Reflexão sobre o método usado na correspondência |
Alto
Zaza, 6 de Janeiro de 1973
Lembram-se de uma longa carta, que vos escrevi no ano passado, constituída por uma vasta colecção de aerogramas? Não deve ser fácil a resposta a esta questão, porque quase toda a minha correspondência é constituída por vastas colecções de aerogramas. Logo, a maneira como iniciei esta conversa não terá sido a melhor. Usemos outra estratégia, para dar o pontapé de saída. Lembram-se de uma vasta colecção de aerogramas em que dizia que a data inicial, que indiquei na primeira linha, vos iria causar confusão, por não estar de acordo com o dia em que estava a começar a escrita? Não sei se o procedimento será o mais correcto ou não. Também não estou muito preocupado com isso. Neste preciso instante, em que acabo de olhar para o meu relógio, comprado em Mafra durante o período da recruta, são onze horas da manhã do dia 1 de Janeiro de 1973. A data que será colocada na primeira linha irá corresponder à do dia em que encerrar esta nova colecção de aerogramas. Já sei o que estão a pensar neste momento. Está o pai a querer dizer-me que era mais lógico indicar no começo a data do dia em que me encontro, escrever o aerograma e, no final, fechá-lo com os formulários habituais de encerramento da correspondência. O seu raciocínio está correcto, mas não tem qualquer validade neste momento. Estaria correcto se não me encontrasse no meio do mato. Se estivesse na cidade, acabaria a carta ou o aerograma e metê-lo-ia no mesmo dia no correio. E, em cada dia que escrevesse, seguiria para aí a correspondência. Está tudo muito bem, mas, aqui no mato, este procedimento lógico não tem qualquer interesse. É claro que poderia considerar o saco em que metemos a correspondência como um marco do correio. Escrevia dois ou três aerogramas, fechava-os e ia logo metê-los no saco. Mas este procedimento acabaria por ser prejudicial para mim, além de que não adiantaria nada. Acabavam por receber aí todos os aerogramas ao mesmo tempo. Acabavam por ter de os ordenar cronologicamente, correndo o risco de trocar a ordem. E daí, talvez n o, se eu adoptasse o sistema de numerar sequencialmente toda a correspondência. À semelhança do que acontece com a correspondência oficial, em que cada documento tem um número de registo, também aqui poderia adoptar o mesmo procedimento. Numa folha de papel quadriculado, podia fazer uma listagem até mil. Depois, ia atribuindo, a cada aerograma, um número de registo, que cortava na folha quadriculada, para evitar enganos. A ideia que acabo de esboçar parece ser boa, mas também não me agrada totalmente. Se fecho os aerogramas, depois não poderei relê-los, caso me esqueça de alguma coisa, ou efectuar alguns aditamentos. Está dito, isto é, parece-me que vou utilizar o mesmo procedimento da outra vez. Vou coleccionando os aerogramas. Quando chegar ao fim, indico a data correspondente ao dia em que fecharei a colecção para a meter no saco da correspondência. Está, agora, devidamente explicado o desfasamento entre a data que irão encontrar, no momento de iniciarem a leitura, e aquele em que me encontro a escrever. Tal como disse no início, já não conversava convosco desde o ano passado. Já estou no novo ano há onze horas e quinze minutos. É segunda feira, dia de Ano Novo, dia feriado, aí, na Metrópole; um dia rigorosamente igual a tantos outros, aqui, no meio do mato. Tenho, neste momento, imensas coisas para vos transmitir. Elas são tantas, as coisas que tenho para vos dizer, que não sei bem por onde começar. Tenho três telegramas a que deveria dar já resposta. Tenho aerogramas recebidos também no dia 30 de Dezembro e que, à semelhança dos telegramas, apresentam a data de 23 desse mês. Tenho o relato dos acontecimentos dos últimos dias, que não são poucos, especialmente os provocados por uma Rosa negra, que um furriel teve a triste ideia de trazer para aqui, no dia em que foram à procura de uma espingarda perdida. Tenho a garganta da caneta seca e a pedir uma bebida gelada. Até a esferográfica começa a querer falhar e a pedir-me uma pausa refrescante. Deve ser efeito da carga de água que começou há pouco a desabar sobre nós, e que faz uma barulheira ensurdecedora sobre as chapas de zinco. Acabo de ser abanado pela deslocação do ar, provocada por uma faísca, que deve ter caído aqui perto. Até a esfera da caneta ficou pálida, com o susto que levou. Está visto! Vou interromper a escrita e apreciar o espectáculo da natureza em fúria, na companhia de uma bebida refrescante. A atmosfera está pesada e a chuva não diminui a minha sede, antes a aviva. Depois do espectáculo da trovoada e a seguir ao almoço, se não surgirem imprevistos ou as deslocações de ar me não mudarem o cata-vento das ideias, retomo esta conversa e ponho a escrita em dia. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Só agora, após o ritual da bica a seguir ao jantar e uma partida de póquer de dados com os furriéis, retomo a escrita. São dez horas da noite. Estou no meu gabinete, sentado à secretária, iluminado pela luz forte e clara do petromax, que torna o amarelo dos aerogramas mais vivo e claro, quase esbranquiçado. Acabo de ler os três aerogramas já preenchidos com letra miudinha e compacta, perfeitamente horizontal, graças à folha quadriculada que coloco por baixo. Como, de há uns tempos para cá, adoptei, como medida de segurança, a sua duplicação a químico, possuo neste momento seis folhas escritas. O original corresponde aos aerogramas que irão receber. O duplicado vai engrossar o meu arquivo. Assim, tenho a possibilidade de rever as palavras escritas. É um processo mais cansativo, que me obriga a carregar um pouco na esferográfica e a ter químicos sempre em bom estado. Mas vai ser útil. Só lamento não ter adoptado este procedimento desde o primeiro dia em que comecei o relato da permanência em Angola. Como a memória é demasiado volátil, corro o risco de vos massacrar com a leitura de ideias repetidas. Por exemplo, estou agora mesmo a lembrar-me de uma hesitação que tive há dias, quando referi uma interrupção na escrita provocada pelo convite dos meus soldados para ir com eles ao rio. Voltei a falar das minhas banhocas refrescantes no local em que nos abastecemos de água. No final, fiquei com a sensação de que me estava a repetir. Folheei a colecção de aerogramas duplicados, que já avoluma o meu arquivo, mas não encontrei nada. Vou agora entrar na resposta à correspondência. Vou passar a dar cumprimento ao prometido. Disse-vos, num dos primeiros aerogramas ou carta (já não me lembro se era carta ou aerograma!) que vos daria conhecimento de tudo quanto me sucedesse, pensasse ou sentisse. Se não foram estas as palavras, era esta a ideia. E vou cumprir a promessa, começando por vos dar conhecimento dos telegramas recebidos. O primeiro em que acabo de pegar foi expedido de Oliveira de Azeméis. É da minha prima, que, além dos parabéns, me deseja que ultrapasse os cem anos. Estou levemente esperançado que isso aconteça e que possa manter-me cá para semente. Quando estiverem com ela, digam-lhe que faço tenção de concretizar esses votos de longevidade e que agradeço a lembrança. Já agora, peço que me digam, em próxima correspondência vossa, os dias em que as minhas primas fazem anos, para registo na agenda. O segundo telegrama, que agora releio, é dos pais. Tem a mesma data do correio e é também de felicitações pelo meu aniversário. Como devem saber, se a minha última correspondência já chegou às vossas mãos, foi magnificamente festejado em Sanza Pombo! O terceiro telegrama, agora aberto debaixo dos meus olhos, deixa-me completamente espantado, siderado, fulminado, sem palavras! Como é isto possível?! Terá alguma descarga de Zeus fulminado o saco do correio? Dizem-me que estão preocupados por não terem recebido notícias minhas... A surpresa é tanto maior quanto acontece que, nos últimos tempos, a quantidade de aerogramas que escrevo é bastante elevada. Será que a correspondência se extraviou? Será que a correspondência sofre desvios e é lida antes de vos chegar às mãos, atrasando a chegada ao destinatário? Isto não me surpreenderia, num país em que impera a lei da rolha e a liberdade continua a ser um ideal difícil de alcançar. Será da época em que nos encontramos? Certamente, a hipótese mais provável é a última que acabo de formular. Estamos na época natalícia. É uma altura em que toda a gente se lembra dos familiares e amigos. Acaso já imaginaram os milhões de aerogramas que devem ter sido escritos ao mesmo tempo por todos os militares portugueses, espalhados por Angola, Moçambique e Guiné? Já imaginaram a quantidade de famílias ansiosas que terão escrito para os familiares, desterrados por vários recantos deste vasto continente, onde temos de penitenciar por dois longos anos as faltas que não cometemos? Estou mesmo a imaginar os milhões de aerogramas que devem ter chovido nos Serviços Postais Militares de Angola, Moçambique, Guiné e Metrópole. Estou mesmo a imaginar os meus camaradas sufocados sob montes com milhares de aerogramas, que têm de separar e meter em sacos postais para os diferentes destinos. Mesmo que fossem octópodes ou miriápodes, não deverá ser tarefa fácil a separação de toda a correspondência. Quando me lembro que, todos os dias, os meus soldados me vêm entregar dúzias de aerogramas, para eu meter nos sacos e lhos levar para Quimbele, não é difícil imaginar a afluência de aerogramas aos centros de distribuição dos Serviços Postais Militares. Se ainda não receberam a correspondência dos últimos dias, lá para meio da semana, passada a época natalícia, deverão começar a poder ler as colecções de aerogramas que vos escrevi. Creio, e espero estar certo, é só uma questão de tempo. Em breve, terão notícias minhas. Não creio que alguém esteja interessado em subtrair-nos a correspondência. Isso seria o cúmulo! Já basta estarmos para aqui desterrados, a dar o corpo ao manifesto e a defender aquilo que não nos pertence. Se nos fizessem isso, os responsáveis só mereceriam um castigo: não o linchamento, que isso era coisa rápida, mas serem enterrados vivos até ao pescoço numa zona onde houvesse muitas formigas, como aquelas que nos espetam de tal modo as mandíbulas na carne, que acabam por ficar sem elas e sem cabeça, quando procuramos arrancá-las do nosso corpo. Estou a ver a cara da mãe, arrepiada com esta imagem das formigas a cravarem as mandíbulas no corpo de uma pessoa. Mas será possível uma coisa destas? Claro que sim! Já tive a desdita de passar por esta experiência. Já tive o azar, no meio do mato, de pisar um carreiro por onde passavam formigas deste género. Foi uma sensação diabólica! Penetravam-nos por baixo do camuflado, trepavam pelas pernas e mandavam-nos ferroadas sem pedirem licença a ninguém! Quando isto nos sucedeu, era ver quem se despia com a maior velocidade, para procurar livrar-se das mandíbulas destas safadas! É bicho demoníaco, que não receia obstáculos! Só mesmo o fogo as consegue parar. Não há nenhum animal na selva que não fuja do local por onde elas passam. Por isso, era suplício que não desejava a ninguém, nem ao meu maior inimigo, ainda que me tivesse subtraído toda a correspondência! Mas há gente capaz de fazer isto e muito pior. Já me contaram alguns nativos atitudes não menos agradáveis, tidas na região por elementos da PIDE. Não sei se é verdade ou não o que me disseram. Mas também não tenho motivos para duvidar. Quando as coisas são inventadas, é fácil de perceber. A maneira como os nativos falam comigo parece-me sincera e exacta. E a verdade é que, embora o papel destes senhores possa ser importante, a verdade é que há qualquer coisa dentro de mim que faz com que não sinta a menor simpatia por eles. A sorte que eu tenho é estar para aqui isolado, nesta vasta região do Alto Zaza, onde, além de mim e das tropas sob a minha responsabilidade, apenas existem os GEs e aldeias nativas, onde sou bem recebido e com quem me entendo perfeitamente. Gosto da gente nativa que me rodeia e eles sabem-no perfeitamente. Todas as manhãs, tenho aqui pessoal junto ao gabinete do enfermeiro. Procuram ajuda. E procuramos nós dar-lhes o máximo de apoio que nos é possível. Às vezes, tenho pena de não perceber nada de medicina, para poder ser-lhes mais útil. Tenho já um ficheiro com verbetes, onde indico as doenças que vão surgindo: as características e os sintomas e o tratamento adequado. Tenho, por vezes, de consultar os manuais do enfermeiro. E, a partir de agora, que já temos médico na Companhia, quando surgirem problemas mais graves, tenho a possibilidade de contactar o especialista pela rádio e de lhe expor os sintomas. Observo os doentes. Relato ao médico aquilo que me é dado observar. E ele poderá efectuar um diagnóstico à distância. Entretanto, vou registando, nos meus verbetes, os sintomas e o tratamento, com os respectivos resultados. Aumento assim as minhas bases de informação para resolução de problemas futuros. Acabei de reler o aerograma que a mãe me escreveu e que tem a data de 23 de Dezembro. Pergunta-me como passei os meus anos. Pergunta-me se tenho recebido correspondência de familiares e amigos. Pergunta-me se já escrevi para Águeda, ao primo Adolfo. Pergunta-me se tenho recebido os seus aerogramas. Pergunta-me se recebi as suas encomendas e se passo fome no meio do mato. Pergunta-me... Tomei nota de todas as suas perguntas, que são muitas e variadas e à maioria das quais já dei resposta em aerogramas anteriores. E pergunto-me eu agora a mim mesmo: será que todas as mães fazem tantas perguntas como estas aos filhos que se encontram desterrados a prestar o serviço militar neste continente africano? A resposta parece óbvia! Tão óbvia, que nem precisa de resposta! E como as respostas às suas questões já eu as dei ainda antes de ter recebido as perguntas, vou-me limitar apenas a uma. Se escreverem ao primo Adolfo, digam-lhe que já lhe escrevi dois aerogramas e que tenciono voltar a escrever-lhe em breve. Não me lembra se, nos meus relatos, vos efectuei a transcrição desses aerogramas. Também não importa. Digam-lhe que gostaria de saber se ele já recebeu algum dos meus aerogramas, pois, até hoje, nunca dele recebi a mais pequena notícia. Espero que ele não me volte a pregar nenhuma partida! Nunca vi nem conheci nenhum advogado tão falador, tão rico e tão forreta como ele! Lembro-me muitas vezes das promessas que me fazia, quando eu era miúdo e vivíamos em Espinho. E houve uma que me ficará gravada para sempre, enquanto for vivo. Certo dia, em Espinho, numa altura de Verão, apareceu-nos lá em casa. Veio deslumbrar-nos com um maravilhoso espadalhão da marca Studbaker, que acabara de comprar e cuja frente aerodinâmica parecia um avião. Levou-nos a passear até à Curia, tendo passado a tarde e a noite connosco. Quando parou o carro novo na rua 19, em frente à porta da nossa casa, perguntou-me se, quando fosse homem, também gostaria de ter um carro como aquele. E acrescentou: Ainda és muito pequeno para pensar em carros destes! Mas uma bicicleta eras capaz de gostar de ter. Gostavas de ter uma bicicleta? Devo ter feito um largo sorriso de satisfação, porque nessa mesma altura me prometeu que, na próxima vez, me traria uma bicicleta para o meu tamanho e me ensinaria a andar. Até hoje, ainda estou à espera do pagamento da promessa! De modo que, se nunca chegar a receber carta dele, não me admiro mesmo nada. O Adolfo e a Cleocínia são duas pessoas muito particulares, que nadam em dinheiro e opulência, mas a quem faltou a coisa mais importante da vida: os filhos. Quando morrerem, morrerão definitivamente! Além de uma fortuna fabulosa, que deverá ir parar ao Estado, não deixarão absolutamente mais nada! Que adianta ser um grande advogado em Águeda, Albergaria e Aveiro? Sem filhos, uma vez mortos, cairão no esquecimento! Deles ficará apenas, enquanto eu for vivo, a lembrança dos poucos momentos em que convivi com eles, especialmente durante o último ano antes de embarcar para Angola, o único em que conviveram regularmente connosco, visitando-nos quase todos os fins de semana em Coimbra e durante o meu período de recruta e especialidade em Mafra. E também aquela promessa de uma bicicleta feita a um miúdo, que nunca chegou a cumprir-se! Apesar disto, não sei bem porquê, senti sempre uma certa simpatia por este casal solitário e infeliz, para quem uma imensa fortuna nunca conseguiu dar a verdadeira felicidade. Com tantas crianças abandonadas e órfãs, será que nunca lhes passou pela cabeça a adopção de alguma a quem pudessem dar um pouco de afecto e substituir o filho biológico que nunca puderam ter? Nunca gostaria de estar no lugar deles! Mesmo que, daqui por dois anos, tenha a sorte de me ver livre da tropa, sem mutilações físicas e psicológicas, mas com o azar de, uma vez casado, nunca vir a ter filhos, de certeza que não me será difícil encontrar uma criança para adoptar, a quem possa transmitir o meu afecto e uma fracção, ainda que não biológica, da minha própria vida... Deixemo-nos de especulações hipotéticas e «futurologistas». Sejamos realistas. Se estiverem com os primos ou se forem a Águeda, digam-lhes que em breve deverão ter notícias minhas. Não digo quando. Apenas em breve. E digo «em breve», porque, embora tencione voltar a escrever-lhes, não posso dizer rigorosamente quando o farei. Aqui, felizmente, há sempre muitos problemas para resolver. Além do mais, é preciso encontrar predisposição para essas escritas. Tirando a correspondência regular que mantenho com os pais, que me dá imenso prazer, falta muitas vezes a disposição para outras escritas. Talvez seja devido ao clima. O excesso de calor torna-nos moles, sem acção para nada. E, mesmo assim, sou um felizardo. O clima do Alto Zaza não é dos piores. Assemelha-se, como já tive ocasião de vos dizer, ao clima da metrópole em pleno Verão, embora sem as temperaturas excessivas de Coimbra em pleno Estio, por volta das treze horas. Pior é o clima de Quimbele. É mais abafado e sujeito a violentas trovoadas. Alguma vantagem o Alto Zaza haveria de ter por estar situado numa zona planáltica, a razoável altitude. Vou terminar a conversa. Já é tarde. Vou desligar o petromax. Vou fazer uma ronda ao quartel. Vou verificar se está tudo em segurança. E enfio-me depois entre lençóis. Amanhã também é dia. Como não deve haver nada para fazer, retomo o convívio na vossa companhia.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Estive todo o dia de ontem sem pegar na caneta. Estou a mentir: peguei na caneta para decifrar e cifrar mensagens, durante a parte da manhã, mas apenas isto. Quando digo que não peguei na caneta, quero referir-me a estes momentos de conversa, na vossa companhia. Durante a manhã, dei um passeio pela zona envolvente do destacamento. Efectuei um registo na minha agenda. Na metade referente ao dia 3 de Janeiro de 1973, quarta feira, escrevi: «Começaram os homens a trabalhar no posto.» O que é que isto quer dizer? Não o vou dizer, por enquanto. Só que significa que, dentro de meses, passará a existir, a cerca de duzentos metros do destacamento, entre este e a zona onde vamos à água, um edifício do posto administrativo. Como, por enquanto, estou na fase de resposta à correspondência recebida, voltaremos a isto (se não me esquecer!) quando chegar a vez dos relatos dos acontecimentos dos últimos dias, desde o Natal até ao presente. Hoje mesmo recebi, trazido pelo futuro administrador do posto, cuja construção foi hoje iniciada, um saco com correio para toda a malta. Também eu recebi dois aerogramas vossos, datados de 27 e 28 de Dezembro, uma carta do meu antigo professor de Latim, o Doutor Nunes de Figueiredo, um telegrama da prima Ângela, expedido da Batalha, e uma carta do meu professor de Linguística Portuguesa, o Professor Paiva Boléo, que me orientou a tese de dissertação e com quem trabalhei, durante um ano, no gabinete de Linguística Portuguesa, se a memória não me falha, no último piso das Letras, em Coimbra. Com tanta correspondência ao mesmo tempo, nem sei bem por onde começar. Sinceramente, não sei o que me terá dado maior prazer. Estou sempre à espera de receber aerogramas dos pais, que leio com grande satisfação. Mas receber, aqui, no meio da selva, correspondência de dois antigos professores, é, sem dúvida, uma surpresa insólita e deveras agradável! Vou passar a transcrever-vos algumas passagens da correspondência dos meus antigos professores. Vou começar por aquele que tive o prazer de conhecer há mais tempo, ainda no tempo do liceu: o Doutor Nunes de Figueiredo.
"Meu caro Ulisses de Almeida Ribeiro, Longe estava de supor que já te encontravas tão longe! Só desejo, meu querido Amigo, que tudo te corra bem, que o novo ano te traga as maiores bênçãos e que Deus te acompanhe até que possas dizer «Missão cumprida» . Fiquei satisfeito por receber notícias tuas, por te saber bem disposto. Ainda não passaram oito dias sobre a conversa com o Senhor Barbas, no Café Santa Cruz, em que se perguntava onde estarias, pois não mais te tinha visto depois do encontro com a mão engessada. Já sabes que aqui estarei sempre ao teu dispor. Bem hajas por me teres lembrado. Um abraço do muito amigo, ..."
O Professor Paiva Boléo mandou-me um cartão a retribuir as Boas Festas. Todavia, nas costas do cartão, foi escrevendo, numa letra miudinha e bem alinhada, como quem diz, se te vires atrapalhado recorre às pessoas que te indico. Não vou aqui transcrever o texto na íntegra, mas apenas algumas palavras, para ficarem com uma ideia do conteúdo:
« ... Em S. Salvador, no Norte de Angola, vive a minha nora, ... (segue-se a indicação completa), casada com meu filho P...., que está a fazer o serviço militar no mato... Em Luanda, vivem o primo de minha mulher, o Dr. ..., e dois filhos, assistentes na Universidade de Luanda. O primeiro mora na Rua ... , etc., etc., etc.»
Embora as transcrições aqui feitas não tenham nada de especial e tenham sido por mim truncadas, agradeço que não dêem os meus aerogramas a ler a ninguém. Sei bem como a mãe gosta de falar de mim às suas amigas, quando convive com elas no Café Arcádia. Os meus relatos não são para ser dados a conhecer a ninguém. É convosco que eu gosto de conviver, mesmo à distância, e a minha correspondência é exclusivamente para vós. Num dos aerogramas ocasionais, que vos escrevo à pressa e isolados desta colecção, para aproveitar correio imprevisto para Quimbele, caí na patetice de indicar a data de uma forma pouco usual, como se estivesse a enviar uma mensagem codificada. Verifico que já receberam esse aerograma e que ficaram intrigados com a referência no canto superior esquerdo, que me dizem não perceber. Foi uma vez sem exemplo e não voltará a repetir-se. Mas agora, uma vez que me fazem a pergunta no aerograma que acabo de receber, vou dar-vos a devida explicação. Nesse aerograma isolado, escrevi uma data idêntica à que passo a transcrever, usando o dia de hoje. Indiquei no topo do aerograma:
A.ZAZA, 03 15.00 A JAN 73 ZNB4UT
Isto que fiz não tem nada de especial. Foi apenas uma maneira diferente de indicar a origem da correspondência. A.ZAZA, como é fácil de ver, indica o nome da localidade onde me encontro, ou seja, o aerograma foi escrito na região onde fica o meu destacamento, de que é o centro. O nome, por extenso, é Alto Zaza. Os dois primeiros números, a seguir à vírgula, referem-se ao dia. Estou neste preciso instante a escrever-vos no dia 3 de Janeiro. Os quatro números a seguir correspondem à hora a que retomei a escrita. Comecei estas linhas eram 15 horas em ponto. O A maiúsculo diz respeito ao fuso horário em que me encontro. JAN. é a abreviatura de Janeiro e 73 corresponde ao ano actual de 1973. ZNB4UT é uma forma de autenticação que se utiliza em documentos de responsabilidade, para se saber se são ou não da minha autoria. Deste modo, é possível controlar eventuais falsificações. Como é que isto funciona e como é que eu acho os indicativos? Isso é segredo. Se aqui o revelasse, punha em risco o sistema de codificação e a segurança das transmissões de documentos. Podem estar descansados que isto não voltará mais a acontecer. Foi um deslize ocasional, decorrente do hábito de codificação e descodificação permanente de mensagens que me estão sempre a chegar. Na minha correspondência para vós, encontrarão apenas as formas tradicionais. Da leitura do aerograma, fiquei a saber que, pela primeira vez, em Portugal, os professores e restantes funcionários públicos passaram a receber o décimo terceiro mês e que o pai estava satisfeito por isso lhe ter acontecido. E mais satisfeito fiquei eu, por também o cá ter recebido, pois foram mais seis contitos que vieram parar à minha carteira, aumentando os meus fundos pecuniários. Tenho, neste momento, depois de ter mandado para Luanda um vale postal para devolver o empréstimo do solicitador Rui Moreira, cerca de quinze mil escudos. Vai dar para pagar, na próxima ida a Quimbele, a totalidade do preço da máquina fotográfica. E ainda fico com bastante dinheiro. Tenciono, na primeira oportunidade, comprar um bom aparelho de rádio japonês e depositar o resto no banco, quando for a Sanza Pombo. Aqui, no meio do mato, não preciso de dinheiro. Não há onde o gastar e também não me faz falta para nada. Basta que tenha um mínimo comigo para pagar, de vez em quando, umas bebidas entre as refeições e dar a mesada ao meu lavadeiro, um rapazito de cor, que me lava, passa a ferro e cose a roupa. Este meu lavadeiro é um miúdo que trabalha na perfeição e a quem dou cem escudos todos os meses. É uma avultada quantia, se nos lembrarmos, por exemplo, que um GE ganha mensalmente seiscentos e cinquenta escudos. Já me disseram que pago demasiado ao miúdo... mas não me arrependo. Ele é perfeitíssimo no trabalho que faz. E sei que não estraga o dinheiro que lhe dou. Utiliza-o para comprar roupa para se vestir e amealha o que sobra. Trabalho bem feito merece pagamento equivalente! Verifico, pela leitura da parte do aerograma escrita pelo pai, que continua a bater na mesma tecla. Creio que já lhe falei o suficiente acerca da máquina fotográfica. Se ela não é o último grito da técnica e muito menos de tipo «reflex» , não significa que não seja boa. Já deve ter reparado na excelente qualidade das fotografias obtidas com ela. Depois de ter comprado este modelo, já três alferes da Companhia encomendaram modelos iguais. E agora, até um dos meus furriéis quer adquirir uma máquina igual à minha. Pergunta-me outra vez a mãe como é que passei o Natal. Na última colecção de aerogramas, com a data de 28 de Dezembro, poderá encontrar a resposta à pergunta. Vou só acrescentar-lhe um elemento novo, que creio não ter chegado a dizer. Na véspera de Natal, embora aqui não haja o frio e o ambiente daí, também as populações nativas festejam esta época. Creio que já fiz referência às batucadas com que as populações festejam o Natal, à volta da fogueira. No dia da consoada, por todas as povoações por onde passei, quando regressei ao Alto Zaza, após uma visita de cortesia a uma fazenda, só se viam fogueiras e ouviam batuques de tambores. Festejava-se, à maneira de cá, o Natal. Também na nossa mesa de consoada, como já disse, houve bolo-rei após uma excelente bacalhoada. Tínhamos uma mesa bem recheada. E quanto ao Ano Novo... Paciência! Vou agora pôr ponto final na escrita. Cumpri a primeira parte. Está dada a resposta à correspondência recebida. Vou dar uma volta pelo destacamento. Da próxima vez que pegar na caneta, será para actualizar o relato dos acontecimentos. E então ficarão a saber como foi o Ano Novo. |