Criança gravemente queimada

O dia 25 de Janeiro foi também um dia agitado, que me fez ir de urgência a Quimbele.

Não foi a mensagem relativa ao capelão, tanto mais que não era urgente. Antes tivesse sido essa a razão, que sempre era mais agradável! O que me fez ir de urgência para Quimbele foi o aparecimento, logo pela manhã, ainda muito cedo, de uma mulher nativa com uma pequenita de dois meses com um bracito gravemente queimado e que me deixou arrepiado, quando vi a extensão e o estado da queimadura.

Durante a noite, apesar de estarmos ainda no período das chuvas, uma época de grande calor, a grande altitude desta região faz com que as amplitudes térmicas sejam elevadas. De dia, faz por vezes um calor insuportável, amenizado pelas fortes chuvadas e trovoadas, que ocorrem repentinamente, de um momento para o outro. Durante a noite, as temperaturas descem abruptamente, ao ponto de precisarmos de um cobertor na cama.

Nas sanzalas, para suportarem o frio da noite, os nativos fazem, por vezes, no meio da cubata, cujo chão é de terra batida, uma fogueira para se aquecerem. Pois esta mulher adormeceu junto à fogueira, com a criança ao colo. Deixou-a cair sobre a fogueira e acordou com o choro da miúda.

Com a ajuda do enfermeiro, desinfectei toda a zona queimada com algodão e água oxigenada. Fiz-lhe um penso com gaze esterilizada, depois de ter espalhado levemente, com todo o cuidado, por toda a superfície, uma pomada antisséptica à base de sulfamidas. E depois, para evitar complicações mais graves e procurarmos salvar a criança, mandei reunir uma secção e avisar o médico pela rádio, para estar à minha espera no hospital de Quimbele.

Saí pouco depois directo a Quimbele, apesar dos protestos da mulher, que não queria deixar ir a filha para o hospital.

— Estou a ver que encontrei um rival competente. — disse na brincadeira o médico. Fizeste um bom trabalho.

— Não o fiz sozinho. Foi com a ajuda do enfermeiro do destacamento.

— Fizeram um bom trabalho. E melhor ainda em teres trazido a miúda. Vai ter de ficar aqui internada.

— É assim tão grave como imaginei?

— Não é grave, é gravíssimo. Muito mais grave do que possas ter imaginado, Ulisses. Se não a tivesses trazido, não deveria ter muitas hipóteses de sobrevivência. Ainda é muito pequenina. E com uma queimadura desta extensão e mal alimentada, não devia ter muito tempo de vida.

— Para ela estar aqui, tive que me aborrecer com a mãe. Não me queria deixar trazê-la. Às tantas, ainda levava a criança a algum feiticeiro e matavam-na com alguma infecção.

— Fizeste muito bem em trazê-la. Onde está a mãe?

— Está lá fora. Veio comigo.

— Vai buscá-la.

— Vai ser difícil comunicares com ela. Não fala Português. Só fala Quicongo. Quem me valeu foi o Joaquim, o moço que trabalha no destacamento, que me anda a ensinar o Quicongo e a quem dou explicações.

— Vai-a buscar. Há aqui quem fale a língua dela. Tenho de lhe explicar que a miúda vai ter de ficar internada, para a podermos salvar.

— E ela? Onde a vamos instalar, durante o tempo em que a filha aqui estiver?

— Fica aqui. Fica aqui, junto da filha. Será bem tratada. Quando a pequerrucha estiver livre de perigo, vai contigo ou com outro grupo para a sanzala onde vive.

— Se já não sou preciso, vou pôr as minhas coisas na messe, tomar um chuveiro e descansar um pouco. Se puderes, aparece no Briosa Bar, para conversarmos um pouco.

— Não deve ser fácil encontrarmo-nos tão depressa. Há aqui muito que fazer. Tens o capelão à tua espera, para seguir contigo para o destacamento. Faz-te companhia.

— É verdade. Parece-me bom tipo. Já me valeu em Sanza Pombo. Revelou-se-me um bom amigo. Até logo. Vemo-nos ao almoço.

 

Depois de um rápido duche na messe de oficiais, passei pelo posto de comando, para falar com o capitão e os meus camaradas. Fui depois tomar um aperitivo com o capelão ao Briosa Bar, com o pretexto de irmos abrir o apetite para o almoço. Como se isso fosse necessário!...

Durante o almoço, quase não consegui comer devidamente. Quiseram ouvir os meus relatos. Em primeiro lugar, acerca da evacuação que acabara de fazer durante a manhã. Depois, retomaram o tema da minha ida em socorro à Camuanga e voltei a repetir-lhes o que já lhes tinha contado durante o fim de semana forçado em Quimbele, por avaria do unimogue. Mas havia um novo elemento, que estava interessado nas minhas peripécias: o capelão.

— A que horas estás a pensar regressar ao Alto Zaza? — perguntou-me o capitão. Tens de levar contigo o capelão e ele tem de saber quando partes.

— Mais logo. Pelas três e meia. Antes disso, temos de ir disputar as bicas ao Briosa Bar e fazer a digestão. Se entretanto não chover, a viagem faz-se num instante. Já conhecemos a picada de olhos fechados. Além do mais, já disse ao meu pessoal para estar pronto às três. Pegar a tralha, subir e não subir para a viatura, largar e não largar, lá para as três e meia devemos estar a caminho.

 

 

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