| No dia trinta de Dezembro, fui de
    manhã a Quimbele. Fui chamado na véspera. Recebi mensagem do capitão, para ir buscar os
    sacos do correio e o pré de todo o pessoal. Saí de manhã, bem cedo, logo a seguir ao
    pequeno almoço. Depois de ter largado a arma e as cartucheiras na messe de oficiais, dirigi-me
    imediatamente para o edifício do comando, para falar com o capitão e passar pela
    secretaria.
 Depois de uma breve conversa com o capitão Alberto e o Vieira, que é o braço direito do
    comandante de Companhia e o substituto na sua ausência, passei à secretaria, para falar
    com o sargento.
 Foi uma conversa agradável. Tinha, além dos vários sacos com correio, o vencimento para
    levantar.
  O alferes está cheio de sorte! Vai receber o vencimento a dobrar.
  Mas como?  perguntei espantado. Resolveram compensar o meu isolamento
    forçado no Alto Zaza e pagar-me a dobrar?
  Não, alferes, a partir de agora, todo o pessoal do Estado passa a ter direito ao
    décimo terceiro mês. O alferes é militar; logo, é funcionário público.
  Mas é só para a tropa ou para toda a gente?
  É para todo o funcionalismo público.
  Quer dizer que os professores também passam a receber um mês a mais no Natal?
  Evidentemente.
  Então, o meu pai, deve estar contente da vida. É professor primário! E eu
    também tenho sorte. Como sou professor do liceu, continuarei a ter esta regalia depois de
    sair daqui.
  Claro! Se isto é para todo o funcionalismo público, o alferes vai continuar a
    receber quando retomar a sua actividade como professor.
  E quanto é que agora vou receber?
  São mais uns seis mil escudos, além do vencimento habitual.
  Mas isso é bestial! Vou já mandar um vale para pagar um empréstimo e liquidar a
    minha conta da máquina fotográfica.
 Estava eu em amena conversa com o sargento, a fazer projectos sobre o dinheiro fresco,
    acabado de receber, e a decidir aumentar o quantitativo a ficar na Metrópole, quando
    surgiu o impedido do capitão:
  Meu alferes, o nosso capitão pede para passar novamente por lá, antes de sair.
  Obrigado. Diz ao nosso capitão que é só o tempo de preencher um documento na
    secretaria. Passo já por lá.
 Preenchido o impresso com o quantitativo que passo a deixar para a minha conta na
    Metrópole, voltei ao gabinete do capitão.
  O capitão Alberto chamou-me?
  Sim. Senta-te aí, que preciso de conversar contigo.
 Puxei de uma cadeira e sentei-me junto à secretária do capitão.
  Ouve lá , foste fazer queixinhas para o Comandante de Batalhão?
  Eu?! Queixinhas de quê? Não estou a perceber!
  Recebi uma mensagem do comando a perguntar-me por que razão não contratei
    carregadores para a acção helitransportada. Como é que o comandante sabe de tudo quanto
    se passou?
 Contei ao capitão a conversa que tive com o tenente coronel Soares Coelho. Disse-lhe que
    tinha levado um valente raspanete do comandante e acrescentei:
  Na minha conversa com ele, não pus ninguém em xeque. Limitei-me a contar as
    dificuldades sentidas durante a acção e apontei como justificação para a minha
    evacuação o facto de andar aleijado do pulso. Ouvi todos os sermões e missas cantadas
    que o comandante me quis pregar e não fiz mais do que limitar-me a ouvir. Nem sequer me
    defendi e muito menos atirei culpas para quem quer que fosse. Omiti, inclusive, a
    discussão que tivemos no Alto Zaza por causa dos carregadores. Logo, não tenho nada que
    me pese na consciência. Porquê  Mandou-lhe também algum raspanete?
 O capitão deu-me a ler a mensagem. O conteúdo fez-me recordar o sermão que tinha ouvido
    em Sanza. Pareciam quase as mesmas palavras. Chamava a atenção do capitão para o facto
    de que as verbas existentes para as operações na mata são para serem devidamente
    aplicadas. E que os oficiais têm direito a um carregador. E que...
 Não vale a pena reproduzir o resto do que lá vinha escrito. Era aquilo que todos nós
    já sabemos e que eu próprio disse ao capitão, na véspera da operação, quando lembrei
    que todos os oficiais deveriam ter um carregador.
 Antes de terminar a conversa e ir onde já tinha decidido, acrescentei como despedida
    momentânea, até à hora do almoço:
  O capitão já deveria conhecer-me melhor, dos meses que passámos juntos na
    Metrópole, em Tomar e em Santa Margarida. Seria incapaz de prejudicar um camarada de
    infortúnio. Já basta o castigo de estarmos aqui enfiados neste buraco do continente
    africano. Se me quisesse baldar a tudo isto, teria aproveitado a altura em que andei de
    braço engessado. Deve lembrar-se que, em Tomar e Santa Margarida, mesmo com o braço ao
    peito, procurei sempre dar o máximo apoio a toda a malta, quando podia ter ido de baixa
    para casa.
  Vai lá tratar da tua vida. Estamos conversados. Até logo à hora do almoço.
 Saí do edifício do Comando para o da Administração, a vinte metros de distância, onde
    funcionam também os serviços do correio civil. Consultei a agenda. Procurei o endereço
    do solicitador Rui Moreira. Preenchi um vale postal e entreguei o dinheiro do empréstimo.
    Adquiri também um bilhete postal e, no mesmo instante, escrevi ao solicitador, para lhe
    agradecer o dinheiro que me tinha emprestado e desejar-lhe um bom Ano Novo.
 
 Um quarto de hora depois, estava a caminho da loja do comerciante. Entrei e esperei. Não
    estava ninguém ao balcão, para me atender. Como o edifício é simultaneamente a
    residência e a loja e o comerciante estava de momento sem clientela, deveria ter ido lá
    dentro tratar de qualquer problema doméstico. Para não ficar ali a secar, pensei ir ao
    Briosa Bar tomar um café e regressar mais tarde. Preparava-me para sair do
    estabelecimento, quando ouvi a voz do comerciante:
  Bom dia, alferes? Já vai embora?
  Como não estava ninguém, ia ali tomar um café.
  Não tinha aqui ninguém. Aproveitei para ir lá dentro falar com a minha esposa.
    Fui saber o que me vai dar para o almoço. E o alferes, como passou o Natal? O que o traz
    por aqui?
  O Natal foi bom. Já passou. A maquineta do café fez sensação na noite da
    consoada. O lote de café que nos ofereceu é uma delícia. Estou até a pensar pedir ao
    capitão uma requisição para comprar uma nova máquina, o modelo maior, que me mostrou
    da outra vez. Passará a fazer parte da dotação da messe de oficiais e sargentos do Alto
    Zaza... É que a malta já se habituou ao ritual do café. E quando houver operações,
    tenciono levar a máquina pequena na mochila, para tomarmos os nossos cafés no meio da
    mata.
  Quando o alferes quiser, tenho aqui vários modelos à sua disposição.
  Deixe estar. Não é preciso mostrarmos outra vez. Agora vim cá para outra coisa.
  Diga lá, alferes.
   Quero liquidar as minhas dívidas. Recebi o vencimento e o décimo terceiro mês.
    Dá para pagar a máquina fotográfica, comprar um bom aparelho de rádio e forrar ainda
    algum dinheiro.
  Posso dar-lhe um conselho de amigo?
  Claro que sim.
  O alferes não compre já o aparelho de rádio. Em meados de Janeiro, conto ir a
    Luanda. Vou ver e encomendar material. E dar também uma volta. Aproveito para lá
    procurar um bom aparelho de rádio, mais recente e melhor que os modelos que aqui tenho.
    Ficará melhor servido.
  Estou plenamente de acordo. Sigo a sua sugestão. Não me custa esperar mais uns
    dias. E sempre fico mais bem servido. Remedeio-me com o aparelho velho que trouxe do
    «Puto». Além disso, temos também os rádios dos furriéis para nos fazerem companhia e
    barulho. Tire-me, então, a conta, para saldar a dívida.
  É pouca coisa, alferes. Quer pagar em duas prestações, como tínhamos combinado?
  Não. Tudo de uma vez. Às prestações era se não tivesse recebido o suplemento
    imprevisto. Liquido tudo. Já basta o favor que fez em ter confiado em mim.
  Não foi favor nenhum! Foi um prazer negociar com o alferes. Não faço isto a toda
    a gente. Só com quem me agrada e me inspira confiança.
 O comerciante passou-me o recibo e liquidei a conta. Antes de me despedir, fez-me ainda um
    convite, que agradeci e recusei:
  O alferes não quer almoçar connosco?
  Agradeço a gentileza, mas combinei encontrar-me com o capitão à hora do almoço.
    Se não fosse isso, aceitaria com todo o prazer. Então, até daqui por uns dias.
 Tinha-me já despedido e ia a sair, quando me lembrei de outra coisa:
  É verdade, os meus camaradas sempre encomendaram máquinas fotográficas iguais à
    minha?
  Precisamente. É também essa uma das razões da minha ida a Luanda. Tenho três
    encomendas e vou também procurar outros modelos mais baratos, ao alcance das bolsas da
    maioria dos soldados.
 Voltei a despedir-me do comerciante e saí para o Briosa Bar, a uns cinquenta metros, do
    outro lado da rua.
 Mais importante do que o café , que não passava de um pretexto, era encontrar de novo o
    médico, para conversar um pouco e falar da Metrópole e do Porto, de onde ele era
    proveniente. Tirando alguns soldados, que bebiam umas Cucas geladas a meio da manhã, não
    estava quem eu pretendia.
  Vocês não viram por aqui o novo médico?  perguntei aos soldados.
  Não, alferes. A esta hora deve estar aqui ao lado, na enfermaria, a dar consulta,
    se não estiver no hospital de Quimbele.
 Saí do café e desci a rua, até à enfermaria da Companhia e gabinete médico, onde são
    atendidos soldados e civis da região. Só lá encontrei o soldado enfermeiro, que fazia
    um penso a um nativo. O médico tinha ido ver os doentes ao hospital de Quimbele, situado
    numa colina, na saída da povoação, ao lado da estrada para Sanza Pombo e Luanda. Ainda
    pensei ir até lá a pé! Mas mudei de ideias, quando me lembrei que dali ao hospital
    deveria ser muito mais do que um quilómetro. Passei pelo outro café, em plena curva, a
    vinte ou trinta metros do Briosa Bar. Tirando quatro soldados do meu grupo, que deviam
    estar a jogar às cartas, não estava ninguém que me interessasse.
 
 Meti pela rua, que passa ao lado da cantina e
    refeitório dos soldados. À porta da cantina estava a minha viatura e alguns soldados.
    Pensei ir ter com o furriel e dar uma ajuda. Mas a cantina fica lá em baixo, na base da
    colina onde se situa a povoação de Quimbele, rodeada pela estrada alcatroada que, de
    longe, apresenta a forma de um coração. Tinha de voltar a descer a rua e já ia a meio
    da subida. Resolvi prosseguir a marcha e dar a volta à povoação, para ocupar o resto
    daquela magnífica manhã, de céu azul e temperatura agradável.Em pouco mais de meia hora, tinha dado a volta a Quimbele. Faltava pouco para o almoço,
    na messe de oficiais. Voltei a descer a avenida principal e entrei novamente no Briosa
    Bar. Acabei por não tomar o café. Hesitei entre mandar vir um aperitivo ou um fino. Como
    a passeata me deixara a suar, acabei por pedir um fino com ginguba. Enquanto comia e não
    comia o pires com o amendoim, o tempo para o almoço passava mais depressa.
  
 Pouco antes de sair para a messe de
    oficiais, entraram alguns soldados:  Alferes, o reab. já está carregado. A que horas arrancamos para o Alto Zaza?
  Entre as quatro e as cinco horas. Antes, é preciso passar pelo edifício de
    comando. Estão lá vários sacos com correio.
  Não será tarde, alferes?
  Tenho problemas para resolver com o capitão. Se virem o furriel, digam-lhe para
    não se esquecer de passar pelo comando depois do almoço. É preciso carregar os sacos de
    correio. Mas se não o virem, também não tem importância. Devo encontrá-lo no Briosa
    Bar à hora da bica.
 Antes de ir para a sala de jantar, passei pelo quarto, onde tenho, a um canto, junto à
    janela, a cama que me está reservada, e onde deixei a arma e as cartucheiras. Não ia
    para a sala de jantar sem me refrescar previamente.
 No quarto ao lado, encontrei o Graça Marques, que tinha chegado do hospital. Viu-me e
    meteu logo conversa:
  Então, Ulisses, veio aqui à civilização?
  Veio aqui à civilização? Que é isso de veio? Vieste à civilização! Fui
    chamado pelo capitão Alberto. Vim cá buscar o correio do pessoal e os vencimentos, para
    pagar à malta e aos GEs.
  E então? Que novidades há lá pelo destacamento? O forno do pão não voltou a
    cair? Como foi o Natal no meio do mato?
 Pus o médico ao corrente das últimas novidades. Disse-lhe que o forno continua
    impecável e que até já tinha pensado mandar construir um novo, com maior capacidade.
    Temos de alimentar o nosso pessoal e também o Quitari. Como o forno é pequeno, o
    responsável pelo pão tem de estar sempre a fazer fornadas. Com um forno maior, terá
    maior rendimento com menos trabalho.
 Como não podia deixar de ser, falei do novo habitante do destacamento, trazido da sanzala
    por um furriel.
  Vê lá em que te metes!
  Ah! Estamos a fazer progressos. Vê lá!
  Toma cuidado com as pretas, não vás arranjar alguma doença venérea.
  Quem? Eu? A rapariga é simpática, mas não é para mim.
  Porquê? Não gostas de mulheres?
  Claro que gosto! Mas não sou nenhum animal! Para ter relações com uma mulher, é
    preciso ter confiança nela e, sobretudo, gostar dela. Relações com qualquer mulher,
    isso é para os soldados, que são autênticos animais, que não podem ver um rabo de
    saias.
  Essa conversa já eu ouvi algumas vezes, lá no Porto. Quando as mulheres querem,
    todos os homens lhes caem na rede. São autênticas Circes!
  Isso é piada ao meu nome? Estou a ver que temos aqui um médico com bons
    conhecimentos de literatura clássica! Mas mesmo que isso viesse a acontecer-me, usaria as
    medidas de protecção que estou permanentemente a lembrar ao meu pessoal.
  O melhor é despacharmo-nos.  diz o médico, olhando para o relógio. Se
    ficamos aqui na conversa, ficamos sem almoço.
 À mesa, estavam o capitão e os dois alferes que permanecem em Quimbele. Apenas faltava
    ocupar dois lugares: o do médico e o meu.
 A refeição decorreu animada. As conversas variavam de tema com a mesma facilidade e ao
    mesmo ritmo que íamos metendo as garfadas. Como dois elementos eram do Porto e um
    terceiro lá tinha estudado, frequentemente surgiram evocações dos tempos passados na
    invicta cidade. Em breve, estávamos no Briosa a tomar o café e a disputar ao póquer o
    pagamento da despesa. O tempo passou célere. Quando demos por ela, estava a viatura à
    minha espera para regressarmos ao Alto Zaza.
  Estamos prontos para partir, alferes.
  Está tudo em ordem? Não se esqueceram do correio?
  Alguém se ia esquecer do correio, alferes? Está tudo pronto. Podemos partir.
  Vamos lá.
 Entrei na viatura. Tomei o meu lugar, ao lado do condutor, e dei-lhe as ordens:
  Dá a volta e passa pela messe de oficiais. Tenho de ir buscar a arma e as
    cartucheiras.
 Voltei-me para trás e perguntei aos soldados:
  Então, pessoal, a suecada esteve animada?
  Não foi sueca, alferes. Estivemos a jogar ao dominó.
  O dominó? Quando espreitei para dentro do café, a diferença da luz não deu para
    ver o que era. Apenas deu para perceber que eram os meus soldados que estavam ali a jogar.
    Mais nada!
 Não vou descer a pormenores sem interesse. Chegámos ao destacamento já de noite.
    Distribuiu-se o correio. Jantou-se. Dispuseram-se as sentinelas nos postos e chegámos ao
    domingo, véspera de Ano Novo.
 |