| Resolução de problemas em Quimbele | 
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| Durante o nosso almoço, procurei saber como decorrera o resto da acção, após a minha evacuação, e pus o capitão a par das situações imprevistas, que necessitavam de medidas urgentes e inadiáveis. Após a minha
        ausência, devido ao adiantado da hora, o grupo pernoitou
        na antiga sanzala, onde fui evacuado. As etapas seguintes
        decorreram com mais facilidade. Além da zona ser menos
        acidentada que nos dois primeiros dias, aproveitaram os
        antigos trilhos, o que lhes facilitou a progressão.
        Quanto às fotografias com que pretendia documentar esta
        operação, infelizmente o alferes a quem confiei a
        máquina apenas utilizou as poucas imagens que restaram
        no rolo. Quando acabou, não sabia como tirá-lo da
        máquina e substituí-lo pelo de reserva. Por isso, tirou
        poucas fotografias. Ficou ele com o capitão, na sanzala
        onde pernoitaram na tarde da minha evacuação. São
        imagens que para mim não têm qualquer interesse, por
        não documentarem aspectos do decurso da operação.
        Agradeço-vos que mandem tirar as imagens em que eles
        estão em duplicado, para lhes oferecer. Em relação às situações
        imprevistas, pus o capitão a par de tudo. — Quando cheguei, hoje de manhã ,
        aqui ao destacamento, fui informado que o forno do pão
        tinha ruído. Por isso, não temos pão fresco e temos a máxima urgência em resolver este problema. — Como pensas resolver a situação? — Falei já com o velho Manel.
        É ele o construtor dos fornos na região. Terei de
        ir convosco a Quimbele, com uma secção, para
        adquirirmos o tijolo. Vamos precisar da Berliet 
        para o transporte. — E onde é que vão buscar o tijolo? — O velho Manel sabe onde é. Vai
        connosco e efectua a aquisição. Apenas é preciso
        que o meu capitão forneça a requisição respectiva. — E ele está disposto a isso? — Claro que sim! Já combinei com ele.
        Além disso, é uma oportunidade que também tem de
        passar uns momentos em Quimbele. Carregamos os tijolos,
        descansamos uma meia hora e regressamos ao Alto Zaza.
        Temos também de trazer reabastecimento e as peças
        necessárias para os mecânicos repararem ainda hoje as
        viaturas. — E onde é que vais buscar os
        acessórios e o reabastecimento? — Em Quimbele. Já
        lá está tudo o que é preciso. — Como é que sabes o que lá está? — No dia vinte e um, o Vieira foi
        chamado ao comandante de batalhão. Esteve em Sanza
        Pombo. Regressou no dia seguinte com o furriel Rodrigues
        e levou o reabastecimento e material necessário, que
        chegou a Sanza na coluna em que veio o médico da nossa
        Companhia. Veio hoje comigo no heli e seguirá daqui
        a pouco connosco para a sede da Companhia. — Muito me contas. Estás mais bem
        informado do que eu. Até pareces o comandante da
        companhia. — ironizou o capitão. — E ainda não disse tudo. —
        acrescentei, aproveitando a embalagem.— Ainda hoje
        é  preciso pôr as viaturas do Alto Zaza
        operacionais. Amanhã é véspera de Natal.
        Temos de levar comida ao pessoal da Camuanga. Senão,
        passam o Natal de barriga vazia. — Quantos homens vão a Quimbele? — Acho que uma secção chega.
        Distribuímos os meus homens pelas várias viaturas. Qual
        o furriel que vai comigo? Certamente que será um dos
        dois furriéis que ficaram no destacamento. — Pode ser o Teodoro. — respondeu o
        Ramalho. Mas se ele não quiser ir, vou eu. Como o Teodoro não se importava de ir
        a Quimbele, mandei-o ir escolher uma secção. Pouco depois do almoço, estávamos a
        caminho de Quimbele. Fui na Berliet em que ia o capitão.
        Sentei-me atrás, tendo ao meu lado o velho Manel. Como
        qualquer soldado, o velho Manel apenas se distingue dos
        meus homens por ser mais velho e não levar arma. Quanto
        ao resto, veste-se e comporta-se como qualquer soldado,
        não lhe faltando sequer o camuflado e a boina, com a
        insígnia da nossa Companhia. Apesar da idade, que
        já deve ir na casa dos sessenta ou mais, conserva
        ainda o espírito e a agilidade dos mais novos, apenas
        com um pouco de ferrugem nas dobradiças. A viagem até Quimbele fez-se com
        razoável rapidez. Céu de um azul forte, sem nuvens, e
        um calor bastante elevado, mas suportável,
        forneceram-nos uma picada enxuta e sem problemas. No edifício do comando, o capitão
        forneceu-me a requisição, que entreguei ao furriel para
        ir com o velho Manel buscar o tijolo. Para transportar
        tudo, tijolos, pessoal, peças para as viaturas e
        reabastecimento, o capitão cedeu-me a Berliet com o
        respectivo condutor e despachou-me dali para fora: — Desanda daqui. Dá as tuas
        ordens ao pessoal e aproveita bem os poucos minutos em
        Quimbele. Se não nos virmos antes, tem um bom Natal no
        destacamento. Agradeci-lhe e retribui os votos de
        boas festas e fui ter com o meu pessoal. — Teodoro, depois de irem carregar o
        tijolo com o velho Manel, vão à cantina e
        efectuem  o carregamento do reabastecimento. Não se
        esqueçam que temos também de reabastecer os
        destacamentos que dependem de nós. Não se esqueçam
        também das peças para reparação das viaturas. Depois
        de tudo carregado, dê uma folga de trinta minutos
        ao pessoal. Marcamos encontro para partida junto ao
        Briosa Bar. Veja se se despacham, que temos de chegar ao
        destacamento a horas do jantar. É verdade, não se
        esqueçam também de ver se há correio. Mande um
        soldado procurar o Rodrigues. Ele que se prepare, que vai
        hoje connosco. Durante os minutos seguintes, passei
        pela messe de oficiais. Fui ver se o médico já se tinha
        instalado. Durante o tempo em que estive no edifício do
        comando e dei as ordens ao pessoal, já ele se tinha
        instalado num quarto e tomado um duche. Convidei-o a ir
        dar uma volta rápida por Quimbele, para lhe apresentar o
        pessoal e mostrar o novo local de trabalho. Passámos
        pela enfermaria e gabinete médico, na curva ao fundo do
        Briosa Bar e em frente a outro restaurante e depois fomos
        até  ao café. No Briosa Bar, onde fui tomar uma bica,
        encontrei o furriel Rodrigues. Estava a jogar o
        póquer  com outros camaradas. Quis que me juntasse
        a eles. Recusei o convite. Apresentei-lhes o médico. — Agradeço, mas não estou
        interessado no jogo. Vou aproveitar os poucos minutos
        aqui para ir fazer uma compra importante para o
        destacamento. — O quê, alferes? — perguntaram-me
        os furriéis, cheios de curiosidade. — É segredo. Logo à noite
        ou talvez amanhã, será a surpresa para festejarmos
        o Natal. Deixe-se estar, Rodrigues, não se levante.
        Continue a jogar. Não precisa de ir comigo. Vou
        só ao estabelecimento onde comprei a máquina
        fotográfica e volto já. Minutos depois, entrava no
        estabelecimento, onde fui calorosamente recebido: — Então, alferes, temo-lo por
        cá durante muito tempo? — Infelizmente, não.
        É só de passagem. — Em que posso servi-lo? Não
        é por causa da máquina... — Não! De modo nenhum. Continua operacional. O que aqui me traz é outra coisa. Necessito de uma máquina que faça bom café e que seja fácil de transportar na mochila, mesmo durante as operações na mata. — Tenho aqui vários modelos
        italianos. Este — e tirou da montra uma máquina em
        alumínio, com um corpo hexagonal e um feitio que me fez
        lembrar uma ampulheta — dá para fazer seis cafés
        de uma vez. Na parte inferior, mete-se a água até
        à altura da válvula de segurança.  Desatarrachou a metade inferior e
        mostrou-me a válvula na parte superior do recipiente,
        ligeiramente abaixo da zona onde atarracha a parte
        superior. E continuou a explicação: « Nesta peça, uma
        espécie de funil, mete-se o café moído e calca-se
        levemente, antes de se atarrachar firmemente a metade
        superior. Ao fim de alguns minutos ao lume, a água ferve
        e passa para a metade superior, fazendo um
        café delicioso. Tenho uma máquina destas em casa.
        Quando tenho amigos e não queremos ir ao café, tira
        seis chávenas impecáveis. — Este modelo é muito grande e pesado
        para andar numa mochila. — Então tem aqui esta máquina. É
        uma máquina levezinha, que faz rapidamente dois cafés
        de cada vez. — É isto mesmo que eu preciso.
        Dá para nos entretermos a fazer café a seguir
        às refeições e para levar para as operações na mata.
        Embrulhe-ma bem, de maneira que não se possa saber o que
        é. Vai ser a minha surpresa de Natal no destacamento.
        Preciso também de café  já moído de boa
        qualidade. — Também cá temos. E este
        pacote de um quilo vai ser a minha oferta. É o
        melhor que tenho no estabelecimento e é a minha prenda
        de Natal para o alferes, com votos de boas festas para
        todos no destacamento. Feitos os dois embrulhos e paga a
        máquina, despedi-me do simpático comerciante: — Um bom Natal cá em Quimbele. E como
        só devemos voltar a ver-nos para o próximo ano,
        aproveito já para lhe desejar um bom ano de 1973. — Da próxima vez que o alferes cá
        venha, quando for a sua vez de ficar em Quimbele, quero
        que venha aqui almoçar a minha casa. Quero
        apresentar-lhe a minha mulher e a minha filha. Regressei ao café. O jogo de póquer
        dos furriéis tinha acabado. Noutra mesa, ao lado,
        estavam o capitão, o Vieira, o Valério e o médico. — Senta-te aqui. — diz o capitão.
        Ainda tens tempo de beber um fino e fazer um póquer
        connosco. Estamos a ver que já foste às compras. O
        que é que aí trazes? — É segredo. Top Secret.
        Só pode ser aberto no destacamento. — Vá lá. Deixa-te de segredos e
        senta-te. Mostra lá o que compraste. — Não posso. Ou antes, tomar um fino
        ainda posso. Mas mais nada... Melhor pensando, daqui a
        pouco deve começar a chegar o pessoal e tenho de
        regressar ao Alto Zaza. Vai ser um resto de dia muito
        trabalhoso. Se me dão licença, preciso de falar ao
        Rodrigues e aos meus homens. Estão já ali alguns
        soldados, na esplanada. Para o caso de não ter tempo do
        fino e não estarem aqui quando partir, aproveito já
        para me despedir e vos desejar um feliz Natal, mesmo sem
        frio e neve e longe da família. Para adiantar serviço, aconselhei o
        Rodrigues a ir buscar as coisas dele à messe de
        sargentos e voltar ao bar. Pouco depois, chegava a
        Berliet carregada de tijolos, arrumados nos espaços por
        baixo do banco central colocado na caixa da viatura.
        Entre o banco e o taipal lateral, estava o
        reabastecimento e as peças para as viaturas. A um canto,
        diversas caixas quadradas, com as indicações em letras
        destacadas «OFERTA DO MOVIMENTO NACIONAL FEMININO para
        os soldados de Portugal», intrigaram-me e despertaram a
        minha curiosidade. — Que caixas são aquelas, Teodoro? — São oferta do Movimento Nacional
        Feminino para a passagem do Natal da tropa. Tenho aqui as
        guias, que o meu alferes vai ter de conferir e assinar,
        para confirmar a entrega e distribuição. — Isso estou eu a ver. Ainda sei ler o
        que está escrito na caixa. Mas o que é que
        contêm? — Isso só se sabe depois de
        abrirmos, alferes. Pelo feitio e tamanho, devem ser
        bolos. Se o alferes quiser, abre-se já uma. — Não. O que eu quero é regressar o
        mais depressa possível ao destacamento. Fico mais
        tranquilo depois de me ver em segurança com toda a
        malta. Numa tarde, ir a seguir ao almoço a
        Quimbele e regressar carregado de tijolos e
        abastecimentos ao Alto Zaza, em segurança e ainda a
        tempo do jantar, é proeza não muito fácil de
        conseguir. Mas, talvez por estarmos em vésperas de
        Natal, a verdade é que tudo correu com rara rapidez e na
        mais perfeita segurança, apesar de metade do percurso
        já ter sido com noite cerrada. Ainda antes do jantar, foi descarregado o reabastecimento na cantina e efectuada a distribuição do correio. Ninguém queria ir jantar sem antes receber o melhor aperitivo para a refeição: o correio e as encomendas mandadas pelos familiares. As palavras recebidas, como creio já antes vos ter dito, ajudam-nos a matar as saudades da terra; e as encomendas tornam mais doces as amarguras do desterro. Eu próprio, tive o grande prazer de receber uma série de aerogramas de amigos e camaradas, bem como a vossa correspondência e as encomendas que a mãe me mandou. Lá mais para diante, o meu relato dos acontecimentos será substituído pelas cópias dos aerogramas de resposta a todos os amigos. Espero não me esquecer de esclarecer as dúvidas e questões formuladas pelo pai, quer quanto à máquina que comprei, quer quanto à situação do destacamento relativamente a Quimbele. | 
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