Correspondência natalícia |
No dia de Natal, logo a seguir ao
almoço, escrevi o primeiro aerograma para um camarada
açoreano, que está na Guiné. Como deverão
receber o duplicado a químico, transcrevo apenas dois
breves excertos: «Amigo Costa, Recebi o teu aerograma e agradeço e
retribuo os votos de Boas Festas. Desejo que passes o fim
do ano o melhor possível com o teu pessoal. Como deves saber, a nossa zona
é de «combates diuros», de maneira que é
necessário um pouco de boa vontade da nossa parte, para
que esta quadra possa ser passada o melhor possível. Por
acaso, até cá tivemos, não uma
«miulatinha» como vós, mas uma pretinha bem
jeitosinha, para servicinho dos graduados. Recebi há dias cartas de ...» Segue-se uma lista de camaradas amigos,
com os respectivos SPMs, para troca de correspondência. Na mesma tarde, antes de ter ido a uma
fazenda da minha zona desejar as boas festas, escrevi a
um amigo de Coimbra, uma pessoa da idade do pai, com quem
costumava conversar muitas vezes no Café Nicola, quando
ali me juntava, à noite, com outras pessoas, todas
elas mais velhas do que eu, mas cujo convívio era para
mim agradável. Este amigo fazia parte do grupo em que se
juntava aquele que considero o maior aguarelista
português actual, o senhor António Vitorino. Travei com
ele longas conversas, durante as quais me falava do seu
mestre, Rafael Bordalo Pinheiro. Lá mais para
diante, se a ocasião se proporcionar, procurarei reviver
esses momentos. Sinto saudades desse senhor e tenho
profunda pena que tivesse morrido. Tinha combinado com
ele levar para o café Nicola um gravador de cassetes,
para registarmos uma daquelas gostosas evocações de
épocas passadas. A morte pregou-me a partida. Levou-o e
roubou-nos uma figura importante da arte portuguesa.
Consegui ainda passar uma tarde com ele na igreja de
Santa Cruz, quando estava a pintar um dos púlpitos e
azulejos envolventes. Conservo uma colecção de
fotografias a preto e branco desse momento. Ampliei-as no
laboratório que montei no sótão da nossa casa, em
Aveiro. Iriam servir de ponto de partida para algumas
conversas sobre pintura... O tempo ceifou-me este amigo e
todos os meus projectos caíram por terra. O aerograma agora escrito foi enviado
ao amigo Carlos Ferreira, que teve a feliz ideia de me
dar notícias de Coimbra e desejar as boas festas. Vou
transcrever-vos quase na íntegra o aerograma: «Alto Zaza, 25 de Dezembro de 1972 Amigo Carlos Ferreira Tive ontem o enorme prazer de receber o
seu postal ilustrado com uma vista magnífica de Coimbra.
Trouxe-me uma série de recordações! Agradeço desde
já a sua excelente lembrança. Pode bem dizer que, este ano, o Natal
é bem diferente. Nem parece Natal! Falta-nos o frio e a
chuva da metrópole, o calor da família, a missa do
Galo, em suma, todos aqueles pequenos nadas que tornam o
Natal mais vincado, mais sentido, com um não sei quê no
ar, que une todos os homens, tornando-os irmãos. Com o clima daqui, semelhante ao do
Verão daí , chegamos quase a esquecer o Natal. Todavia,
repare que digo «quase» . Em boa verdade, o Natal nunca
se esquece, sejam quais forem as condições
climatéricas. O mais interessante é que o seu postal
veio, como por magia, recordar todos aqueles momentos
passados à noite no Nicola, na companhia de amigos
que nunca se esquecem, mesmo que a morte os tenha
arrancado já do nosso convívio. Desejo-lhe, para si e seus familiares,
um bom ano de 1973, na esperança de nos voltarmos a
reencontrar, dentro de algum tempo. (...)» Passo agora a transcrever-vos parte de
uma longuíssima carta de resposta às notícias dadas
pelos tios e primas. Vou reproduzir-vos apenas algumas
passagens, aquelas em que desabafei um pouco os
sentimentos de revolta provocados pelo meu pessoal. Foi
um momento importante de desabafo. Funcionou como uma
espécie de catarse, para que, em situações de
convívio com ele, não venham a transparecer estes
sentimentos momentâneos. Pertencemos todos
à espécie humana, uma classe animal que o Criador
fez cheia de imperfeições, à Sua imagem e semelhança.
Significa isto que, se o raciocínio estiver certo, não
tenho o direito de revelar sentimentos menos amistosos
para com aqueles que estão sob as minhas ordens e
à minha responsabilidade. Se o fizer, estarei a
mostrar revolta contra as imperfeições do próprio
Criador e de mim mesmo, que também sou feito da mesma
massa e pelas mesmas mãos. Temos que possuir uma grande
capacidade de encaixe. Temos de saber aceitar todas as
imperfeições humanas e aprender a viver com elas, na
esperança de melhorias com o volver dos anos. O vinho do
Porto não melhora com o passar dos anos? Também nós,
à medida que envelhecemos, à medida que vamos perdendo
o vigor da juventude, vamos melhorando como o vinho do
Porto, vamos adquirindo o bom senso e a sabedoria da
experiência da vida. Acabemos com as reflexões e passemos
à transcrição de algumas passagens do aerograma,
escrito há pouco, cerca das oito e quarenta e cinco.
Passemos à transcrição, que antes de acabar o dia
de hoje e este masso de aerogramas ainda tenho de dar as
respostas às vossas perguntas. Depois disso, faço um
volume com todos os aerogramas, cuja conta vai
já em mais de cinquenta, e meto-o no saco da
correspondência. Será o ponto final num dia quase
integralmente ocupado a trabalhar com a esferográfica. «Alto Zaza, 28 de Dezembro de 1972 Queridos tios e primas. Recebi há dias a vossa carta e fiquei
satisfeito por saber que ... Também eu ficaria
satisfeito de estar aí na Metrópole, a dar as minhas
aulas numa escola, longe dos animaizinhos que me rodeiam.
Estão a estranhar eu dizer «animaizinhos»? Pois podem
crer que é a pura verdade. Infelizmente, tenho aqui uma
boa colecção deles. Infelizmente, tenho aqui alguns
soldados que são autênticos animaizinhos, de cabeça
mais dura que a secretária em que agora vos escrevo. Se
alguns há que até têm um pouco mais de cultura e
alguns princípios, outros há que só sabem
viver na porcaria. E são estes, para cúmulo, os que
mais refilam. Só para terem uma ideia das
mentalidades que me rodeiam, vou dar-vos alguns exemplos. Há tempos, mandei instalar nas
casernas um sistema de caleiras para captação da água
das chuvas, a fim de diminuir as dificuldades e trabalhos
com as idas à água. Com as frequentes cargas de
água que desabam sobre nós e o sistema de captação
das águas que escorrem dos telhados, enchem-se bidões
de duzentos litros em cerca de dez minutos. Deste modo,
passamos a dispor de bidões cheios de água própria
para consumo, colocada mesmo à entrada das casernas, o
que facilita a vida diária. Esta água pode servir não
só para beber, mas também para termos as nossas
reservas com que nos possamos lavar, fazer a barba e
refrescar. Dois dias depois de termos tido uma
trabalheira a montar este sistema de captação, fui dar
com a água dos bidões completamente inutilizada. Num
dos bidões, à entrada de uma caserna, a água estava
uma autêntica imundice. Eram cascas de banana. Eram
pontas de cigarros. Era sabão e outras porcarias. E este
não é o pior exemplo que vos posso apresentar.
Há mais, muito mais, e pior do que isto. Querem outro caso concreto, passado com
pessoal que deveria ser mais responsável que os
soldados? A estes, ainda é possível desculpar muita
coisa. Alguns mal sabem ler e escrever. Formação e
princípios é coisa de que nunca ouviram falar. Mas os
furriéis, indivíduos com estudos, como
é possível compreender algumas das suas atitudes?
Infelizmente, até os furriéis me deixam
frequentemente desconcertado e desgostoso com as suas
atitudes. Todas as manhãs, mando os miúdos
varrer o meu gabinete e a messe, onde os furriéis têm
as camas e onde temos a mesa em que fazemos as nossas
refeições e passamos alguns momentos de convívio.
Volta e meia, suas excelências, em vez de utilizarem os
cinzeiros, acham mais cómodo encher o chão de beatas.
Em vez de utilizarem o caixote do lixo, acham mais
cómodo mandar para o chão as latas da cerveja. Tive que
lhes pregar um valente sermão e perguntar se em casa
deles costumavam deitar as beatas e o lixo para o chão
da sala de jantar. Custou-me ter de lhes pregar
semelhante sermão, mas a verdade é que a situação
melhorou significativamente. Não resisto a mais alguns exemplos
ainda com os furriéis. Para a passagem do Natal e do ano,
recebemos do Movimento Nacional Feminino caixas com
bolo-rei. Reservei uma, que guardei no meu gabinete, para
estas alturas. Como seria lógico, dividi o bolo ao meio:
metade para a consoada e dia de Natal; a outra para a
passagem do ano. A primeira metade foi comida por todos
após o jantar de consoada e no dia seguinte. Tivemos
surpresas agradáveis, como espumante e café . Tivemos
uma consoada quase tão boa como se estivéssemos aí,
junto da família. Guardei a outra metade para daqui a
três dias festejarmos a passagem do ano. Querem saber o que aconteceu e como vai
ser a passagem do ano? Pois, hoje mesmo, suas excelências,
entraram no meu gabinete, levaram a metade que estava
guardada e comeram-na. Claro está! Para a noite da
passagem do ano, comerão merda, se quiserem, porque as
nozes, os pinhões, as passas e outras gulodices que os
meus pais me mandaram não serão mais para eles.
Já comeram o que tinham a comer nestes últimos
dias. Já chega de lorpice da minha parte. Está claro que estou agora aqui a
dizer isto, mas quando chegar a noite da passagem do ano
vou ter de esquecer estes incidentes. Mas, para já, nos
próximos dois dias, vou ter poucas conversas com eles e
mostrar-me zangado. Vou evitar dar-lhes tanta confiança,
para os fazer sentir e reflectir sobre as próprias
atitudes. Mas há mais! Ainda não acabei com os
meus desabafos. Os tios desculpem-me estar para aqui a
despejar-vos tudo isto. Bem sei que não têm culpa
nenhuma do que me está a acontecer. Mas, ao mesmo tempo
que ficam com uma ideia daquilo que um oficial miliciano
tem de aguentar, aproveito a vossa companhia para
desabafar. Há dias ausentei-me do quartel por
cinco dias, por causa de uma operação na zona. Estive
dois dias na mata e três dias em Sanza Pombo, na sede do
batalhão. Quando cheguei ao destacamento, na companhia
do novo médico, tive uma surpresa desagradável. Os dois
furriéis, que ficaram sozinhos no destacamento, tinham
trazido para aqui uma preta. E, segundo apurei junto
dela, antes de a mandar embora, logo no primeiro dia
arranjou um pecúlio de quinhentos escudos com o
Zé soldado. Até compreendo que o Zé soldado
se tenha aproveitado da situação. A preta, apesar
daquilo que é, era bonita e bastante atraente. Mas o que
considero mais incrível, o que mais me chocou, é que,
depois de uma série de soldados se ter servido da
mulher, também os furriéis resolveram ir molhar a
caneta. Como é possível ter estômago para
semelhante coisa? Não digo mais. Se continuo, esta carta
transforma-se numa ladainha de desabafos. (...)» O aerograma continua com mais alguns
parágrafos e termina com as habituais despedidas.
Suprimi tudo isto, por não ter qualquer interesse para
aqui figurar. Hão-de receber o duplicado a químico e,
depois, se quiserem, poderão acabar a leitura. Em linha recta, devem ser uns vinte e
cinco quilómetros. De noite, quando me desloco a uma das
extremidades do destacamento, junto à pista de
aviação, nas minhas rondas habituais, vêem-se mesmo as
luzes de Quimbele. Pela picada, devem ser uns quarenta a
cinquenta quilómetros. Leva-nos cerca de duas a três
horas a percorrer, se a picada não tiver sido cortada
por alguma chuvada. Outra pergunta que me faz diz respeito
à máquina fotográfica que comprei. Disseram-lhe
que o modelo já é antigo. Tenho umas certas dúvidas.
Ele recente, acabado de lançar, de certeza que não é.
Mas também não pode ser muito antigo. Pelo folheto de
instruções, deve ter sido lançado no mercado
há três anos. Mesmo que já não seja o último
modelo, é dos melhores que encontrei na região.
É um modelo bastante vendido em Angola e preparado,
segundo o impresso, para climas tropicais. Logicamente
que ficaria mais bem servido se fosse uma câmara de tipo
reflex, da marca Canon ou Pentax. Mas onde é que elas
estão? Só se for em Luanda ou aí na Metrópole. Ter
encontrado em Quimbele um modelo igual ao que adquiri foi
uma grande sorte. Mesmo não sendo o último grito da
tecnologia, andava pelos quatro mil escudos, quantia que
não cheguei a pagar, porque o comerciante me fez um
razoável desconto. Há dias, quando fui fazer o
pagamento aos GEs, o comandante de batalhão mandou-me
para o destacamento uma câmara Canon, para obter imagens
para uma publicação do exército. Era uma máquina
fabricada especialmente para utilização militar.
Comparei-a com a minha e acabei por concluir que tinha
feito uma boa compra. Todos os meses, como oficial do
exército, tenho direito a duas garrafas de uísque
normal, a noventa escudos cada garrafa, e uma de
especial. A garrafa normal, geralmente da marca White
Horse, é para consumo imediato. A melhor, costumo
guardá-la, para fazer colecção. A de melhor qualidade,
que me custa mais trinta escudos, é vendida nos
estabelecimentos comerciais por quatrocentos e cinquenta
escudos. De acordo com o médico da Companhia que
rendemos, tenho seguido à risca o conselho que me deu,
antes de deixar Quimbele para o destacamento: uma tampa
de uísque a seguir a cada refeição, mesmo que não
goste de uísque. Nas primeiras vezes em que segui a
receita, foi um verdadeiro sacrifício. O gosto e o ardor
na garganta eram um verdadeiro tormento. Mas já me
habituei e mantenho um rigoroso cumprimento da
prescrição médica. Até à data, sou dos poucos
que ainda não teve problemas de paludismo.
É verdade que também nunca deixo de tomar
regularmente os comprimidos adequados. Tudo junto, é um
reforço que espero continue sempre a dar resultado. Vou agora dar por concluída a série
de aerogramas. Vai, juntamente com eles, uma relação de
todas as fotografias tiradas no rolo que vos envio.
Mandem-no revelar e mandem-me as fotografias. Só mais uma coisa, antes de me
despedir de vocês. Quando for de férias à Metrópole,
não me poderei esquecer de adquirir um bom gravador
estereofónico de cassetes. Na tarde de Natal, depois de
ter chegado a secção que foi à Camuanga procurar a
arma do condutor, que estava devidamente guardada nesse
destacamento, demos uma saltada à Fazenda Nossa
Senhora da Conceição, que fica ainda dentro da minha
área. Fui lá fazer uma rápida visita de cortesia. Fui
lá desejar-lhes um bom Natal. Nos poucos minutos
que lá estive, foi-me dado o prazer de assistir com o
meu pessoal a uma batucada junto da fogueira. Fiquei
vivamente impressionado com o ritmo contagiante das
danças. Em breve, não eram só os nativos que dançavam
ao som do batuque. Aquele ritmo vivo e bem cadenciado
começou insidiosamente a penetrar-nos pelos ouvidos. O
nosso corpo começou, sem nossa licença, a balancear ao
ritmo da música. Pouco depois, também nós fazíamos
uma agradável companhia ao pessoal que dançava. Eu
próprio não consegui resistir. Era forte o contágio.
Acabei por me juntar ao grupo. Foram uns momentos fugidios mas
agradáveis de saudável convívio, bem ritmados e
acompanhados com uma bebida esbranquiçada, levemente
alcoólica, obtida com a seiva fermentada das
palmeiras. É uma bebida de gosto exótico, mas
agradável, que inicialmente provoca uma reacção de
recusa pelo cheiro peculiar que liberta. Mas o prazer da
descoberta acaba por vencer a primeira repulsa. Dá-se a
primeira golada com algum receio. E tomam-se as seguintes
com prazer pela nova experiência. Dão na região a esta
bebida o nome de «malavi» ou «maluve» ou
«malufe». Obtive várias pronúncias e fiquei na
dúvida sobre qual a designação mais correcta. Como vêem, tenho mesmo de comprar um
gravador, se quiser dar início a uma boa recolha do
folclore angolano. É agora que vou terminar. São já dez
da noite e preciso ainda de ir fazer uma ronda. Beijos
para todos. A mãe que me arquive religiosamente todos
estes aerogramas. FIM DO 1º VOLUME |