Tratamento sem esforço |
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Eram dezassete horas quando chegou um helicóptero. Às dezoito estava já em Sanza Pombo, no gabinete do médico da CCS: Vamos lá ver, então, o que é que se passa. Comece pelo furriel pedi eu. Tem passado um verdadeiro tormento por causa das rações de combate. De que é que se queixa? Pensamos que se trata de uma intoxicação alimentar, provocada por uma ração de combate. Deixe falar o furriel. Ele deve saber melhor que ninguém. Dói-me bastante o estômago e ando de dez em dez minutos de calças na mão. Estava frequentemente a provocar paragens no avanço do grupo. E o alferes, o que é que tem? Desmaiei uma vez e sentia frequentemente dores no lado esquerdo do peito e falta de ar, que me impediram de acompanhar a marcha do grupo. Por minha causa o grupo foi obrigado a fazer pequenas interrupções da marcha. Tinha de parar durante alguns minutos para começar a respirar normalmente, sem dificuldade. E o pulso? Tem aí uma grande ligadura. Ah, isto é outra chatice! Dei uma queda em Tomar, pouco tempo antes de embarcar para Angola, e fracturei o pulso. Andei bastante tempo com o braço engessado e depois passei a ir semanas a fio para a fisioterapia no Hospital Militar de Lisboa, para recuperar o movimento do pulso e da mão. Hoje, ao subir um monte, desequilibrei-me e, para não cair em cima do soldado que me empurrava para vencer um obstáculo, tentei segurar-me com a mão direita, o que veio agravar a situação. Senti uma forte dor e o pulso começou a inchar. O enfermeiro aliviou-me a dor com pomada balsâmica. Há dias, numa pequena operação que fiz na área envolvente do destacamento que comando, tive o azar de cair mais uma vez em cima do braço direito. Esta é uma zona azarada. Tudo o que me acontece implica sempre com o meu pulso direito. Vamos lá por partes. Uma coisa de cada vez. Tire o camuflado para o auscultar. Depois de uma auscultação minuciosa, o médico concluiu que os pulmões e o coração estavam impecáveis, apesar do esforço. Segundo ele, a falta de ar deveria ser uma questão nervosa, que provocaria uma descoordenação na respiração. Quanto ao pulso, que continuava bastante inchado, depois de tactear toda a zona envolvente, afirmou que tudo parecia estar no sítio. Nada está partido, apenas um ligeiro traumatismo, que provocou a dor e o inchaço. Como solução, receitava uns calmantes e fortificantes. E concluiu a receita, acrescentando: Aproveitem a curta estadia em Sanza Pombo. Distraiam-se o mais que puderem. Vão a um bom restaurante, comam uns bons bifes suculentos. Têm, por exemplo, o restaurante do Clube de Sanza, onde se come bem e barato. É o melhor tratamento para uma dieta forçada de dois dias na mata. E para si, furriel, vai tomar estas cápsulas. Pode engoli-las ou abri-las e dissolver o conteúdo num pouco de água. Em breve repõem-lhe o equilíbrio da flora intestinal. Se houve intoxicação alimentar, o pior já lá vai. Pode estar tranquilo, que disto já não morre. Saídos do gabinete do médico, trocámos algumas palavras: Que lhe parece a receita do médico, Rodrigues? Acho-a boa. Por mim, estou disposto a segui-la à risca. E o alferes? Mas como? Para o meio do mato não levámos dinheiro. Não contei ter lá ninguém a vender-nos sandes e cervejas, como quando fazíamos as nossas operações na metrópole. Isso não é problema. Trouxe comigo a carteira. O furriel abriu o bolso do camuflado e tirou de lá a carteira. Verificou as notas. Está a ver, alferes? Tenho aqui que chegue para irmos aviar a receita à farmácia que o médico nos indicou. Temos de saber onde fica o Clube de Sanza. Mas antes, vamos lagar as armas e as munições. Dentro de meia hora encontramo-nos em frente ao edifício do comando. Pensei um momento e acrescentei: Não. É melhor junto ao posto de abastecimento de gasolina, ao fundo da rua principal. Pode surgir o comandante ou outro oficial e estraga-nos o tratamento. Certo, alferes. Dentro de meia hora no local combinado. Não deve ser difícil dar com o clube indicado pelo médico. Tem de ser numa das duas ruas principais. Quando cheguei ao local combinado, já lá estava o furriel. Conseguiu ser mais rápido do que eu, Rodrigues. Ninguém me desviou do rumo da farmácia. O Clube onde nos vamos medicar é já ali, naquele edifício que se destaca dos restantes, com dois mastros para as bandeiras. Minutos depois, estávamos sentados numa mesa a um canto. O ambiente é agradável. Naquele momento, apenas lá estavam três ou quatro pessoas. Ainda era cedo. O que é que desejam comer? perguntou o empregado. Temos de seguir a receita do médico disse o furriel, que riu ao ver a cara de admiração do empregado. Bifes suculentos com batas fritas e um ovo a cavalo. Espere aí , Rodrigues. E antes disso, enquanto preparam a receita? Não seria melhor começarmos por uma sopa? Têm cá sopa? perguntei ao empregado. Sim! E por sinal muito boa. Então eu começo o tratamento por um bom prato de sopa. Para mim pode também ser o mesmo acrescentou o Rodrigues. Pouco depois, comido o primeiro prato com satisfação: Alferes, acho que vou repetir a dose. Há muito tempo que não comia uma sopa que me soubesse tão bem! Depois não comemos o resto, Rodrigues. Cabe cá tudo! Com os estômagos encolhidos? Há três dias sem comer já estão desabituados. Mas se manda vir outro prato, eu acompanho-o. Não fica sozinho. Tínhamos acabado o segundo prato de sopa quando chegou o empregado com uma travessa onde vinham quatro enormes bifes, suculentos e de grande espessura, que nos fizeram arregalar os olhos. Onde é que nós vamos conseguir comer tudo isto? perguntei ao furriel. Isto come-se num instante! Ataque, alferes, que eu faço o mesmo. As minhas previsões estavam certas. Um bife ainda conseguimos comer com prazer. Mas não sobrava mais espaço para o seguinte. Foi com grande desgosto do furriel que a travessa regressou à cozinha, ainda cheia com os dois enormes bifes, que nos piscavam os olhos gulosos com mais boca que barriga. Passei a noite no mesmo quarto onde estava o capelão. Embora na messe houvesse quartos com camas vazias e sem os habituais ocupantes, que estavam também envolvidos na mesma operação em outros locais, o capelão quis que ficasse com ele, para conversarmos. Com o cansaço, acabou por não haver conversa nenhuma. Limitei-me a descalçar as botas e a esticar-me sobre a cama. Não me lembro de me ter tapado. Adormeci rapidamente e foi o capelão que me cobriu com um cobertor. Mal abri os olhos, na manhã seguinte, estava ele junto de mim: Parecias uma pedra a dormir! Tentei falar contigo, mas não estavas cá . Tapei-te com um cobertor e não deste por nada. Devias andar com o sono bastante atrasado. Há três noites que não conseguia dormir em condições... Deitei-me vestido sobre a cama, porque não estava em condições de me despir e meter entre lençóis. Para isso, teria de tomar um banho antes e ter roupa limpa para mudar. E os comprimidos que o médico me receitou puseram-me chumbo nas pestanas. O duche e a roupa não são problema. Tenho uma mala cheia dela e somos quase da mesma estatura. Vais tomar um duche e vestir-te de lavado. Depois conversamos. Aliviado da porcaria de dois dias na mata e com roupa limpa, senti-me outro. O capelão continuava no quarto à minha espera e nem me deu tempo para falar. Antes de saíres daqui, preciso de ter um conversa contigo. Ontem, o comandante estranhou não te ver na messe de oficiais durante o jantar. Mandou procurar-te para ires falar com ele. Assim que saímos do gabinete do médico, achámos que devíamos seguir à risca a prescrição do médico. Fomos à farmácia aviar a receita e depois de termos tomado os bifes aconselhados pelo doutor, estávamos tão cansados que viemos aterrar imediatamente nas camas. Isso vi eu... Isto é, não vos vi aviar a receita do médico, mas dei contigo aqui deitado. Ainda te abanei para ires falar com o comandante, mas não adiantei nada. Não havia terramoto que conseguisse fazer-te levantar. Disse ao comandante que estavas sob o efeitos de sedativos e que ninguém te conseguia acordar. Se ele te perguntar por que razão não te foste apresentar, dizes que adormeceste sob efeito dos comprimidos que o médico te receitou. E é verdade. Antes de me esticar na cama, tomei uma colher do xarope que o médico me deu e metade de um calmante. Aqui é que não cumpri com a receita. Achei que dois comprimidos eram demais. Sou contra drogas para dormir. Se a metade produziu o efeito que se viu, com dois nunca mais me levantava. |
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