Sábado pouco tranquilo

— Alferes, mais um dia abatido na folha, menos um para o fim da comissão.

— Ainda temos muitos meses pela frente, Rodrigues. Só passaram três meses. Faltam-nos vinte e um. E parece-me uma eternidade!

— O tempo não pára, alferes. — disse outro furriel — É só uma questão de tempo e de calma. E devemos estar a rodar. Em breve, devemos ser substituídos. Deixamos o destacamento e vamos para Quimbele.

— Espero bem que isso não demore a acontecer. Já estou farto dos problemas do Alto Zaza. Quem cá devia estar era o capitão e não eu.

— Há problemas em todo o lado, alferes.

— Pois há! Mas não em série como aqui. E bem difíceis de resolver. Em Quimbele sempre temos os civis, cafés com esplanadas e locais agradáveis, onde passar o tempo.

— E também onde gastarmos o dinheiro, alferes. É o que deve estar a fazer o Ramalho. Foi para Quimbele fazer as contas e, pelos vistos, deve-se ter enganado na contabilidade. Deixou-se ficar por lá. E nós aqui que rodemos a escala de serviço apenas por três.

— Bom, não falemos mais de Quimbele. É bom demais para estarmos aqui a lembrar. Temos um fim de semana pela frente. Esperemos que seja bom e sem problemas. É verdade, não nos podemos esquecer que amanhã temos o desafio de futebol. Vejam lá se escolhem os melhores para ganharmos.

— O Joaquim também pode entrar na equipa, alferes?

— O Joaquim não é tropa, é nativo civil.

— Mas trabalha aqui. É quase como se fosse dos nossos. E para o futebol é uma máquina.

— O que é que achas, Joaquim? Alinhavas na equipa do destacamento? — perguntei ao rapaz que nos servia o pequeno-almoço.

— O meu alféris, pode contar sempre comigo. O meu alféris ensina-me Matemática, Português e Francês. É meu amigo. E pode contar comigo para tudo.

— Sou teu amigo, é verdade, Joaquim. Tens-te revelado um companheiro. Eu ensino-te o que sei e tu fazes o mesmo: ensinas-me o que sabes. E tens-me ensinado muita coisa. Graças a ti, já consigo dizer algumas frases em Quicongo. E os apontamentos que tiro com as tuas explicações estão sempre a aumentar. Como vês, somos professores um do outro. Não te importas de jogar na nossa equipa?

— Não, meu alféris.

— Então está decidido. Amanhã fazes parte da nossa equipa. Espero que o furriel que hoje está de serviço fale com a malta. Vejam quem vai jogar contra a equipa da sanzala. E o cantineiro que tenha a arca atestada com cervejas, para depois do jogo. Ganhe quem ganhar, todos vão ganhar uma boa tarde desportiva e uma bebida fresca. Tenham uma boa manhã. Vou agora lá para fora, entreter-me a cifrar uma mensagem para o capitão. Tenho de o informar que a operação não é possível.

Fui ao gabinete buscar as folhas de papel quadriculado, o libreto com as chaves do código e a esferográfica e fui sentar-me na mesa da nossa esplanada, ao lado do banco corrido. Numa folha branca, redigi a mensagem a cifrar e a enviar pela rádio:

 

 

«IMPOSSIVEL ESPOLETA 12 VIATURAS INOPS MECANICOS INCAPAZES SOLUÇÃO PROBLEMA FALTAM PEÇAS BERLIET CONTINUA NESTA VIATURA OPERACIONAL EMPRESTADA RENDIÇAO CAMUANGA»

 

 

Na minha mensagem para o capitão, tive de referir o empréstimo de um unimogue. Quando estava a preparar-me para começar a cifrar a mensagem, chegou o grupo de outro batalhão de uma área confinante com a nossa. Vinham render o pessoal da Camuanga e pediram-me um unimogue emprestado com o condutor, porque traziam uma cabra do mato, viatura mais pequena que o unimogue. Traziam excesso de pessoal numa viatura tão pequena. Como entre a sede do nosso batalhão e Quimbele têm a estrada alcatroada, que parece uma autêntica auto-estrada a ligar Luanda a Quimbele, facilitaram exageradamente. Em vez de duas, trouxeram todo o grupo apenas numa, sobrecarregando a viatura com um exagero de pessoal. Como seria de esperar, no percurso entre a estrada alcatroada e o Alto Zaza, tiveram dificuldades, porque tudo que temos é uma picada horrorosa, com zonas difíceis e frequentemente cortadas por enormes valas abertas imprevistamente pelas chuvas violentas da época. Vinha todo o pessoal num estado lastimoso. Nas subidas piores tiveram de empurrar a viatura, para a ajudarem a subir. Nem um guincho tinham para prender um cabo às árvores e ajudar a viatura a vencer as subidas íngremes, onde a argila encharcada constitui uma autêntica pista de patinagem. As rodas giram em vão e a viatura não sai do lugar, quando não acontece começar a deslizar perigosamente pelo declive.

Próximo do meio-dia, o sossego desta manhã de sábado foi irremediavelmente abalado.

— Alferes, acabo de receber uma mensagem rádio do pessoal que foi para a Camuanga. A viatura avariou a meio do percurso e pedem ajuda.

— Aguenta um pouco. — disse ao soldado das transmissões — Vou falar com o pessoal de Quimbele. Temos a Berliet em que eles vieram. Vamos ter de os socorrer a seguir ao almoço. Vai para o teu posto, que eu já lá vou ter contigo.

Fui procurar o pessoal de Quimbele. Encontrei o furriel Santos, mecânico e responsável pelo parque auto da Companhia. Pus-lhe o problema:

— Alferes, vai uma secção nossa com um mecânico na Berliet.

— Quem vai conduzir a Berliet?

— Pode ser o Lobo. Qualquer condutor é capaz de pegar na Berliet. É mais fácil de conduzir que um unimogue. Com a direcção assistida, até o alferes a consegue conduzir melhor que o seu Taunus. O Lobo leva-a.

— Então está combinado. A seguir ao almoço, vai uma secção daqui socorrer o pessoal. Temos de lhes levar rações de combate. Não podem ficar sem comer. Vou ao posto ver se os consigo contactar pela rádio.

Quando cheguei ao posto de transmissões, no gabinete situado na extremidade do meu edifício, tinha nova mensagem cifrada.

— Meu alferes, chegou há minutos esta mensagem para o alferes. Vem da sede do batalhão e vem cifrada.

— Está bem. Decifro-a daqui a pouco. Agora, se o pessoal ligar, diz-lhes que vão ser socorridos. Levamos-lhes também comida.

O meu aperitivo para o almoço foi a decifração da mensagem, acompanhada com uma Coca com uísque. A mensagem deixou-me surpreendido. Era outra vez o capelão.

 

 

«CAPELÃO AGRADECE INFORMEM SE HÁ JOGO DOMINGO»

 

 

Pelos vistos, o capelão, quando cá esteve no destacamento, ficou com pena por não ter tido uma tarde desportiva. Não lhe bastou o leitão, a soneca e a missa. Queria também desporto. Levantei-me da mesa, onde decifrara a mensagem, e fui novamente ao posto de rádio.

— Costa, quando ligarem, transmite para a sede do batalhão esta mensagem que te vou redigir: «Informem capelão que a resposta é afirmativa.»

— O meu alferes vai mandar a mensagem sem a ter cifrado?

— Claro! Qual é o problema? Lê a mensagem e diz-me se percebes o que ela quer dizer.

— Não percebo nada disto, alferes.

— Se tu não percebes, também mais ninguém percebe. Mas o capelão, quando a receber, vai perceber. E é muito importante que receba a resposta.

O resto do sábado passou-se o melhor possível. Os únicos sacrificados foram o condutor Lobo e a secção. Foram socorrer o pessoal a caminho da Camuanga e acabaram por ter de ir duas vezes a esse destacamento. Eram cinco e meia da madrugada quando a Berliet e a viatura avariada foram arrumadas no parque auto. E a essa hora tive ainda de me preocupar em alojar o pessoal rendido, para seguir na manhã seguinte para a sede do batalhão a que pertencem. No final das contas, acabámos por não ter uma operação na Camuanga, como o capitão pretendia, mas uma carga de trabalhos, com uma série de viagens na picada entre o Alto Zaza e o destacamento da Camuanga, que se prolongou pela noite fora, até às cinco e meia da madrugada. E, neste momento, só nos resta operacional a Berliet, que veio de Quimbele.

Página anterior Home Página seguinte