Tomada de decisão

O que acham da minha decisão? Terá sido a mais correcta?

«Deveria ter ido o furriel que se recusou a aceitar o comando, e não o Teodoro» — é isto o que vocês estão agora a pensar. E estão a pensar correctamente, face aos dados que vos acabo de fornecer. Mas... Para tudo há sempre um mas! O vosso raciocínio estaria correcto, se entrassem em jogo apenas os elementos que vos forneci. Todavia, na minha ordem entraram vários elementos. Não me baseei apenas na recusa do furriel Ramalho, mas sobretudo numa série de factos que pesaram fortemente na tomada da decisão. A recusa do furriel Ramalho é uma insignificância, comparada com os antecedentes comportamentais do furriel Teodoro.

O que é que vocês decidiriam se, durante uma refeição, vos dessem a escolher obrigatoriamente um de dois pratos de que não gostam? Certamente que, não tendo mais que comer e vendo-se obrigados pela fome, iriam pôr de lado o que menos gostam e escolheriam o que menos desgostam. Pois foi precisamente isto o que eu fiz! Entre dois elementos à escolha, preferi mandar para a mata o pior elemento e ficar com o melhor no destacamento. Por enquanto, do furriel Ramalho, apenas me posso queixar da recusa em aceitar o comando do destacamento e de se ter deixado ficar por Quimbele mais do que o devido, com o pretexto de ter de fazer as contas, não levando em consideração outras pequenas faltas, facilmente desculpáveis. Em relação ao Teodoro, os problemas gerados por ele dariam uma enormíssima lista, pior que o rol daquelas lavadeiras de antigamente, que lavavam a roupa suja dos outros nas margens dos rios.

Não querendo aqui mostrar-vos a lista completa relativa ao Teodoro, porque poderia infestar-me os aerogramas e atrair-me as moscas, vou apenas dar-vos alguns breves exemplos.

O furriel Teodoro tem-se revelado um dos meus piores elementos, causando-me mais problemas que os soldados. E de tal modo me tem moído a paciência e pregado algumas partidas desagradáveis e inconcebíveis num graduado, que já cheguei a pegar no papel e na caneta e a fazer uma participação dele, que acabei por arrumar na pasta, apesar da punição ser mais do que merecida. Até este momento, ainda só puni dois soldados com o máximo que podia, porque já não tinha outra solução. Fui fechando sucessivamente os olhos, perdoando-lhes as faltas; e eles, em vez de compreenderem que não os punia por, no fundo, sentir amizade por todo o meu pessoal, acharam que o alferes era mole e podiam fazer com ele o que queriam. E o resultado foi ter de fazer seguir o processo para a frente. E porquê? Muito simplesmente porque eles acharam que podiam ausentar-se do quartel para as sanzalas vizinhas pelo tempo que quisessem. Andaram dois dias por fora e fizeram andar todo o pessoal preocupado à procura deles.

Mas voltemos ao graduado de quem estava a falar. Algarvio, natural de Albufeira e com uns vinte e poucos anos, o Teodoro tem-se revelado o pior elemento entre os graduados. Sua excelência chega mesmo a dar-se ao luxo de passar os dias ou estendido na cama, sem fazer os serviços que lhe competem, ou a jogar às cartas. As obrigações não são para ele. O Rodrigues e eu que nos arranjemos, porque sua excelência tem mais que fazer do que estar a incomodar-se.

O comodismo do furriel chegou a tal ponto que, certo dia, tendo-lhe dado uma ordem de serviço por escrito, sua excelência, contrariado por ter de se levantar da cama, amachucou a ordem de serviço e meteu-a no bolso, saindo furibundo do nosso edifício. E não participei então dele, porque me custava poder vir a estragar-lhe as férias na Metrópole. Com uma participação e respectivo castigo, não obteria seguramente a licença de férias em Portugal. Todavia, contrariado e com toda aquela manifestação de uma elevada falta de educação, lá se dignou cumprir as ordens.

Noutra altura, calhou-lhe pela escala de serviço ser ele a efectuar uma patrulha de rotina na área envolvente do destacamento. É uma rotina banal, que tem como objectivo não só manter o pessoal ocupado, mas sobretudo inspeccionar dois ou três pontos sensíveis. É um percurso sem dificuldades, que eu já tenho feito sozinho, por mais de uma vez, apenas armado com a máquina fotográfica e com os meus olhos e ouvidos, o que me tem proporcionado encontros curiosos com os nossos antepassados macacais. Andando-se nas calmas, o percurso leva-nos cerca de três horas. Sua excelência saiu com os homens e, passada meia hora, entra-me no destacamento dizendo que tinha feito a patrulha. Sua excelência afastou-se duzentos metros, foi até à orla da mata e deixou-se lá ficar a descansar até passar a meia hora, como calculei e acabei por averiguar junto dos soldados.

Mais recentemente, no dia vinte e seis de Janeiro, dia bem ocupado por mim, transformado em pintor de bancos e na companhia do capelão, mandei um soldado chamá-lo:

— Faz-me um favor. Vai procurar o furriel de serviço e diz-lhe que venha falar comigo.

Pretendia que ele, por volta das catorze e trinta, formasse o pessoal, para distribuição do serviço para a parte da tarde.

— Meu alferes, o furriel Teodoro está na caserna, a jogar às cartas. Diz que agora não pode vir.

Sua excelência recusa-se a comparecer perante mim e continua calmamente a jogar com os soldados, não se lembrando sequer que está a infringir os artigos 1º e 6º do ponto quatro do Regulamento de Disciplina Militar. A ferver interiormente, mas sem o querer mostrar, voltei a pedir ao soldado:

— Volta à caserna e diz a esse senhor que deve vir imediatamente falar com o alferes.

Passados dois ou três minutos chega-me novamente o soldado:

— Meu alferes, o furriel Teodoro manda dizer que tem mais que fazer.

Escusado será dizer que fiquei pior que uma panela de pressão com a válvula entupida. Não disse nada. Dirigi-me ao meu gabinete, peguei na caneta e numa folha de papel azul de vinte e cinco linhas, sentei-me na mesa à entrada do edifício do comando e comecei a redigir a participação, com o livro do R.D.M. aberto nos artigos correspondentes.

O soldado que me serviu de intercomunicador e se manteve no local, acompanhando com curiosidade as minhas reacções, partiu dali. Estava eu já com algum consumo de tinta preta da esferográfica e a folha azul quase preenchida quando, mirabile dictu, sua excelência apareceu esbaforido a pedir-me desculpa e a perguntar-me qual o serviço que tinha para fazer.

«A participação seguiu para a frente? Acabaste de preencher a folha e fazer seguir a participação?» — estão novamente vocês aí cheios de curiosidade a querer saber o desfecho da situação.

Como é que eu podia ir estragar o dia, que até me estava a correr magnificamente na companhia do capelão, com uma participação que iria estragar as férias a um graduado? Será difícil de adivinhar o que fiz a seguir?

«Claro que não! Como não querias estragar as férias ao rapaz, rasgaste a participação e atiraste o problema para trás das costas!» — é isto o que vocês acabaram de pensar. E quase acertaram! De facto, não me agradava nada levar a participação para a frente. Por isso, não a rasguei, como vocês pensaram, mas tratei de a arquivar, não vá o diabo voltar a tecê-las e obrigar-me a ter de usar novamente meios similares. Pois é verdade! Arquivei a participação, mas não sem antes ter acabado de a completar devidamente.

Depois destes exemplos, já estão a perceber as razões da minha tomada de decisão perante a recusa do Ramalho em assumir o comando do destacamento? Por causa deste, apanhou outro furriel por tabela o frete de ir para a mata por quatro dias, tendo eu ficado aqui no destacamento com disponibilidade quase total para ocupar o tempo na conversa convosco.

 

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