me um aparelho de óptima qualidade. Podemos experimentá-lo? Tem alguma cassete gravada com música, para o podermos testar?

— Tenho cassetes virgens, mas não gravadas.

— Não faz mal. Utilizamos uma nova. Experimenta-se gravar com o microfone.

Fizemos vários testes ao aparelho. Entusiasmado, o furriel falou para o «microgaitas» como se estivesse na rádio a anunciar algum programa. Ouvimos as conversas gravadas.

— Alferes, o aparelho não está bom. A sua voz está perfeita, mas a minha ficou esquisita.

— Não ficou nada, Rodrigues. É a sua voz perfeita. Até os ruídos envolventes ficaram gravados e distintos. O furriel é que não está habituado a ouvir-se a si mesmo. Não está habituado a ouvir a sua voz exteriormente a si.

— Exteriormente a mim? Como? Não entendo.

— Quando fala, a sua voz é percepcionada por si de maneira diferente das outras pessoas. Chega-lhe através de duas vias. Recebe-a através dos ouvidos e do próprio corpo. É esta combinação de sons que lhe chega ao cérebro. Ouve tudo o que diz através dos ouvidos, pelo ar, e através da matéria sólida do seu próprio corpo. Por isso, parece-lhe diferente. Agora, com o gravador, ouviu-se de uma forma exterior a si. Ouviu a sua voz tal como as outras pessoas também ouvem. Como não está habituado, parece-lhe diferente. O aparelho é óptimo. Se não o comprar, levo-o eu para mim.

— Não leva nada, alferes. Fui eu que o vi primeiro. Vou-o comprar. Poderá depois levá-lo para onde quiser, na Quimabaca, que lho empresto eu, para ouvir música. Mas está decidido. Quem o compra sou eu. Vou ficar com ele.

— Faz bem, Rodrigues. Faz uma boa compra e vai ser-nos um bom passatempo. Tenho na minha mala duas cassetes com música, que gravei há dias durante um serão, em casa de um civil. Estivemos na conversa, a beber uns uísques e a ouvir música. Ele tem uma maleta com giradiscos, rádio e gravador de cassetes. Tinha trazido de Luanda uns LPs com música excelente. Gravou-me duas cassetes com boa música, que guardei para quando fosse de férias. Por isso, já temos duas horas de boa música. Antes de irmos para a Quimabaca, vou procurá-las à minha arca da roupa, que tenho aqui em Quimbele, no meu quarto. Agora, pague e vamos embora. Quero ir tomar um fino antes do almoço.

— Pago-lho eu, alferes. É para festejarmos a aquisição.

— O alferes já se lembrou que temos o Carnaval à porta? — perguntou o comerciante.

— Já me lembrei disso, há tempos. Mas voltei a esquecer. Se estivesse na metrópole, ainda tinha os bailaricos no cinema Aveirense ou no Avenida, em Aveiro, e o cortejo carnavalesco de Ovar. Aqui, só se fizermos algum cortejo com a macacada que anda na mata.

— Venham a Quimbele, na terça-feira. Vamos ter cinema, à tarde. Está-se a pensar organizar um bailarico.

— Vamos pensar no assunto. Mas duvido. Temos um plano de acção sobrecarregado para cumprir e muito pouco tempo.

— Faz-se um carnaval na sanzala, com o pessoal da Quimabaca, alferes. — disse o Rodrigues na brincadeira.

— Claro! E agora até já temos música. E mesmo que não tivéssemos, os pretos são bons para as batucadas. Não se lembra do Natal? Não se esqueça é de comprar uma caixa de pilhas, Rodrigues. Se não, ficamos depressa sem música.

— Vou comprar para os primeiros tempos. Depois, improvisamos. Temos as baterias dos rádios das transmissões. É fácil arranjar uma fonte de energia barata e duradoura. Pode-se recarregar sempre com as baterias das viaturas.

— Está bem pensado, Rodrigues. Se for preciso, requisita-se mais uma bateria de reserva para o rádio das transmissões.

No café, as conversas giraram à volta da compra do furriel e dos bailaricos que fazíamos na metrópole. Bastava-nos que um dos amigos emprestasse a garagem. Usava-se um gira-discos e tínhamos os discos levados por cada um. Os rapazes encarregavam-se das bebidas e as moças das gulodices...

— ... No meu tempo de Coimbra, aos fins de semana, costumávamos organizar os bailes no Clube Recreativo do Bairro do Loreto. Era eu quem fornecia a música. Geralmente, às sextas-feiras, vinha a malta ter comigo ao café Lusa Nova: «Ulisses, não te esqueças. Amanhã, ao fim da tarde, temos bailarico. Leva o teu gravador Grundig de bobinas. Leva boa música, que nós levamos as bebidas. Elas levam os bolos. Vai ser um serão agradável...»

 

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