Pois foi com um aerograma a
este camarada que iniciei hoje a minha correspondência. Tinha
recebido, há dias, um aerograma dele e precisava de lhe responder.
Como prometi dar-vos conta de
tudo quanto aqui faço, vou passar a transcrever-vos alguns excertos
da minha resposta.
Depois da data e de uma breve
introdução, ou seja, das habituais fórmulas de saudação com que
iniciamos a correspondência, começo por evocar os bons momentos
passados em Tomar:
«(...) Não imaginas como
fiquei satisfeito por ter recebido um aerograma teu. Várias vezes
me tenho lembrado de ti, bem como dos nossos camaradas que tiveram
menos sorte que nós e foram parar à Guiné.
Chego a sentir saudades
daquelas noites bem passadas em Tomar. E só lamento não ter comigo
aquela cassete com a nossa gravação improvisada de uma peça de
teatro, em que representámos para o microfone as várias
personagens. Lembras-te daquela célebre peça de teatro que tu
trouxeste para o quartel, intitulada A Ceia dos Cardeais, de
autor anónimo, que tu conseguiste memorizar na íntegra? É uma peça
engraçadíssima, em que se parodia de maneira um tanto pornográfica
e altamente cómica a versão original de Júlio Dantas. Pois seria
de uma enorme utilidade ter agora aqui essa cassete. Poderia
proporcionar-nos uns momentos agradáveis de franca gargalhada e boa
disposição.
E digo-te mais. Se tivéssemos
feito vários ensaios, a peça nunca teria saído com tanta
naturalidade e com tanta piada como saiu. Bons tempos! Perdeu-se a
cassete (ou desviaram-na, não sei!), mas ficou a recordação
dessas horas agradáveis.»
Estou agora a lembrar-me que já
vos falei desta representação, quando vos transcrevi uma carta
escrita a um camarada que foi parar à Guiné e que participou na
representação gravada da peça. Mas não vale a pena estar agora a
preocupar-me com este pormenor. Se quiserem verificar se tenho razão,
revejam a correspondência que já aí têm convosco.
Mais adiante, faço referência
às características da área em que me encontro e relato alguns
acontecimentos dos últimos dias, que não vale a pena estar aqui a
transcrever. Para abreviar, vou-me limitar aos três últimos parágrafos
da carta:
«... Fiquei satisfeito por
saber que estarás temporariamente em Sanza Pombo. Tenho pena que não
surja agora um problema urgente que me obrigue a ir aí. Das poucas
horas em que fui obrigado a permanecer na sede do Batalhão, estavas
tu num destacamento qualquer da tua Companhia.
Se tiveres tempo, como sei que
ainda sabes de cor toda a Ceia dos Cardeais, pega numa folha de
papel e volta a transcrevê-la e manda-ma para o Alto Zaza. É certo
que não tenho aqui pessoal à altura nem meios para efectuar uma
gravação decente desta peça. Mas servirá para eu a reler e
recordar melhor os divertidos serões passados em Tomar.
Pode ser que, em Julho, se
tivermos férias na mesma altura, possamos voltar a estar juntos.
Por agora, resta-me despedir-me de ti com um grande abraço de
amizade. Vai escrevendo ao teu amigo sincero,
Ulisses de Almeida Ribeiro»
Afinal, acabei por
efectuar-vos uma transcrição maior do que aquilo que tinha pensado
fazer. O que está transcrito, penso que não precisa de quaisquer
comentários, até porque tenho coisas mais importantes para aqui
registar. Ou não será verdade? Não estão interessados em saber
como foi o resto da permanência do capelão no destacamento?
Não é todos os dias que
temos entre nós um capelão! Embora tenha recebido alguns
aerogramas vossos que precisam de uma resposta directa às perguntas
que me fazem, a verdade é que os acontecimentos de domingo são
mais importantes que o relato das rotinas diárias. Por isso,
completemos a estadia do capelão e deixemos para o fim a resposta
aos vossos aerogramas.
Até este momento, consegui
escrever os dez aerogramas que já fazem monte em cima da mesa
praticamente sem interrupções. E digo bem: praticamente sem
interrupções. O «praticamente» está correcto. O uso deste advérbio
de modo deve-se ao modo como tenho vindo a intercalar o deslizar da
esferográfica com os movimentos quase verticais, de baixo para
cima, da minha mão, sempre que seguro o copo de uísque com a
Coca-Cola e o levo à boca. Desta maneira, a escrita flui mais
fresca e saborosa e arejada. O arejado não é da bebida, mas da
morna aura que, de vez em quando, me acaricia o rosto e o tronco nu.
Encontro-me a escrever-vos ao ar livre, em frente ao edifício do
comando que, agora, graças à habilidade dos meus soldados, parece
quase a esplanada de um café. Além do banco de aduelas que pintei
há três dias, tenho também a mesa que os soldados fizeram antes
do banco comprido e que tem sido muitas vezes o meu local de
trabalho.
Depois destas informações
relativas ao modo como me encontro, é altura de sabermos o que
aconteceu ao capelão e de como passámos o último domingo.