Raspanete e aniversário

Quartel da CCS

 

Messe de Oficiais e edifício do comando do Batalhão de Caçadores 4511

 

Sanza Pombo (Angola), 30 de Janeiro de 1973

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A meio da manhã, fui chamado ao edifício do comando. Andava um soldado à minha procura:

— Meu alferes, o nosso comandante mandou chamá-lo. Quer falar com o meu alferes e não parece bem disposto.

— Onde é que ele está?

— É no edifício do comando, ao lado da messe. É um edifício mais pequeno, de paredes amarelas.

— O meu comandante dá licença?

Fiz a devida continência e sentei-me na cadeira indicada pelo comandante, o tenente-coronel Soares Coelho.

— O nosso alferes não se apresentou imediatamente quando chegou a Sanza Pombo — disse o comandante com má cara e modos grosseiros, que me causaram uma impressão desagradável, dando-me a sensação que para oficial superior lhe faltava um certo polimento.

— O meu comandante tem toda a razão e peço desde já as minhas desculpas. Mas, durante a consulta, o médico fez-me tomar um xarope e dois comprimidos, que me puseram a dormir. Caí na cama e não me lembro sequer do nosso capelão me ter dado abanões e coberto com um cobertor.

— Sim, já sei disso. O capelão disse-me que estava sob o efeito de sedativos e que ninguém conseguia acordá-lo. Qual foi, afinal, a causa da evacuação?

Fiz um relato pormenorizado de todos os acontecimentos dos últimos dias. Exagerei talvez um pouco a intoxicação alimentar do furriel e as dificuldades da progressão na selva com tanta carga. Dias antes da operação, ao efectuar um patrulhamento de segurança em volta do aquartelamento, tinha caído e magoado o pulso. E depois a sobrecarga do lado esquerdo com a arma e as munições, mais as diferentes mochilas, impediram-me de aguentar o excessivo esforço físico.

— O nosso alferes não sabia ter arranjado um carregador para as mochilas?

— Não foi possível por falta de dinheiro para pagar aos carregadores.

— Que falta de dinheiro? Não sabe que os oficiais têm uma verba para guias e carregadores? Não sabe que os oficiais apenas têm de levar o armamento, para maior mobilidade e controlo do pessoal durante a progressão nas operações?

Ouvi uma série de raspanetes. Apetecia-me relatar a discussão que tive com o capitão por causa dos carregadores, mas preferi calar e ouvir as censuras fundamentadas do comandante. Depois de lhe ter descrito o decurso da operação até ao momento da evacuação e ter feito sentir as dificuldades da progressão num terreno acidentado e de mata cerrada, em que as catanas tinham de ser usadas com frequência para abrir caminho, mandou-me embora, desejando-me uma rápida recuperação.

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Voltei a fazer nova pausa na escrita. A carta começa a ficar demasiado longa. Tenho neste momento quinze folhas escritas, de um e outro lado, em letra miudinha, e a tarde vai a meio. Vai a meio a tarde e também o bloco de papel de carta. Mas não foi esta avaliação da escrita que me fez parar. Deram comigo aqui no clube. Veio há pouco um soldado chamar-me, para ir novamente ao comandante de batalhão. Deve ter sido telepatia. Estava a falar da conversa tida com o comandante no dia vinte e um, ou seja, ontem, quando o impedido do comandante deu comigo aqui no restaurante do clube.

Fui informado directamente pelo comandante que amanhã, dia vinte e três, tenho de regressar ao Alto Zaza. É o último dia da operação e os helicópteros vão recolher a malta. De modo que aproveitarei a escala dos Puma em Sanza Pombo para regressar directamente ao destacamento. Só depois de me deixarem e de reabastecerem irão ao local de recolha.

Vou ter de sintetizar o resto dos acontecimentos, se quiser ter tempo de concluir a carta antes do jantar. Tenho ainda de ir comprar os selos. Esta volumosa carta vai, desta vez, não pelo SPM, mas pelos serviços normais do correio.

Ontem, dia vinte e um, depois de ter falado e ouvido o raspanete do comandante de batalhão, almocei na messe com o capelão, o capitão Glória Dias e o oficial de serviço.

De tarde, chegou uma coluna de Quimbele. O alferes Vieira foi chamado ao comandante de batalhão. Por isso, jantei no clube na companhia dele e dos furriéis Rodrigues e Santos. Comemos uma mariscada como aperitivo e, em seguida, um coelho à caçador que estava digno de Diana. Como podem ver, continuamos a seguir o tratamento aconselhado pelo médico. Desta vez não foi comida para dentro. E ficou-nos a brincadeira na módica quantia de setenta e cinco escudos cada um, o que foi baratíssimo, dada a abundância e a qualidade do serviço.

Hoje de manhã, dia vinte e dois, regressou a Quimbele a coluna com o alferes Vieira e os dois furriéis. Por isso fiquei sozinho, sem a companhia do Rodrigues, a quem fiquei a dever cento e dezasseis escudos, que espero pagar assim que chegar ao Alto Zaza. Se por um lado senti a falta do furriel, por outro foi oportuno. Se ele estivesse aqui, não tinha ficado sozinho e com disponibilidade para esta longa conversa na vossa companhia.

Por incrível que pareça, só agora me lembrei que hoje é o dia do meu aniversário. Foi um lapso imperdoável. Podia ter aproveitado o jantar de ontem para o festejar antecipadamente com os camaradas da minha companhia. Vou mandar vir um queque ou um bolo de arroz. Coloco-lhe no meio um fósforo. Acendo-o e canto os parabéns. Não pode ser «os parabéns a você». Vou ter de improvisar e criar uma nova versão. Serão os «parabéns a mecê», porque os vou cantar a mim mesmo.

Deixemo-nos de brincadeiras. Vamos às despedidas. Possivelmente, quando receberem este volume de folhas, já o Natal estará distante e o novo ano começado. De qualquer modo, como o que conta é a intenção, recebam do vosso filho um desejo profundo, verdadeiramente sincero, de um feliz Natal, muito mais feliz do que aquele que vou certamente ter dentro de dois dias.

Vosso filho

                    Ulisses.

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