O material mais difícil de trabalhar |
Alto Zaza, 14 de Fevereiro de 1973
Há três dias que vos mandei a minha última colecção de aerogramas. Acabei há pouco de reler os duplicados a químico e os vossos dois últimos. Embora a maior parte da vossa correspondência seja escrita pela mãe e poucas linhas sejam lavradas pelo pai, verifico que os dois costumam fazer uma leitura completa das minhas palavras. Na parte escrita pelo pai, há umas passagens que me fizeram reflectir um pouco. Numa delas, diz o pai, a certa altura, que está contente por saber que me dou bem com todos nesta região, incluindo o meu pessoal. De facto, é isso o que tenho procurado sempre fazer, independentemente de se tratar de pessoal civil ou militar. Como responsável por uma vasta região, tenho de procurar dar-me bem com toda a gente. Só assim é possível resolver da melhor maneira as situações que me surgem. Nem tudo é tão fácil como parece. Temos que ter uma grande presença de espírito e uma certa capacidade de encaixe para enfrentar as situações adversas. Temos de ser duros no momento exacto, mas não duma dureza granítica. Na quase totalidade dos casos, é preciso saber perdoar, é preciso fazer por esquecer situações menos correctas dos outros, para que possamos manter as relações adequadas com todas as pessoas. E isto não é fácil. Frequentemente, deparamo-nos com casos pouco agradáveis e de difícil resolução, como vou procurar demonstrar-vos nas páginas seguintes. Lidar com material humano é das situações mais complicadas, para não dizer melindrosas e de difícil actuação. É mais fácil trabalhar a matéria bruta que o material humano. O escultor que desbasta o granito ou a pedra de Ançã, embora tenha por vezes problemas de difícil solução, está em melhor posição que aquele que tem de trabalhar com o ser humano. E então, o mestre oleiro, que na oficina molda o barro mole, esse está numa situação privilegiada em relação a todos os outros. A plasticina argilosa, enquanto húmida e mole, desliza facilmente entre os dedos húmidos; e o oleiro molda-a a seu belo prazer, sem qualquer constrangimento. O pedreiro, esse, tem uma matéria mais dura, mais difícil de trabalhar; mas, com paciência e perseverança, acaba por dar à pedra a forma pretendida. O escultor, que desbasta o mármore, está numa situação um pouco melhor que o pedreiro, porque a matéria prima é mais mole, embora também com alguns problemas. Mas com paciência, desbastando aqui, desbastando acolá, acaba por obter a forma que pretende. E, no final, termina por poli-la, tornando a pedra bruta numa autêntica maravilha que todos apreciamos. Aquele que tem de trabalhar com o material humano, ao contrário do que poderíamos supor, é o que tem a tarefa mais complicada. A pedra, seja ela granito ou mármore, é dura, mas inerte; e com paciência e tempo acaba por adquirir a forma procurada. O barro, sendo também inerte como a pedra, torna-se plástico e moldável com a água, adquirindo facilmente e quase sem esforço o feitio que se pretende. E depois de cozido, torna-se duro e indeformável e quebrável como a pedra ou o mármore. O material humano não é inerte, como a pedra e a argila; não é estável como o mármore e o barro; não é fácil de trabalhar como os materiais inertes. O material humano é constituído por múltiplos grânulos, cada qual com a sua especificidade e, como tal, de resultados imprevisíveis. Quando julgamos que a nossa tarefa parece estar adequada para este ou para aquele elemento, a estratégia revela-se completamente errada relativamente a outro, produzindo faíscas de consequências, por vezes, bem pouco agradáveis. A juntar aos problemas de termos de lidar com o material humano, juntam-se outros que não tínhamos previsto e que vêm fazer piorar a situação, como sejam, por exemplo, as condições do local onde nos encontramos, as más condições da ferramenta com que temos de actuar e, não raras vezes, até as condições climatéricas adversas. E têm tido muitos exemplos do que acabo de dizer em aerogramas anteriores. Quantas vezes temos ficado em más situações no meio das picadas, em plena selva, por causa das más condições das “ferramentas” com que temos de andar e que há muito deveriam estar na sucata! Como exemplo das adversidades climatéricas, temos, por exemplo, o que me acaba de suceder neste preciso instante. Parece que Zeus deitou o canto do olho para este lado e veio confirmar as minhas palavras. Acabo de ser sobressaltado por um valente estampido provocado por um relâmpago, que, pela intensidade do barulho, deve ter caído a poucos metros daqui. O que significa que vou ter de largar a mesa onde me encontro, à entrada do edifício, e recolher-me ao gabinete, antes que uma carga de água comece a desabar em cima de mim. Acabo de me sentar no meu escritório improvisado, a um canto do meu quarto. Escureceu repentinamente. Fui obrigado a acender o petromax. A barulheira sobre as chapas de zinco é infernal, mas não o suficiente para me desviar daquilo que estou a pretender expor-vos: o problema dos conflitos humanos. Apesar de estar a lamentar-me pela violência brusca de Zeus, a verdade é que a carga de água que está a desabar e a martelar-me os ouvidos não deixa de ser providencial. Está neste momento a encher-nos os bidões com água própria para consumo. Estávamos sem água no destacamento e sem as viaturas, que estão em operação no meio da mata. Há dois dias que saiu metade do pessoal do destacamento para uma operação, que deveria estar a ser comandada por mim. Estava até a pensar que teria de ir amanhã, logo pela manhã, ao rio, com alguns homens e com vasilhas improvisadas com as latas da chouriça e do óleo da cozinha; e acabamos por ter quem providencialmente nos resolva o problema do abastecimento da água. E aqui estou sozinho, com meia dúzia de homens no destacamento, a reflectir a propósito dos problemas gerados pelo facto de termos de lidar com o material humano. E não deixa de ser irónico. O pai, num aerograma, diz-me estar satisfeito por ver que eu me dou bem com todos e que não tenho problemas. E eu estou a abordar esta questão justamente por causa dos problemas provocados pelo meu pessoal. Foram problemas causados não pelos soldados, mas por um furriel. E por causa dele, que acabei por não obrigar a ir na operação, foi outro furriel a comandar o grupo na minha vez, tendo eu aqui ficado com vinte homens apenas.
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