Problemas do destacamento |
A viagem até ao Alto Zaza fez-se com incrível rapidez. Sempre em linha recta, sem curvas nem acidentes da estrada, o percurso que, de carro, nos levaria algumas horas, tomou-nos cerca de quinze minutos. Voámos a uma altitude relativamente baixa, por cima de um imenso mar verde, raramente cortado por algumas ilhotas sem arvoredo: as clareiras ocupadas por antigas ou actuais sanzalas. Proporcionalmente, levou mais tempo a aproximação e aterragem no campo de futebol em frente ao edifício do comando que o percurso entre Sanza Pombo e o destacamento. No momento da descida, tínhamos todo o pessoal a aguardar-nos. Ficou espantado ao ver-me chegar ali na companhia do novo médico. — Então o alferes já cá está? — perguntou-me o furriel Ramalho. — É como vê! Cheguei antes do
resto do pessoal e acompanhado pelo novo médico, que
há-de seguir com o pessoal para Quimbele. — Mas o que é que aconteceu? — Tive de ser evacuado no segundo dia
da operação, juntamente com o Rodrigues. — E onde está o Rodrigues? — A esta hora deve estar muito bem
repimpado no Briosa Bar, em Quimbele, a beber algum fino
com ginguba e a apreciar as miúdas. — Ainda é muito cedo para isso,
alferes. Pouco passa das nove e meia. A esta hora
é capaz de estar ainda a dormir e a sonhar com as
miúdas de Lisboa. — Mais logo poremos as conversas em dia. Agora preciso de ir falar com os pilotos dos aparelhos.
— É necessário efectuar o
reabastecimento antes de irem buscar o pessoal à
mata? — Por enquanto não, alferes. Depois
de termos apanhado todo o pessoal e antes de partirmos
para o Negage será conveniente. O alferes pode,
entretanto, ir adiantando serviço. Peça ao seu pessoal
para trazer dois bidões de combustível aqui para o
campo. Ponham-nos junto à vedação.
Será depois mais rápido o reabastecimento. — E almoçam cá no destacamento
antes de partirem? — Não deve ser preciso. Contamos ir
almoçar à nossa messe, no Negage. Enquanto os dois aparelhos foram buscar
o pessoal da operação, aproveitei para conversar com os
dois furriéis, o Teodoro e o Ramalho. Apresentei-lhes o
novo médico da Companhia e procurei que me pusessem a
par da situação do destacamento. E não me agradaram
nada as informações recebidas. A situação no
destacamento não era das melhores. Além de continuarmos
com as viaturas avariadas, o pessoal estava sem pão
fresco. O forno tinha ruído na véspera. — Chamem-me os responsáveis pela
alimentação, por favor. Passados uns minutos, tinha na minha
presença o Amadeu e o Brito, os cozinheiros, o Almeida,
ajudante de cozinha, o Fernando Dias, atirador
quarteleiro e padeiro aqui e na vida civil, e o
cantineiro Nunes. — Como é que nós estamos de
pão? — perguntei ao cantineiro e ao responsável pelo
fabrico do pão. — Para o almoço ainda temos algum
pão de há dois dias. Mas é pouco para toda a
gente — respondeu-me o cantineiro. — E ontem, quando me preparava para
cozer nova fornada, o forno abateu. — acrescentou o
padeiro. Estamos sem forno. — Então o que é que o pessoal
vai hoje almoçar? Devem vir cheios de fome e enjoados
das rações de combate. — Vamos ter a receita habitual destes
últimos dias, alferes. — responderam quase em coro o
Ramalho, o furriel responsável pela cantina e
alimentação, e os cozinheiros. Para variar, vamos
continuar com o feijão e conservas. Carne já não
há e não tivemos nenhum reabastecimento. — Como é que não tiveram? Antes
da operação não veio um reabastecimento de Quimbele? — Veio, alferes. Mas já lá vai
uma semana. — respondeu o Ramalho. — E então? Com metade do pessoal no
destacamento não me digam que já foi tudo consumido! — A quantidade que veio foi reduzida.
E o alferes sabe que a carne tem de ser consumida logo
nos primeiros dias. Todas as semanas temos de fazer o
reab. e desde então não houve mais nenhum. — Porque não aproveitaram um dos
unimogues de Quimbele para efectuar uma caçada? — E quem é que se responsabilizava,
se acontecesse algum acidente? — perguntou o Teodoro. — Então o Ramalho não ficou a
comandar o destacamento? Não é ele o mais velho
dos dois? — Eu, alferes? — Claro! Quer dizer, quando cá está
o alferes, pode-se ir à caça. Se houver algum problema,
cá está ele para arcar com as
consequências... Falta ele, já não há ninguém
que queira assumir as responsabilidades? Se fossem vocês
que viessem da mata, gostavam de ser obrigados a comer
feijão com conservas, depois de cinco dias forçados a
comerem enlatados das rações de combate? O pão que
resta deverá ser prioritariamente para o pessoal
que vai chegar da mata. Para compensar, em vez de vinho,
deverá ser distribuído um refrigerante ou uma
cerveja a cada homem. — E o vinho? Há malta que
prefere o vinho. — Se preferirem vinho, é isso
que bebem. Mas poderão escolher. E para resolver o
problema do pão, como acham que deveremos proceder? — O velho Manel é que construiu
o forno que existia. Será melhor falar com ele. — responderam o ajudante de cozinha e o responsável pelas
fornadas de pão. — Bom, então depois do almoço digam
ao velho Manel para vir ao edifício do comando falar
comigo. Entretanto, o furriel Ramalho providencie para
que o pessoal coloque dois bidões de combustível para
helicóptero no campo de futebol, junto à vedação. O
gasolineiro que ajude. Será ele o responsável pelo
reabastecimento dos aparelhos, antes de regressarem ao
Negage. Enquanto os helicópteros não chegavam
com o pessoal, aproveitei também para dar uma volta pelo
destacamento, na companhia do médico, para melhor
avaliar a situação. Acompanhámos os cozinheiros e
fomos inspeccionar a cozinha e o forno do pão, mesmo ao
lado. Na cozinha, reinava um grande azáfama. Os miúdos
da sanzala próxima, que ajudam os cozinheiros, andavam
ocupados de um lado para o outro. Estavam ocupados a
encher o reservatório onde os cozinheiros têm sempre
água de reserva para a cozinha. Avaliei atentamente os estragos do
forno, acompanhado pelo olhar clínico do médico. Devido
às fissuras provocadas pelo tempo e pelas dilatações e
contracções, a cúpula abatera. No lar sobre o
qual é colocado o pão para cozer, havia agora um
montão de tijolos enegrecidos pelo fumo e, muitos deles,
esboroados e completamente irrecuperáveis. Em suma, um
autêntico desastre, como o da célebre cúpula de não
menos célebre monumento da metrópole, que
só deixou de abater depois do trabalho inteligente
de um célebre arquitecto português, que não teve
qualquer receio de ficar debaixo após tirarem os
andaimes e traves da construção. No regresso ao edifício do comando,
encontrámos junto da cantina o velho Manel. — Nem de propósito, velho Manel.
Vinha agora mesmo a pensar em si! — O meu alferes como está? Vim aqui
à cantina para ver se o Nunes me podia fiar uma cervejita... — Deixe estar, que agora não precisa
de beber fiado. Eu pago-lhe uma cerveja. Estou também
com vontade de beber uma, aqui na companhia do novo
médico da nossa Companhia. — Estive há pouco a conversar
com os cozinheiros e o padeiro. Disseram-me que foi o
velho Manel quem construiu o forno do pão. — É verdade, meu alferes. Todos
os fornos da tropa sou eu que os construo. Não
há mais ninguém que os saiba fazer. Até os
civis, quando precisam, vêm cá buscar o velho
Manel. — Nós não podemos ficar sem pão
fresco nos próximos dias. O que é que o velho
Manel aconselha a fazer? — Meu alferes, para alevantar o forno
temos de ter tijolo burro. — Os tijolos que restaram da
construção dos pré-fabricados não podem servir? — Não, meu alferes. Tem de ser tijolo
burro. É um tijolo todo maciço. — Mas os do forno não se aproveitam? — Alguns sim. Mas precisamos de muito
tijolo. Tem de se começar a abóbada a nascer da base.
Alevanta-se p'ra cima sempre a nascer da base
até fechar no cimo. — E onde é que vamos arranjar
tijolo desse? — Meu alferes, se me
dá licença, eu sugiro ao meu alferes que
aproveitamos a Berliet de Quimbele e lá fôssemos
buscar o tijolo da parte da tarde. — Vou ver se isso é possível.
Posso então contar consigo? — Meu alferes, eu sou civil, mas faço
parte da tropa. Sempre vivi aqui com os soldados. O meu
alferes tem aqui um amigo para tudo o que for preciso. Tive de interromper a conversa com o
homem mais experiente e sabedor de todo o destacamento, o
velho Manel, o civil que escolheu,
há já muitos anos, a companhia dos soldados e
por quem já passaram muitas Companhias antes da minha.
Começou-se a ouvir, ao longe, o barulho dos
helicópteros. Dei ao cantineiro a garrafa quase intacta
da cerveja e fomos para junto da vedação, que nos
separa do campo de futebol, esperar o desembarque
do pessoal. Ficámos a uma razoável distância, eu
e o médico, para não levarmos um banho de poeira. Em
poucos segundos, tínhamos a companhia de quase todo o
pessoal do destacamento, que veio assistir
à chegada dos companheiros. Minutos depois, estava
a primeira leva a sair dos aparelhos com ar
simultaneamente cansado e sorridente. Regressavam sem
problemas. Pouco passava das onze da manhã e já todo o pessoal estava no destacamento. Tal como os pilotos tinham previsto, efectuou-se rapidamente o reabastecimento de combustível e, em breve, estavam os dois aparelhos de regresso ao Negage, onde deverão ter chegado muito a horas para o almoço na messe, tal como tinha sido planeado. |