O embarque |
Deixemos os acontecimentos do passado e voltemos ao presente, ao dia 6 de Novembro, dia do nosso embarque para Angola. Às dezassete e trinta já todo o pessoal tinha jantado. Uma hora depois estava toda a companhia formada na parada, em frente às casernas. Foram dadas as últimas recomendações e entregues aos cabos e aspirantes milicianos as pequenas faixas correspondentes à subida de posto, que colocámos sobre os ombros. Eram dezanove e trinta e estávamos já nos autocarros, com tudo carregado, a caminho do aeroporto de Lisboa. O embarque estava marcado para as vinte e três horas.
Chegámos ao aeroporto à hora prevista. Desembarcámos, não no local habitual do aeroporto de Lisboa, mas sim numa zona reservada à força aérea. E, ao contrário do aeroporto civil, onde há autocarros para levar os passageiros até aos aviões, tivemos de percorrer a pé o espaço entre a aerogare e o local onde se encontrava estacionado o aparelho. Não deixou de ser agradável, porque, apesar de ser de noite, permitiu-nos observar melhor tudo à nossa volta. E foi interessante observar as expressões do pessoal. Ninguém tinha ainda andado de avião. Mesmo eu, que tive já a oportunidade de voar mais do que uma vez, a última das quais de helicóptero em Santa Margarida e ainda de braço ao peito, nunca tinha estado tão perto de um avião com a envergadura de um 707. Sob as luzes dos holofotes, o aparelho, todo branco com uma risca azul ao meio e uma cruz latina vermelha no bojo, por baixo da fiada de janelinhas, entre as asas e a porta de acesso, tinha um aspecto imponente. Em fila, subimos as escadas e entrámos, com um certo deslumbramento, no interior iluminado. Apenas um aspecto nos desagradou: em vez das esbeltas hospedeiras de bordo, com que todos contávamos, saíram-nos cabos a desempenharem o mesmo papel. Enfim, passe a decepção! Seguimos as instruções, tomámos os nossos lugares, apertámos os cintos de segurança e aguardámos a partida.
Quanto a mim, calhou-me um lugar à janela do lado direito, logo a seguir à asa, o que me permite olhar lá para fora sem qualquer obstáculo. E à minha esquerda, como já devem ter adivinhado, calhou-me o comandante da Companhia, o capitão Alberto
Passava pouco das vinte e três e trinta quando o aparelho se fez à pista e começou a levantar voo. E o espectáculo de uma Lisboa iluminada, que a pouco e pouco começava a surgir debaixo dos meus olhos, deixou-me uma impressão que dificilmente esquecerei. Se o momento da subida do aparelho nunca deixa de nos causar uma certa impressão, imagine-se como esta será quando à inércia do movimento se junta o deslumbramento de uma cidade que se desdobra em luzes coloridas, constituindo uma mancha de cor cada vez mais vasta e que, após uma volta por sobre a cidade, para tomarmos o rumo da África, começa lentamente a perder-se na distância.
Passados uns breves minutos, deixei de ver qualquer vestígio escuro da terra. Como vou do lado direito e o aparelho se desloca para sul, a partir de certa altura tudo o que consegui ver foi um espelho escurecido, apenas com uns ligeiros reflexos, que só pode ser o mar.
Entretanto o aparelho continuou a ganhar altitude, até atingir os doze mil metros. Tudo o que se vê, neste momento, lá muito em baixo, é uma massa cinzenta escura, pois voamos muito acima do tecto de nuvens.
Neste preciso momento são cerca de quatro da manhã e devemos estar a meio do percurso. Embora praticamente toda a gente vá a dormir, acabámos de receber um aviso para colocarmos os cintos de segurança. Segundo informação dos pilotos, vamos passar por cima de uma tempestade tropical, pelo que será natural que o avião comece a ser sacudido por deslocações de ar. De facto, neste momento, olhando pela janela, o espectáculo lá em baixo é espantoso. A massa de nuvens vê-se perfeitamente como se fosse de dia, rasgada frequentemente por enormes clarões. E começa a notar-se uma trepidação, como se o avião fosse a rolar sobre uma estrada esburacada. A extremidade da asa vibra e notam-se perfeitamente grandes deslocações para cima e para baixo, o que não deixa de causar uma certa impressão. Felizmente quase ninguém dá pela turbulência da tempestade. Só eu e um ou outro soldado que não consegue dormir, o que nos leva a trocar alguns olhares sem quaisquer comentários. E como estou há já muito tempo de caneta na mão e não sei o que me espera amanhã, vou parar por uns momentos e tentar dormir. Daqui a pouco inclino o assento para trás, até ficar quase horizontal, coloco sobre os joelhos a manta que nos foi distribuída, desligo a luz individual e a ventoinha por cima de mim, que me manda um ar fresco e agradável, coloco a almofada em boa posição e tiro uma soneca.
Antes deste aerograma, aliás, vários aerogramas juntos num só maço, deverão receber um telegrama apenas com as palavras «cheguei bem». É o que lhes mandarei assim que puser os pés no aeroporto de Luanda. Por agora é tudo. Beijos para os dois.
P.S. Afinal o totobola que fizemos em conjunto, antes de nos separarmos, foi uma verdadeira miséria. Para a próxima será melhor! Para me escreverem, poderão utilizar impressos iguais a estes, que poderão obter aí em Portugal em qualquer estação do correio. São gratuitos e chamam-se «aerogramas». A direcção deverá ser rigorosamente a que vai no remetente, ou seja, o meu nome seguido do meu SPM (Serviço Postal Militar) que tem o número 6666; caso contrário, a vossa correspondência não me chegará às mãos. Ah, ia-me esquecendo de vos dizer que os aerogramas não necessitam de franquia. São distribuídos gratuitamente para serviço das forças armadas e seus familiares. Um beijo.
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