Depois de uma bica
gostosa, feita na máquina maior que trouxe para o
destacamento, e de termos marcado a missa da tarde para cerca
das dezasseis ou dezassete horas, o capelão pediu-nos licença
para se retirar para o meu gabinete. Pretendeu ir meditar um
pouco com os olhos fechados, estendido na cama, acerca das delícias
culinárias dos cozinheiros do Alto Zaza:
— Se me permitem,
gostaria de me esticar um pouco na cama, para uma curta sesta.
Dormi pessimamente no Quitari e, depois de um leitão e uma
pinga gostosa, as pestanas tornaram-se mais pesadas. Nem com o
café se mantêm levantadas.
— Esteja à vontade
— dissemos todos.
— Já agora, aproveito
a sua boleia e faço-lhe companhia, capelão. Vou também
esticar-me um pouco.
Entrámos no meu
gabinete. E para não estragar o meu tratamento preventivo
antipalúdico, peguei na garrafa de uísque e enchi uma tampa.
— O capelão não quer
tomar uma dose antipalúdica?
— O que é?
— É a minha tampa de
uísque a seguir a cada refeição. É a prescrição do
médico que rendemos. Antes de vir para o Alto Zaza, no
primeiro dia em que chegámos a Quimbele, deu-me esta receita,
que se tem mantido exacta: «O Alto Zaza é uma zona de muitos
mosquitos. Se quiseres evitar o paludismo, toma sempre os
comprimidos semanais, mas, sobretudo, nunca te esqueças, a
seguir a cada refeição, de beber uma tampa de uísque. Mesmo
que não gostes da receita, habituas-te a ela com o tempo e
evitas o paludismo.» Foi este o conselho do médico que
rendemos. Não sei quem é o tipo, porque mal tive tempo de o
conhecer. Mas que o conselho dele tem dado resultado, essa é
que é a verdade. Até à data, já muita gente aqui teve
problemas com o paludismo e eu tenho escapado. Quer provar da
minha receita? Tome também uma tampa. Não precisa de ser
limpa. Está sempre desinfectada com o álcool do uísque.
— É a primeira vez
que ouço tal coisa. Mas se tu o dizes, aceito a oferta.
Eram umas três e meia
da tarde quando me levantei, completamente coberto de suor.
Como estive sempre na mesma posição, de barriga para o ar,
estendido sobre a cama, calções e camisa estavam colados às
costas e às pernas, escurecidos pelo suor. No fundo, apesar
de não gostarmos de sentir a roupa colada ao corpo, esta é a
grande defesa do organismo, para manter uma temperatura estável.
Com a evaporação do suor, baixa a temperatura do corpo e
evita-se, deste modo, a desidratação.
A certa altura, o capelão
abriu os olhos. Acordou também da sesta, talvez despertado
pelo silencioso ruído dos meus pensamentos. Ou terá sido
qualquer fluido magnético do meu olhar, quando fixei os olhos
nele para ver se ainda estava a dormir?
Só sei que ele abriu os
olhos naquele momento. E fixou-os num dos objectos que tenho
debaixo da cama. Talvez pela brancura contrastante com o fundo
escuro e esverdeado da parede do edifício metálico, o olhar
dele foi atraído para um dos objectos que guardei há tempos.
— O que é aquilo
branco ali debaixo da tua cama?
— Que branco? Debaixo
da minha cama não há nenhum branco nem preto.
— Não é nenhum
branco. É uma coisa branca. Parece uma viatura em miniatura.
— Ah, já sei ao que
se refere. Já vai ver o que é. Tenho a certeza que é algo
que lhe vai dar prazer admirar.
Ajoelhei-me junto da
minha cama e tirei do fundo três objectos brancos, feitos de
madeira de bordão, que alinhei sobre a cama como se ela fosse
um parque de estacionamento.
— São brinquedos?
— São! São
miniaturas das nossas viaturas, feitas pelos miúdos das
sanzalas, um dos quais trabalha aqui na cozinha. São uns
verdadeiros artistas, estes miúdos. Admire a perfeição e os
pormenores destes brinquedos. E repare que não há
praticamente pregos. Tirando as cintas metálicas, que servem
de suspensão às rodas, todas as peças são feitas de
madeira de bordão e fixas uma às outras com as partes
espinhosas da palmeira.
— O que é o bordão?
— O bordão é a
madeira de uma variedade de palmeira aqui da zona. É uma
madeira branca, mole e porosa, facilmente trabalhada com uma
navalha. O bordão é um tipo de palmeira de onde se extrai o
malavi. Nunca provou o malavi?
— Já ouvi falar
disso, mas ainda não sei o que é.
— O malavi é uma
bebida esbranquiçada, adocicada e agradável que, depois de
fermentada, é quase tão alcoólica como o vinho. Não é
tão alcoólica, mas acaba por provocar uma certa embriaguez.
E porquê? Já vai saber porquê. Já me têm cá vindo
oferecer garrafões de malavi, que aceito sempre e retribuo
com outras ofertas. A bebida está em permanente
fermentação, transformando o açúcar, melhor dizendo, a
glicose em álcool e provocando-lhe umas bolhas de gás como o
champanhe. Metendo-se no frigorífico, fica uma bebida
agradabilíssima. Tão agradável que, se exagerarmos,
acabamos por sentir os efeitos do álcool. Como a graduação
é muito baixa, a bebida é adocicada e a sua frescura nos dá
um certo prazer, acabamos por não resistir à tentação de
repetirmos as doses. E o resultado é a acumulação, ao fim
de algumas repetições, de uma certa quantidade de álcool
que, quase sem darmos por isso, acaba por produzir mais efeito
do que se estivéssemos perante uma garrafa de vinho.
— Já sei o que é o
bordão. Já percebi a explicação. Acabaste por me fazer
ficar com vontade de provar essa bebida. Mas agora deixa-me
apreciar com os meus dedos estas três pequenas maravilhas.
— O capelão também
é como os espanhóis? Veja-as à vontade. Espante-se com a
habilidade e perfeição dos miúdos das sanzalas. A maior
parte dos nossos miúdos, na metrópole, nunca faria
brinquedos tão perfeitos.
— O que vais fazer com
eles?
— Quando o primeiro
miúdo me trouxe este exemplar, fiquei também espantado com a
perfeição do brinquedo. Fiquei exactamente como o capelão
está neste momento. Nunca mais me cansava de virar e revirar
o brinquedo, analisando-lhe todos os pormenores.
— Pagaste alguma coisa
por ele?
— Nada! Não era para
ser pago. O miúdo veio oferecer-mo. Veio dar-mo como
recompensa por o ter deixado trabalhar no destacamento. Quando
ele mo entregou, ali na sala ao lado, eu e os furriéis
estivemos um bocado a brincar com ele. Não imagina a
satisfação do miúdo, quando nos viu a brincar com o carro
que ele tinha construído e me oferecera. Claro que o
recompensei. Não com dinheiro. Ele não queria dinheiro. O
brinquedo era para dar ao alferes, não era para vender. E
como não era para vender, fui à minha mala procurar uma
tablete de chocolate. Não há nenhum miúdo que não goste de
uma tablete de chocolate. Quando viu a tablete, não foi capaz
de a recusar. Ficou satisfeitíssimo. Já alguma vez encontrou
algum miúdo, na metrópole, que não gostasse de chocolates e
rebuçados? Pois os miúdos das sanzalas são como os miúdos
de todo o mundo. Só sei que, passados uns dias, vieram outros
miúdos da sanzala mostrar-me e oferecer-me os outros dois
brinquedos feitos por eles. E sempre que eles me vêm visitar,
recebo-os sempre com prazer. Brinco um bocado com eles e, no
fim, há sempre umas gulodices: uns chocolates, uns
rebuçados, uns refrigerantes, uns pacotes de bolachas, em
suma, aquilo de que disponho na ocasião.
— Mas o que pensas
fazer com isto?
— Quando recebi o
primeiro, pensei imediatamente em coleccionar os brinquedos
para, mais tarde, constituir um museu etnográfico, pois o que
aqui temos na nossa frente, apesar de se tratar de brinquedos,
são interessantíssimas peças de etnografia, que nos mostram
a capacidade criativa das crianças desta região. Só tenho
um problema: como é que vou conseguir guardar todos os
exemplares que me forem trazendo? Como é que os vou
transportar sem problemas, quando rodarmos de zona e quando
regressarmos à metrópole? Já pensei várias vezes nisto. E
até já pensei que o melhor será fotografá-los em pormenor,
efectuando os devidos registos, e, mais tarde, antes de partir
da região, juntar todos os miúdos, fazer com eles uma
pequena festa de despedida e devolver-lhes os brinquedos, não
sem antes lhes tirar uma fotografia ao lado dos objectos por
eles produzidos. Já apreciou bem toda a riqueza de pormenores
e a fidelidade ao modelo original?
— Tens toda a razão
em estar espantado com isto. Os brinquedos são uma
perfeição. São miniaturas perfeitas dos veículos militares
que aqui circulam. Até a suspensão feita com as cintas
metálicas dos caixotes revela imaginação e criatividade.
— Aqui, todos os
materiais são aproveitados. Nada se desperdiça. As aduelas
dos pipos permitem aquilo que já viu. As cintas dos caixotes
são guardadas e oferecidas aos miúdos. As tábuas melhores
são também aproveitadas. E as que não prestam aproveitam-se
também; servem de combustível para a cozinha e forno do
pão. Aqui nada se perde, tudo se transforma! Mas, capelão,
temos de interromper a nossa conversa. Já reparou que o tempo
não pára? Temos de arrumar novamente os brinquedos debaixo
da cama e ir dar uma volta. Tem de escolher a caserna onde
quer celebrar a missa, para a mandarmos preparar. E a
confissão do pessoal? Eu também me quero confessar, que isto
é coisa que já não sei o que seja há muito tempo.
— Não te preocupes
com isso, que eu hei-de arranjar maneira de vos confessar a
todos ao mesmo tempo, sem ter de vos ouvir.
— Mas como? Como é
possível ouvir-nos a todos ao mesmo tempo?
— Não te preocupes,
que eu logo resolverei a situação.
— E qual a caserna
onde quer celebrar a missa?
— Isso é fácil. Da
última vez foi numa; agora será na outra, do lado oposto.
Temos de dividir o mal pelas aldeias.
— O mal?!
— É uma maneira de
dizer. Temos de contentar toda a gente.