Também havia barro em Aveiro. E também aqui, desde
tempos remotos, os homens o tiraram dos seus poços,
trabalharam-no, modificaram-no na roda pobre do oleiro. Fizeram-no
peças artísticas; fizeram-no malga, cântaro, ou púcaro;
fizeram-no pão-de-açúcar e tijolo; e fizeram-no cerâmica. E de
tal forma o barro aqui veio sendo trabalhado que, na tradição
cerâmica do País, já desde o século XVI, Aveiro vem marcando
uma relativa importância.
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1905 - Fábrica
Aleluia, nos Santos Mártires. |
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Mas o oleiro veio a ser absorvido pela indústria que
foi surgindo também no sector e também em Aveiro, e que tendia e
tendeu para a louça, para o ramo industrial -
para
o “barro civilizado”. Só que aqui, em Aveiro, o artista nunca
foi totalmente absorvido —
e das inúmeras fábricas, maiores ou menores, que vieram
existindo e morrendo na cidade, nenhuma houve, nunca, em que da
respectiva produção não saíssem, a par com as louças de carácter
utilitário e os azulejos, as peças de faiança artística. De
entre todas essas fábricas, quer pela sua maior produção
qualitativa —
de que nos restam hoje, felizmente, bastantes exemplares — quer pela sequente importância que vieram a ter na
continuada indústria local, destacam-se especialmente as Fábricas
do Cojo, no século XVIII, e a Fábrica da Fonte Nova, no século
XIX.(1)
E foi já nos princípios do século XX que um grupo
de cinco operários daquela última (a firma “Carlos Melo &
Irmão”,
que entrara em decadência e cuja falência se avizinhava), após
conseguir capital emprestado, se constituiu em sociedade e fundou
uma nova fábrica do género —
louças e azulejos. Estávamos no dia 14 de Janeiro de 1905,
conforme rezam as notas do notário aveirense Manuel Cação
Gaspar. E no dia 6 de Junho desse mesmo ano, num pequeno forno
quadrado de chama direita, de cerca de 20 metros cúbicos, que
fora construído num pequeno e modesto armazém sito no Largo dos
Santos Mártires, - a fábrica foi “oficialmente” inaugurada - é que se desenfornou a primeira cozedura.
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1955 - Fábrica
Aleluia, no Cais da Fonte Nova - Vista aérea - 1955. |
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Dez meses depois, porém, nas notas do notário Dr.
Joaquim Simões Peixinho, de 24 de Abril de 1906, regista-se a
dissolução da sociedade; e dos seus componentes iniciais um único
tomava a si todo o activo e passivo da mesma: o operário-artista-pintor
João de Pinho das Neves Aleluia.
Completaram-se no ano findo de 1980 os 75 anos das Fábricas
Aleluia. Passaram despercebidos.
“Cinquenta anos de luta, de canseiras, de esperança
meio século consumindo vidas dedicadas -
obrigam-nos a deter um momento para colhermos do Passado a lição
proveitosa que só o passado pode dar” —
dizia-se na contracapa do programa geral das comemorações do
cinquentenário das Fábricas Aleluia (2), que se efectuaram em 6,
7, 8 e 9 de Outubro de 1955. —
Tão perto e tão longe! Então todo o Aveiro, que as conhecia,
viu-as, ouviu-as e sentiu-as ainda mais abertas, mais perto de si,
mais orgulhosamente mas: é que, para além das retrospectivas e
das exposições, foi mostrado a todos o trabalho do dia a dia e a
produção de então, em que o artístico continuava a ter o seu
insubstituível e importante lugar; e é que foram também as múltiplas
realizações das secções culturais dos empregados da Fábrica
Aleluia. Foi vida. E tudo se deteve naquela Aleluia do então
presente ante os cinquenta anos passados de Aleluia. Mas, foi
ontem.
Quem recordou agora, nos seus 75 anos de existência,
as labutas de João Aleluia (e, justo também referi-lo, da sua
maior auxiliar, sua mulher, D. Ana da Conceição Aleluia) e as
dificuldades financeiras que suportou para erguer, manter e
projectar a sua fábrica —
já que capital não o tinha e, por isso, sempre se teve que
socorrer de empréstimos?
Já em 1911, depois de liquidado ao amigo e
prestamista Domingos Leite, que, aliás, como amigo sempre o
incentivou, os encargos com o empréstimo da fundação, ei-lo
que, com novo empréstimo do mesmo amigo, compra a propriedade da
Fonte Nova. É que a fábrica nos Santos Mártires já era
acanhada. Mas na sua produção, à base da louça doméstica que
se destinava principalmente à Beira Alta e dos azulejos, havia
uma marcada faceta artística; e logo desde a primeira fornada
nunca deixaram de existir as jarras, os painéis, os pratos
decorativos — o artista João Aleluia e os seus oleiros-operáriosartistas
nunca deixaram descansar os pincéis.
A dívida foi paga em 6 anos. E a fábrica nos Santos
Mártires, que dispunha já de força a vento —
um moinho construído por Manuel João Branco, da Quinta do
Picado, referido em inventário em 1915 com o valor de 50$00 — e que em 1916 produziu cerca de 6.000$00 com um quadro de
pessoal de 19 pessoas cujos salários foram de 2.362$534, começou,
pode dizer-se, a ser transferida em Janeiro de 1917 para a Rua da
Fonte Nova. Com efeito, e com um novo empréstimo ainda do mesmo
amigo, iniciou-se a construção da primeira oficina ampla. Casa
de fornos e dois fomos quadrados - do mesmo sistema mas de 43 metros cúbicos cada um. Um
moinho, sito na estrada da Gafanha, que funcionava com as
correntes da Ria, foi adquirido e transferido para a Fonte Nova de
7 de Março a 29 de Abril de 1918. A primeira fornada das novas
instalações saiu em 8 de Setembro de 1917; no entanto, e até
esta data, a fábrica nos Santos Mártires esteve sempre em laboração,
nunca tendo sido suspensa, portanto, a sua produção.
Estes, os alicerces que João Aleluia construiu. Mas não
só. Porque os alicerces foram-no verdadeiramente a escola de operários-artistas
que naturalmente criou e manteve sempre renovada, com a qualidade
humana que lhe permitiu ver abrir outras fábricas similares à
sua, que fechariam pouco tempo depois (Empresa de Louças e
Azulejos, Ldª, Empresa Olaria Aveirense Ldª, para além da velha
Fábrica da Fonte Nova, que se reanimou depois de uma modesta e
difícil vida, mas que viria também a desaparecer).
E João Aleluia venceu. Pela qualidade da sua produção
e pela sua produção artística.
A Aleluia evoluiu. Apetrechou-se. Engrandeceu.
Continuou a impor-se pela qualidade. Com ela, e sempre, a produção
artística: os painéis, as peças. Aleluia. Ontem, 1980, 75 anos.
Aleluia hoje? S.A.R.L.
JOÃO AFONSO
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NOTAS:
(1) - Da Fábrica da Fonte Nova são os azulejos que têm
vindo a ser reproduzidos na contracapa deste Boletim, existentes
na Estação dos Caminhos de Ferro de Aveiro, datando do primeiro
quartel do nosso século, e que constituem
um
excelente documento do Património Aveirense dos princípios do século.
- Nota da Redacção.
(2) - Fábrica Aleluia —
50
anos —1905-1955. Programa das Comemorações do Cinquentenário. Nos dias 6,
7, 8 e 9 de Outubro de 1955. Deste programa são extraídas
as
duas gravuras que ilustram o presente artigo e cujas legendas são
respeitadas.
Destacava-se do programa, entre outros: — uma palestra
subordinada
ao tema “O Homem e o Barro”, palavras do Dr. ALBERTO SOUTO,
Director do Museu Regional de Aveiro, Sócio da Associação dos
Arqueólogos Portugueses e da Sociedade Portuguesa de Antropologia
e Etnografia — ditas pelo Dr. David Cristo”; e exposições
sobre louças, artes plásticas e fotografias (dia 6);
— Sessão Comemorativa e Sarau (dia 7);
— Abertura da Fábrica ao público; etc. — Nota
da Redacção.
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