Pois sim, meu caro Senhor Jancke, eu irei fazer os
possíveis por o ajudar um pouco a esclarecer os conceitos que nomeou na
introdução.
Percebi pelas suas palavras que quer saber como faço a
distinção entre ironia e humorismo e que papéis estes dois elementos
desempenham porventura na minha obra pessoal. Ora poder-se-ia muito bem
ser-se tentado a considerar a ironia o princípio mais elevado que excede
de longe o humorismo em dignidade e espírito. Penso num dito de Goethe,
que sempre me fez profunda impressão. Ele diz a certa altura: «a ironia
é o grãozinho de sal que vem dar sabor ao que está servido.» Umas
palavras muito estranhas. Poder-se-ia concluir delas que é com o
princípio da arte que Goethe faz quase concordar, coincidir a ironia.
Poder-se-ia dizer – que daí se pode concluir que ele equipara a ironia
àquela objectividade artística de que se ocupou toda a vida, que ele a
equipara à distância que a arte toma do seu objecto, que a ironia é esta
mesma distância, enquanto paira sobre as
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coisas e de lá de cima lhes sorri, tanto embrulha e
enreda nela o ouvinte ou o leitor. Poder-se-ia equiparar a ironia ao
princípio artístico do apolíneo, tal é o termo estético; porque Apolo,
«o que atinge de longe», é o deus do remoto, da distância, da
objectividade, o deus da ironia – objectividade é ironia – e espírito
artístico da épica; podê-lo-íamos tratar por espírito da ironia.
Ora permiti-me dizer o seguinte: terão notado já de
palavras minhas ocasionais e privadas, que me sinto sempre um bocadinho
aborrecido, quando a crítica fixa o meu trabalho pura e simplesmente no
conceito de ironia e me considera inteiramente irónico, sem ao mesmo
tempo ter em consideração o conceito de humorismo, que sempre no meu
caso, segundo me parece, não se pode, nem deve, inteiramente suprimir.
Deixai-me exagerar as coisas: a ironia, segundo me parece, é o espírito
da arte que, gostaria de dizer, arranca um sorriso intelectual ao leitor
ou ao ouvinte, enquanto o humorismo produz o riso que brota do coração,
– o que eu mais aprecio ainda como efeito da arte e que, como efeito da
minha própria produção, com mais íntima satisfação aclamo do que ao
sorriso erásmico provocado com a ironia. Devo dizer isto: – sabeis que
tenho falado muito em público, durante a minha vida e foi sempre que o
que eu estava a ler produzia na assistência uma risada cordial, que eu
mais contente me achei e mais feliz me senti sobre o estrado.
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Não creio que na minha obra da juventude, os "Buddenbrooks",
que de certo modo é fundamental para o que se seguiu, se encontre
preponderantemente a ironia. Sempre é muito mais um livro de humorismo
pessimista, desculpem a combinação talvez paradoxal, um livro cujas
fontes e ingredientes não são apenas Schopenhauer e Wagner, o romance
francês, russo e inglês, mas também e não em último
lugar, o humorismo baixo-alemão, que se exprime na obra de Fritz Reuter
(6), uma das primeiras
impressões literárias que me coube em sorte e que se faz sentir
fortemente neste livro.
Alegro-me sempre que se vê em mim menos um irónico do que um humorista e
creio que não será difícil apontar o elemento humorístico na minha obra
literária. Tome-se a personagem de Jacob da Tetralogia de José. Muito
bem; trata-se de una personagem altamente patética e contudo está,
indubitavelmente, para o sentimento de todos os leitores envolvida de um
particular humorismo. Mesmo numa cena que em si e por si devia ser
inteiramente trágica, como a da lamentação de Jacob pelo filho querido
supostamente dilacerado, portanto na conversa com Eliezer, em que Jacob
critica Deus e censura o Seu atraso moral, que fica atrás da evolução do
coração humano, mesmo aí há humorismo, que não se pode confundir com
ironia, é algo de essencialmente diverso.
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Ou tome-se outro exemplo, que agora mesmo me ocorre. É um
dos novos capítulos das memórias do cavalheiro de indústria Felix Krull,
uma cena em que um professor de ciências naturais ensina ao jovem
pseudo-marquês que o belo e vistoso braço de mulher, pelo que
ocasionalmente se é abraçado se se tem essa sorte, nada mais é que uma
garra alada da ave primitiva e a barbatana peitoral do peixe, ao que o
pretenso marquês responde: «Pois é, Senhor Professor, muito agradecido;
para o futuro lembrar-me-ei sempre disso». Estão a ver, neste passo tem
sempre havido gargalhadas cordiais na assistência; era um dos passos
cujo efeito me causava a satisfação que um humorista sente, quando o seu
público se ri.
Ora ainda estou a pensar em mais um exemplo. Pois bem,
trata-se do romance do Dr. Fausto, sem dúvida nenhuma melancólico
e gravíssimo. Acreditar-se-á que neste livro, também neste livro, se
vieram meter furtivamente elementos humorísticos? Eles não vieram
meter-se furtivamente, fui eu que os pus lá muito conscientemente, pois
bem sabia quão necessário seria este elemento, precisamente neste livro.
Estão a ver já a ideia de pôr a narrativa da vida do herói, o compositor
Leverktün, na boca do bom humanista Zeitblom, ou de lho fazer sair pela
pena, já esta coisa de exprimir o demoníaco pelo meio menos demoníaco
possível, já esta ideia é uma invenção manifestamente humorística, com
intuitos humorísticos que, pelo menos nas primeiras partes do
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livro, amplamente se conservam, como creio. Dei-lhes assim de improviso,
pois nós estamos a improvisar, três exemplos que talvez possam falar
pela minha tendência humorística.
Ora eu já estou a falar há muito tempo, e quero ceder a
palavra aos nossos amigos. Naturalmente estamo-nos a arriscar, estamos a
conversar como se estivéssemos em casa e procuramos esquecer, e
esquecemos realmente, que centenas e milhares de pessoas nos estão a
escutar. Corremos tal risco, mas nós somos um trevo de quatro folhas
que, segundo dizem, traz sorte e isto vai, portanto, acabar mal.
……………………….
Tem muita razão, faça o favor de desculpar que tão cedo o interrompa.
Recordo-me precisamente agora de uma pequena história, a que sempre
achei graça. É sobre o compositor Ditters von Dittersdort, que estava a
conversar sobre Haydn com o Imperador José. O imperador perguntava a
Ditters: «Ora diga lá: qual é a sua opinião sobre as composições de
Haydn para música de câmara?» Ao que Ditters lhe responde: «Bem,
majestade: que estão a causar sensação em todo o mundo e com toda a
justiça.» O imperador pergunta-lhe depois: «Não acha que ele às vezes
brinca de mais?» E torna Ditters: «Ele tem o dom de brincar, sem no
entanto degradar a arte.» Ora eu só posso dizer: se por acaso brinquei
com a língua, espero que nunca tenha degradado seriamente a arte, ao
fazer isso.
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……………………….
Pois é, caro Doutor Weber, não é lá muito fácil, mas eu
contava com tal intervenção e estive a pensar que passo poderia
escolher, precisamente como exemplo de um brinco com a língua, o que a
muitos não parecerá permitido e a muitos não pareceu permitido, mas a
que achei graça quando o escrevi. Proponho-lhe ler um pequeno episódio –
tal não demorará muito – do pequeno romano e "O
Eleito" aquele episódio em que o Abade D. Gregório, do Convento das
Necessidades (7), está
na praia da ilhota normanda de S. Dunstan, à espera dos pescadores que
ele tinha mandado e que, ao regressarem, encontram o infante real
abandonado.
(Nachlese, pp. 166-169). |